quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Carta aberta de um jovem líder do povo Kuntanawa

Rio Branco, Acre, 17 de dezembro de 2007

Senhores Governantes desse país e todos simpatizantes da causa indígena da Amazônia brasileira, de qualquer lugar do mundo.

Sou um jovem de 25 anos, um dos principais líderes do meu povo Kuntanawa que vive no alto rio Tejo, um dos principais afluentes do rio Juruá. Nesta carta gostaria de chamar ou pedir a atenção de todos para a nossa causa.

Em 1911, meu povo sofreu um ataque muito cruel pelo homem branco que isso quase causou o extermínio do meu povo, restando apenas cinco pessoas. Durante muito tempo fomos massacrados e escravizados pela exploração da borracha, fomos obrigados a deixar de falar nosso próprio idioma e proibidos de praticar vários outros costumes da nossa tradição. O tempo foi passando e aquela situação tão constrangedora cada vez mais deixava meu povo indignado por não ter sua liberdade e sermos sempre subordinados aos seringalistas que se diziam donos de nossa terra.

Meu povo já sem saber o que fazer. Foi quando conhecemos uma pessoa por nome Antonio Luiz Batista de Macedo, que com uma outra pessoa por nome Francisco Barbosa de Melo, que também era filho daquele lugar, nos trouxeram uma proposta que nos chamou bastante atenção: criar ali uma Reserva Extrativista, o que para nós seria muito importante, era uma oportunidade de sair do comando dos seringalistas. Sonhamos com nossa liberdade e ter uma vida digna perante a sociedade. Não medimos esforços. Meu povo dedicou sua própria vida, houve conflitos, muitas ameaças por parte dos patrões, mas mesmo assim meu povo foi bravo e corajoso, não desistimos e junto com outros povos da floresta criamos a tão sonhada Reserva Extrativista do Alto Juruá.

No início, tudo parecia ter chegado ao final do problema. Chegamos a conduzir o processo administrativo de desenvolvimento da organização dos moradores daquela área e tudo estava dando certo. Tivemos conquistas importantes para todos daquele lugar. Nossa relação com os não-índios era muito harmoniosa.

O tempo foi passando e as coisas foram mudando. Acompanhei de perto, mesmo criança na época. Talvez diferente de outra criança qualquer, acompanhava os passos do meu pai. Aprendi bastante com cada homem comprometido que mostrava seu interesse de ver as coisas darem certo.

Só que nem tudo foi como a gente pensou. Tivemos uma grande surpresa que foi um grande impacto para meu povo: novas pessoas que na época não faziam parte da luta assumiram o comando da Associação dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá, mudando totalmente o seu projeto. Para meu povo, o que nos causou mais revolta foi o fato de terem nos destratado, nos acusando de sermos um empecilho para o crescimento econômico da Reserva. Mas a verdade era que meu povo discordava das ilegalidades que passaram a ocorrer naquela área de preservação dos recursos naturais.

Meu povo então parou para refletir e nós descobrimos que realmente a Reserva Extrativista não era mesmo uma terra com nome adequado para um povo indígena. A terra indígena, para nós, é um símbolo permanente da nossa criação e de nossa existência.

Por este motivo, eu peço em nome de meu povo o apoio e a solidariedade de cada um que ler esta carta e entender nossa história, e que se junte a nós em defesa da vida e da natureza. Tudo que nós tanto queremos é nossa terra demarcada.

Queremos reconstituir nosso povo, voltar a viver feliz e cuidando sempre daquele pedaço de terra que para nós é tão sagrado. Temos nossas raízes plantadas neste lugar, da onde as nascentes fazem brotar as águas que banham e matam a sede de milhares de pessoas.

Meu povo cresceu. Hoje somos 368 pessoas e todos precisam de terra para morar. Queremos dar continuidade de nossa vida e história nesse lugar.

Muito grato a todos e todas que lerem esta carta e um grande abraço em nome de todo meu povo.

Haruxinã (Flávio Kuntanawa)

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Feliz Natal

Hoje, dia natalício do Mestre Jesus, que possamos nos sintonizar com o que ele nos trouxe. Consigo pensar agora no amor próprio e ao próximo, no perdão a si mesmo e ao irmão, na inocência no sorriso de uma criança e na humildade perante a vida.

O aniversário é de Jesus, e os presenteados somos nós.

É verdade que para usufruir, temos que fazer bastante esforço – mas nossos esforços são Dele também, e aí mora um mistério.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

O valor de um gesto


Gente, tem uma greve de fome acontecendo. Há já uns 20 dias um religioso protesta contra a transposição do rio São Francisco. Dom Luis Flávio Cápio. Estou comovida com tudo isso. A vida em risco por um rio, por um povo, por um ideal. Coisa rara, coisa rara. Tenho pensado em Dom Cápio várias vezes ao dia, no significado deste gesto nos dias de hoje quando tantos absurdos são pronunciados: projetos mirabolantes que mexem no meio ambiente e com a vida das pessoas de uma forma leviana e irresponsável. E o Dom Cápio e seus fiéis lá no sertão nordestino - sertão guerreiro, desde sempre - lutando contra tudo isso. Ah, de alguma forma estou lá também. E o nome do rio... São Francisco, tem santo mais amoroso?! Santo do santo perdão.

Ah, meu São Francisco, abençoa esta luta, e dá uma força extra ao Dom Cápio e a santa luz a quem acha que tem poder...

* * *

Segue abaixo o manifesto redigido por Leonardo Boff.Várias organizações e movimentos estão distribuindo na busca de apoio. As adesões devem se enviadas a apoio.dom.cappio@gmail.com com cópia para rede@social.org.br

MANIFESTO

Não ao atual projeto de transposição do rio São Francisco.

Pela vida de D. Luiz Cappio, pela vida do rio São Francisco.

Nós abaixo assinados viemos a público repudiar o atual projeto do governo federal da transposição do Rio São Francisco. Esse projeto é faraônico, não é democrático, porque não democratiza o acesso à águapara as pessoas que passam sede na região semi-árida, distante ou perto do rio São Francisco.

O governo alega que vai levar água para 12 milhões de sedentos. O projeto, na verdade, pretende usar dinheiro público para favorecerempreiteiras, o agronegócio, privatizar e concentrar nas mãos dospoucos de sempre as águas do Nordeste, dos grandes açudes, somadas às do rio São Francisco.

A transposição tem muito pouco a ver com a seca. Tanto que os canais do eixo norte, por onde correriam 71% dos volumes transpostos, passariam longe dos sertões menos chuvosos e das áreas de mais elevado risco hídrico. E 87% dessas águas seriam para atividades econômicas altamente consumidoras de água, como a fruticultura irrigada, a criação de camarão e a siderurgia, voltadas para a exportação e com seríssimos impactos ambientais e sociais. Todas estas implicações não foram transparentemente discutidas com as populações envolvidas como os ribeirinhos, os pescadores, os indígenas, os quilombolas e a comunidade científica.

O atual projeto não toma em conta alternativas mais baratas, maisviáveis e mais eficazes para um número maior de pessoas. O projeto oficial custaria mais de 6 bilhões de reais, atenderia apenas a quatro Estados (Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará)beneficiando 12 milhões de pessoas de 391 municípios. Um projeto alternativo elaborado pela Agência Nacional das Aguas (ANA) e o Atlas do Nordeste custaria pouco mais de 3 bilhões de reais, atingindo nove estados (Bahia, Sergipe, Piauí, Alagoas, Pernambuco, Rio do Norte, Paraíba, Ceará e Norte de Minas), beneficiando 34 milhões de pessoas de 1356 municípios. Cabe ainda lembrar a Articulação doSemi-Árido (ASA) que se propõe constuir um milhão de cisternas, tenho já construido 220 mil que atenderia as áreas mais áridas e isoladas da região.

O projeto de transposição vem sendo conduzido de forma arbitrária e autoritária: os estudos de impacto são incompletos, o processo delicenciamento ambiental foi viciado, áreas indígenas e quilombolas são afetadas e o Congresso Nacional não foi consultado como prevê a Constituição. Há 14 ações que comprovam ilegalidades e irregularidades ainda não julgadas pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o governo colocou o Exército para as obras iniciais, abusando do papel das Forças Armadas, militarizando a região. A decisão do TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região, de Brasília, de dez de dezembro deste ano, obrigando asuspensão das obras, comprova o caráter problemático do projeto governamental.

São tais fatos que sustentam o jejum e as orações do bispo de Barra(BA), dom Luiz Cappio, pessoa humilde, aberta ao diálogo e amigo dospobres que há mais de 30 anos convive com os problemas do Vale do São Francisco. Ele está oferecendo sua vida para que o povo e o rio tenham mais vida. Apoiamos seu gesto profético, digno dos discípulos de Jesus.A alternativa do Presidente Lula é falsa: entre os pobres e o bispofico do lado dos pobres. A verdadeira alternativa é: entre os pobres e o hidronegócio nós ficamos do lado dos pobres.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Viva o aniversariante!


Sou filho desta verdade
Sou dono deste poder
Deus me entrega com firmeza
Eu não devo esmorecer

Vou seguindo nesta verdade
Para sempre, sempre outra vez
A minha mãe sempre comigo
Que me ensina eu compreender

Estou aqui nesta verdade
Só ensino é coisas boas
Alguns que estão comigo
Só pensam é coisa à toa

A ruína que se faz
É só para sofrer
Cada um dá o que tem
Não precisa ninguém dizer

Agora eu volto para o meu lugar
Sigo em frente e vamos trabalhar
Não pense em fazer o que tu queres
Que Deus é o nosso Pai

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Direitos sobrepostos

Dois sentimentos me assaltaram quando soube que os Kuntanawa estavam dando início a uma movimentação política visando reconhecimento étnico e territorial. Soube disso, se não estou equivocada, por meio do pessoal do Cimi em Cruzeiro do Sul, que me ligou para falar do assunto e gentilmente enviou-me documentos que naqueles dias (isso em 2004) os Kuntanawa haviam encaminhado a Funai e outros orgãos. Pois bem, como ia dizendo, dois sentimentos tive: o primeiro de surpresa, o segundo de apreensão.

A surpresa porque nem nos meus sonhos mais secretos imaginei que isso pudesse acontecer, quer dizer, que este ressurgimento étnico viesse a ganhar o espaço público e transformar-se numa demanda territorial. Que durante toda a pesquisa da minha tese de doutorado estivera lidando com um grupo com fortes referências indígenas, disso eu sabia e não tinha dúvidas. Desde nosso primeiro contato, em 1991, notei e anotei os traços indígenas, a proximidade e identificação com os "parentes" vizinhos - sendo tudo isso algo que os distinguia dos demais moradores da Reserva, que gostavam realmente de referir-se a eles como "caboclos" (que aqui no Acre é um sinônimo positivo e negativo de "índio"). A medida que a tese foi sendo construída, que a história familiar foi se desvelando e que minhas relações com a família foram se aprofundando, a todo momento esbarrava com a vertente indígena daquelas pessoas, seja em suas falas afirmativas ("sou índio"), sua maneira de viver, de estar juntos, de consagrarem a ayahuasca.

E abro um parêntese aqui para dizer que toda esta surpresa tem um componente de satisfação. A perspectiva que informou o trabalho de reconstituição da história da família de seu Milton é de que o destino daquelas pessoas foi (e é) por elas construído, com a autonomia possível dada pelas circunstâncias, mas com a agência inegável delas. E foi isso que vi acontecendo: independente de mim, da antropóloga "deles", seu Milton e filhos e demais parentes e afins decidiam sobre seu destino. Exatamente: eles não são "meus" índios, como se costuma dizer, mas eu a antropóloga "deles" - e com tranquilidade digo que fui a última a saber de tudo!

Mas falemos agora da apreensão. Na mesma hora, lá em 2004, pensei: "e a Reserva?". Refiro-me aqui a Reserva Extrativista do Alto Juruá, meu local e casa de trabalho desde 1991. Nossa, espantava-me, ela vai ficar sem um pedaço seu, e sem um povo seu também, pois "os Milton" são parte inseparável da história de criação da Reserva. Senti-me dividida. Queria apoiar e acompanhar meus amigos, mas queria também lutar pela Reserva, e de alguma forma isso estava associado, para mim, naquele momento, a manter a integridade do território. Pensava também nos moradores do alto rio Tejo, vizinhos dos "Milton" a serem atingidos pela possível criação de uma Terra Indígena: o que será deles? Para onde irão?

Como disse a Eliza no Papo dela (ver postagem anterior), não se trata de "mocinhos e bandidos", ou seja, não dá pra cair num maniqueísmo numa situação como esta: a de sobreposição de territórios indígenas sobre áreas habitadas por populações extrativistas. Mesmo porque os índios de hoje compartilharam a sociedade de seringal com os seringueiros, e muitos dos seringueiros de hoje tem em sua história a ascendência indígena. Os trânsitos entre uma situação e outra são mais complexos do que uma oposição simplificada entre "brancos" e "índios". Como então tomar partido? Devo dizer ainda que mais recentemente andei revendo minha relutância em pensar a Reserva desmembrada. Afinal, são as Reservas parentas próximas das Terras Indígenas, e os Kuntanawa, ora, estão no seu direito.

Mas, volta-me ao pensamento, há os demais, os ditos não-índios: como fica sua situação? Ah, receberão indenização e pronto, a lei é soberana e garante aos índios o direito à terra. Bom argumentações assim, tão taxativas, não conseguem me convencer por inteiro. Novamente, não se trata de bandidos e mocinhos. Os prováveis futuros atingidos são extrativistas, seringueiros, população trabalhadora e com uma história de mais de cem anos na área. De formas diferentes, participaram das lutas pela criação da Reserva, e, também de forma não homogênea, estão envolvidos no esforço de mantê-la para seus filhos e netos. Tal como os índios, lutam neste país para viver com dignidade. Que direito elas têm?

Tendo a concordar com a Eliza: é preciso um reconhecimento de direitos de ambas as partes e que isso seja levado a sério, ou seja, se traduza em procedimentos de negociação e políticas públicas, em especial no caso das indenizações. Ao Estado é exigida uma nova postura para lidar com uma situação de tal complexidade e delicadeza. Dará ele conta? Bom, aí já entram complicadores e morosidades inacreditáveis... Mas Eliza está certa em sua análise, concordo com ela.

Agora há pouco (ontem), o Ministério Público Federal no Acre enviou uma recomendação a FUNAI para que sejam iniciados os trabalhos de demarcação da TI Kuntanawa. A FUNAI tem 30 dias para se manifestar. Por outro lado, dentro da própria FUNAI, é aguardado para logo um parecer sobre o caso Arara, do rio Amônea. Muita água ainda vai rolar em mais este capítulo de sobreposições territoriais. Esperemos que o roteiro traga (boas) novidades.

domingo, 9 de dezembro de 2007

A sobreposição e os "outros"

O texto abaixo é de autoria da antropóloga e amiga Eliza Costa, pesquisadora de mão cheia e de longa data na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Eliza há anos acompanha os acontecimentos no rio Amônia, antes mesmo do surgimento da demandá étnica e territorial dos Arara. É com este conhecimento de causa, e com os profundos vínculos que ela mantém com os moradores da Reserva, que ela escreveu o texto, publicado hoje na coluna Papo de Índio, onde ele pode (e deve) ser lido na íntegra.

Sua reprodução e divulgação aqui insere-se na conversa aberta alguns dias atrás, quando comecei a falar da questão do "ser" índio e anunciei uma postagem sobre a questão da sobreposição entre a Reserva e a demanda de Terra Indígena dos Kuntanawa. A conversa da Eliza vem bem à propósito, e gosto muito do tom que ela adota. Confiram, e continuamos nosso papo em breve...

A solução dos conflitos entre índios e não índios no rio Amônia exige urgente ação inovadora do Estado

Sei que, numa situação de conflito, falar bem de um lado é sempre, e mesmo sem querer, falar mal de outro. Recentemente escrevi no “Blog do Altino” um texto sobre os conflitos de moradores do rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo, com o grupo Apolima-Arara liderado por Chiquinho Siqueira Arara. Na ocasião, movida pela reação a notícias que apresentavam moradores como “invasores”, pretendi apenas trazer mais informações sobre a região, acreditando poder ajudar na compreensão daqueles conflitos, que pedem urgente ação. Não foi minha intenção posicionar-me “contra a luta dos índios”, conforme comentado recentemente pelo Txai Terri neste espaço. Aliás, registro aqui que, apesar da crítica, me senti até lisonjeada por merecer um comentário do Terri, por quem tenho enorme admiração. Por isso, um debate com ele é mesmo uma honra.

Na verdade, Terri tem mesmo razão ao dizer que, no tal texto do Blog, eu teria assumido o ponto de vista dos moradores da Reserva. Como antropóloga, essa era mesmo a minha tentativa, mas que fique claro: quando falo em “moradores”, falo em índios e não índios, por isso não estou contra lado nenhum. Tentarei ser mais clara dessa vez.

Em 1994, passei alguns meses morando com famílias do rio Amônia, e venho acompanhando desde então a história no local, seja em visitas ou em reuniões eventuais. Por causa disso tenho um enorme carinho pelas famílias - índias e não índias - que tão generosamente me receberam em suas casas. E por esse sentimento, por minha responsabilidade enquanto antropóloga, e pelo respeito pela história recente local é que me senti obrigada a me opor, não aos indígenas ou à sua liderança, e sim a uma visão maniqueísta que me parece estar se constituindo quando se fala nos conflitos na região, dividindo todos em “índios” e “invasores”. Embora essa seja a maneira de expressão dos conflitos atuais, a dicotomia ignora a história local e simplifica a realidade, sem nada ajudar a resolver.

Um pouco da história recente da região

A área que hoje é palco desses conflitos fica na região dos rios Amônia e Arara, afluentes do alto do rio Juruá, englobando parte da Reserva Extrativista do Alto Juruá e do Projeto de Assentamento Amônia. Também faz fronteira com Terra Indígena Ashaninka e a sede municipal de Marechal Thaumaturgo, em acelerado processo de urbanização. Vamos a alguns dados dessa história recente. Em 1990, foi criada - por um movimento de índios e não índios - a Reserva Extrativista do Alto Juruá. Em 1991 é aprovado em assembléia um Plano de Uso que oficializava as regras para o uso dos recursos e permanência na área, agora sob administração (pelo menos oficial) do Ibama.

O rio Amônia, fronteira oeste da Reserva, já se torna um lugar sui generis: apesar de seus moradores poderem atravessar a pé de um lado para o outro durante quase todo o ano, de um lado do rio passam a existir certas regras para uso das florestas e dos rios, do outro, nada constava.

Em 1986, foi criada a Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, dos Ashaninka, partindo da fronteira com o Peru nas margens do alto rio Amônia. Em 1992, inicia-se a saída de várias famílias dessa terra indígena, tanto de moradores índios e não índios. Em sua maioria, essas famílias preferiram permanecer residindo no próprio Amônia, adensando a ocupação que já existia rio abaixo.

No mesmo período é criado o município de Marechal Thaumaturgo, com a sede da Prefeitura instalada na foz do rio Amônia, do lado oposto ao da Reserva Extrativista do Alto Juruá. Rapidamente se inicia a urbanização da sede municipal, com uma política agressiva de construção e distribuição de casas e cargos públicos.

Obviamente, não havia recursos suficientes para a manutenção de todas essas famílias que acorreram para a sede municipal. É então que caçadores, pescadores e madeireiros acorrem em busca de alimentos e de madeira para a construção da cidade, adentrando, não sem muitas brigas, o território da reserva extrativista e da terra Ashaninka, dentre outros.

Em 1996, políticos locais pareciam pensar que os conflitos eram poucos, e acharam por bem criar um projeto de assentamento, justamente no território situado entre a terra Ashaninka, o Parque Nacional da Serra do Divisor e a Reserva Extrativista do Alto Juruá. E um tipo de assentamento estabelecido nos moldes mais tradicionais do Incra, aquele dos pequenos lotes que impedem qualquer economia extrativista, com ênfase na pequena criação de gado, sabidamente inadequados para a Amazônia e muito menos para o entorno de unidades de conservação e terras indígenas. Esse assentamento era, porém, importante para o projeto de “desenvolvimento” dos políticos da época, claramente posicionados contra os movimentos sociais locais, tanto indígenas como não-indígenas. Com isso, novo adensamento no rio Amônia, mais pressão sobre os recursos e, claro, novos conflitos.

O paradoxal aqui é que justamente nessa área, já tão complicada, é que surge hoje esse novo conflito, agora entre índios e não índios. Por quê? Arrisco uma resposta: justamente por causa da dualidade entre a preservação ambiental e a urbanização empurrada por interesses políticos. Políticas contraditórias acabaram produzindo um lugar relativamente acessível aos benefícios de saúde e educação (pela proximidade da sede municipal) e, ao mesmo tempo, relativamente preservado (pela localização entre terra indígena, parque e reserva).

E por que essa área ainda está relativamente preservada?

(para ler o texto na íntegra, clique aqui)

sábado, 8 de dezembro de 2007

Mais uma do Roxo

Contou-me o Amilton, grande amigo agora morando em Cruzeiro do Sul, o seguinte fato:

A meu pedido ele assumiu o compromisso de trazer para Rio Branco uns mapas e cartazes que trabalhamos com os monitores da Reserva Extrativista do Alto Juruá, e que estavam com o Roxo. Amilton foi então em busca da casa do Roxo, no bairro do Cruzeirinho, num local que ele [Amilton] sabia mais ou menos onde era. Chegou numa rua, perguntou para uma senhora:

- A senhora conhece o Roxo? Ele tem um carrinho de lanche, fica lá em frente ao Banco do Brasil? Não? Ah, obrigado.

Mais adiante, parou num comérciozinho:

- Bom dia. O senhor conhece o Roxo?
- Não, não conheço.
- Ele trabalha com um carrinho de lanche...
- Não sei não.
- O ponto dele é lá em frente ao Banco do Brasil.
- Hum, não sei quem é não.
- Tá, obrigado.

Amilton já se virava para entrar no carro, quando ouviu o comerciante chamá-lo e perguntar:

- Roxo? É um que trabalha com pesquisa?
(na foto acima, tirada em janeiro de 2006, Roxo aparece no primeiro plano; estávamos numa reunião com monitores da Reserva residentes na vila Restauração)

Viva a Rainha da Floresta!

A Rainha da Floresta
Vós venha receber
Estes cânticos aqui na mata
Que eu venho oferecer

Vós mandou para mim
Ensinar os meus irmãos
Estamos todos reunidos
Com amor no coração

Eu apresento os meus trabalhos
Conforme eu aprendi
Estamos todos reunidos
Vós faça todos feliz

(Mestre Raimundo Irineu Serra, 1892-1971)

domingo, 2 de dezembro de 2007

Ser ou não ser - eis a questão?

Há tempos estou para escrever algo mais extenso sobre os Kuntanawa (ou Kontanawa, como até há pouco escrevia-se, sendo a correção provavelmente devido à palavra “kunta”, o coco da jarina). Os Kuntanawa desde 2003 estão empenhados, com apoio público do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj), em ser reconhecidos enquanto tais e conquistar um território próprio. Um dos grandes desafios que estão encontrando é que a área que querem para si está inteiramente superposta a da Reserva Extrativista do Alto Juruá, da qual inclusive são um dos principais responsáveis pela criação, num tempo em que sua porção indígena convivia de maneira mais harmoniosa com a cultura de seringal na qual foram socializados.

Os Kuntanawa não são um caso isolado na Amazônia, e nem muito menos no Acre, mesmo na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Nesta última, os Arara do Amônea são pioneiros nessa busca de reconhecimento e direitos territoriais, já avançaram bastante no processo, já existe um relatório de identificação elaborado, mas o caso se arrasta nas burocracias e políticas estatais. Dois temas que chamam atenção nos ressurgimentos étnicos em curso no Alto Juruá.

Um é a própria questão da identidade étnica. Povos indígenas julgados extintos ressurgem a partir de seus descendentes misturados com “brancos”; ressurgem não em aldeias, mas em colocações seringueiras ou mesmo lotes de assentamento. O senso comum e as forças políticas que se opõem a este tipo de processo, perguntam: índios? Como assim? Até outro dia não eram brancos? Pra ser índio não tem que viver de outro modo? Se vestir (ou despir) tal como os (verdadeiros) índios o fazem? Cadê a língua? Os rituais? Todas essas perguntas, notem bem, não são na verdade perguntas, são antes respostas, e respostas nada inocentes – são respostas políticas a uma questão que é também política: o que é ser índio? Ou quem é índio?

Não pretendo aqui me estender sobre isso, e remeto a uma entrevista inspiradora e esclarecedora que o Instituto Socioambiental (ISA) fez com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. O que digo a seguir tem lá a sua fonte. Se há uma questão que incomoda Viveiros de Castro é justamente esta: ter que dar uma de “perito de identidade”, como ele diz, e dizer quem é ou não índio. Dizer o que os outros são ou não. Meio onipotente isso, não? Insinua-se uma questão de poder aí, de interesses e pressões.

Viveiros de Castro mostra que desde os anos 70, a definição do que seria “índio” conheceu diferentes parâmetros de legitimação, mas adentramos os anos 90 com um aparato teórico e legal que amparam a afirmação de que é índio quem se considera e é considerado como tal por seu grupo. Ora, se o sujeito – amparado por uma coletividade, seu grupo – está dizendo que é índio, quem é o antropólogo para dizer que não? E se este sujeito apresenta vinculações ancestrais com povos indígenas, tal como o grosso da população brasileira, não fica mais absurda ainda a pergunta? Viveiros de Castro chega a interessante sugestão, ou tese, de que neste nosso país somos todos índios, exceto aqueles que dizem que não o são. Inverte tudo.

Há muito a antropologia já esclareceu que, mais do que signos externos, a indianidade depende de um sentimento de pertencimento. Dito de outra forma: não é cocar, urucum, nudez e outros adereços que definem se um grupo é ou não indígena. Como diz Viveiros de Castro, mais do que um modo de parecer, ser índio é “um modo de ser”, e como tal não é fixo, encerra movimento, mudança, um devir. É quase ridículo achar que vamos hoje encontrar povos indígenas, em especial aqueles que foram cruelmente perseguidos nas “correrias”, tal como se encontravam naquele justo momento. Isso não seria jamais possível. Muita coisa mudou, tempo passou, a roda da história girou... Mas sob certas circunstâncias, a fênix renasce. E o faz amparada na história, mas também por ela renovada. Para Viveiros de Castro, os Kuntanawa, ou os Milton, todo este tempo estariam devindo a sua indianidade. E eis que os encontramos em 2007, em plena luta por reconhecimento e direitos territoriais.

Mas há uma outra dimensão, política também, além de geográfica, a da superposição territorial. Na próxima postagem entro neste assunto...

sábado, 1 de dezembro de 2007

Os Kuntanawa em Cruzeiro do Sul

Em Cruzeiro do Sul, na semana passada, encontrei com vários membros do grupo indígena Kuntanawa que, com apoio do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e da Opirj (Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá) realizaram reuniões, concederam entrevistas a rádio e televisão e encaminharam suas reivindicações aos orgãos competentes. Reproduzo abaixo trecho do documento tornado público.

"Diante do silêncio demonstrado pela FUNAI e outros orgãos da união (IBAMA, FUNASA, INCRA) tanto no sentido de chegar até a nossa Terra Indígena e nos apresentar respostas para as nossas reivindicações prioritárias explícitas na luta pelo reconhecimento étnico e territorial, nosso povo reunido em Assembléia Geral realizada nos dias 1 e 2 de novembro de 2007, elegeu esta delegação composta de 14 integrantes Kuntanawa, para de forma participativa vir a Cruzeiro do Sul e a qualquer lutar deste nosso país, para apresentar nossas reivindicações e chamar a devida atenção das autoridades para tratarem com o carinho merecido as reivindicações que temos apresentado ao longo destes últimos sete anos."

Os Kuntanawa deram um prazo de 15 de dezembro para verem reunidos em Cruzeiro do Sul representantes da FUNAI, da FUNASA, do governo estadual, do MMA e das Procuradorias Gerais do Estado e da Federação para uma resposta sobre várias reivindicações, entre elas, e principalmente, a criação de um Grupo de Trabalho para realização dos estudos de identificação e delimitação da terra indígena Kuntanawa.

A área reivindicada pelos Kuntanawa está inteiramente superposta a Reserva Extrativista do Alto Juruá. Para quem não está lembrado, os Kuntanawa são remanescentes de grupos indígenas perseguidos nas "correrias" do início do século XX para abertura de seringais na região, e seus membros mais antigos são seu Milton Gomes da Conceição e dona Mariana Feitosa do Nascimento, líderes do extenso grupo familiar sobre o qual publiquei o livro com o título de "Os Milton. Cem anos de história nos seringais". Em postagem anterior já falava deste novo momento do grupo: de "Milton" a "Kuntanawa".

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Roxo, passarinho rouxinol

Antonio Barbosa de Melo, o Roxo, nasceu no igarapé Manteiga, afluente do alto rio Tejo. Lá viveu toda a sua infância e juventude, morando com os pais, dona Esmeralda e o seu Ginú, irmãos e irmãs. Era seringueiro. No final dos anos 80, por intermédio de seu irmão, o Chico (do) Ginú, conheceu o antropólogo Mauro Almeida. Naquela época, Chico era bolsista de pesquisa num projeto do professor da Unicamp. Não escapou a Roxo alguns procedimentos de pesquisa, tal como anotações incansáveis no caderno de campo.

Anos depois, em 1993, quando Mauro e uma grande equipe iniciavam um extenso projeto de pesquisa na área, já decretada como a Reserva Extrativista do Alto Juruá, Roxo procurou Mauro: queria “fazer pesquisa”. Não sabia bem o que era, mas queria mesmo assim. Mauro lhe passou um caderno e Chico assumiu a “orientação” do irmão, em especial na checagem de seus escritos. Segundo o próprio Roxo, seus garranchos só eram decifráveis por Chico...

Roxo, que não é homem de desistir fácil daquilo que almeja, além de ser dotado de uma paciência que só posso atribuir ao seu bom coração, seguiu em frente com suas pesquisas. Aos poucos, por sua própria iniciativa e trabalho, foi se destacando entre a equipe de monitores que então começava a se estruturar na Reserva. Lembro nesta época que Roxo estava sempre por perto, ouvindo, conversando e nos acompanhando. Em 1993, quando uma equipe de antropólogas passou seis meses em campo, Roxo acompanhou uma delas, a Andréia Martini, em seu debut entre os seringueiros do igarapé São João. Nas nossas reuniões ele estava sempre presente. Enfim, Roxo iniciava-se como pesquisador.

Anos passaram, o Projeto de Pesquisa passou por altos e baixos, mas Roxo (assim como outros também) manteve-se firme. E mais firmeza ainda lhe foi exigida quando seu filho adoeceu de leucemia. Foram quatro anos de batalha, viagens e muito sofrimento. Roxo, que então já morava noutra localidade, na foz do Tejo, viu-se obrigado a mudar para a cidade de Cruzeiro do Sul para melhor assistir seu filho, que viajava periodicamente com a mãe para Goiânia. Era preciso trabalhar, arrumar recursos monetários para tantas viagens e gastos. Amigos pesquisadores apoiaram, mas Roxo também não ficou parado. Hoje o menino está curado, e o pai aliviado e agradecido.

Esta foto tirei hoje, em Cruzeiro do Sul, de onde cheguei há pouco. Roxo já há algum tempo tem um carrinho de lanche, e um ponto certo de venda: em frente ao Banco do Brasil. Ele mesmo produz os salgados e os sucos que vende, estima tirar por dia uma média de R$ 10 de lucro, descontadas já as despesas e a alimentação diária da família. Mas há dias que a venda é ruim, e a coisa toda fica mais difícil. Acho que Roxo ainda pensa em voltar para o seringal. Ele diz que continua fazendo suas pesquisas na cidade, observando o modo de viver e de ser das pessoas. É um entusiasta do Projeto de Pesquisa, e um sábio e sensato conselheiro. Ajudou-me muito quando coordenei atividades deste Projeto entre 2006 e 2007.

E Roxo também é, como não poderia deixar de ser, um pensador, um intelectual, mesmo um filósofo. Sua reflexão é delicada, fina. Aqui vai uma, intitulada “Pesquisador”.

Em 1993, na colocação Pão, passando a conhecer a Reserva Extrativista com Chico Ginú e Mauro, comecei a andar junto com os companheiros do Projeto de Pesquisa. Neste tempo aprendi muito mais, que não só tem o rio Juruá e o rio Jordão, tem muita coisa. Quando nós chegávamos nas casas das pessoas, e pessoal ficava espiando, pensando e tinha muita gente que perguntava: “Roxo, pra quê você está fazendo este trabalho?”. Eu respondia que não sabia. Muitas pessoas ficavam com medo porque não sabiam o que aquela pessoa estranha estava fazendo em sua casa.

domingo, 25 de novembro de 2007

Carta indígena - fronteira Brasil-Peru

24 de novembro de 2007

Aos Senhores Representantes de Instituições Governamentais, Não Governamentais e Organizações Indígenas do Brasil e do Peru

Nós, Asheninka da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia (Comunidade Apiwtxa) e da Asociación de Comunidades Nativas de Ashanínkas-Ashenínkas de Masisea y Callería (ACONAMAC), vimos, por meio desta, informar e manifestar a nossa mais completa oposição à exploração madeireira que afeta diretamente todos os povos da fronteira Brasil-Peru, sobretudo as nossas comunidades que se localizam na região da linha de fronteira Brasil-Peru.

1 - No lado brasileiro da fronteira, nós estamos, desde 1999, junto à Justiça e a vários órgãos do governo brasileiro tentando impedir que nossa fronteira seja invadida brutalmente por empresas madeireiras autorizadas pelo Governo peruano para exploração comercial em área de concessões florestal e em terras indígenas peruanas. Nós temos uma política que é proteger a nossa biodiversidade para garantir a nossa tradição, utilizar os recursos naturais sem causar desequilíbrio ambiental, que deve ficar por conta do processo natural do Planeta. A nossa vida sempre foi assim, mas não sabemos mais até quando vamos suportar.

2 - No lado peruano, ainda hoje temos os mesmos problemas que aconteceram no Brasil há vários anos atrás, os povos indígenas submetido a regras dos madeireiros, sofrendo violências e sendo alvo de enganação. Hoje, muitas comunidades vêem suas lideranças tradicionais trocadas por novos representantes, que são preparados por empresas somente para usar seu povo como mão de obra barata e fácil de enganar, para tirar proveito. Como exemplo, temos duas terras indígenas no lado peruano, Sawawo e Nova Shawaya, próximas ao marco 40, que firmaram convênio com a empresa Forestal Venao para explorar em suas terras vários tipos de madeiras nobres e ganhar uma porcentagem. Legalmente, as comunidades estão contratando os serviços da empresa e assumindo as conseqüências negativas que acontecem no âmbito local, e nunca aparece a realidade em que eles vivem, ganham uma pequena parcela do lucro, ficando este para os representantes comunitários que gerenciam de acordo com suas políticas. Na realidade, estão vitimando pessoas e povos com a violação de seus direitos. A Forestal Venao não é a única empresa, existem outras, como RuBem, Cabrera e outras, em que o trabalho é muito mais complicado e mantem um povo tradicional em um sistema de escravidão. Queremos uma intervenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

3 - Também temos visto e presenciado vários problemas de alcoolismo. O alcoolismo vem causando a desestruturação sociocultural do nosso povo, e gera pessoas que passam a ser destruidoras de suas próprias tradições e dos recursos naturais. O pouco dinheiro que ganham serve apenas para se prejudicar cada vez mais e ser mais dependente da exploração. Esse é um ciclo vicioso fomentado e imposto pelas empresas.

4 - No lado peruano, vários povos, assim como os Asheninka, há décadas vêm sendo usados para as frentes de exploração dos recursos naturais, muitas das vezes deixando suas terras de origem e acompanhando as empresas, eliminando vários conhecimentos do povo com relação à natureza e a nossa forma própria de utilizar os recursos naturais. Nessa luta, muitos povos também estão sendo eliminados. É o caso dos índios "isolados", as populações de índios em isolamento voluntário, que estão sendo mortas, sem que ninguém peça por eles. Nós presenciamos um fato de conflito entre nosso povo no Alto Juruá, no ano de 2003, onde tivemos depoimentos de Asheninka comentando que o conflito foi causado pelas empresas madeireiras, que expulsou os isolados de suas terras, matando vários deles.

5 - Também temos informações que grupos de exército Asheninka foram criados na época do Sendero para proteger o povo e hoje também são usados pelas empresas madeireiras, através das comunidades conveniadas, para vigiar seus trabalhos.

6 - O trabalho da empresa Forestal Venao, com duas comunidades aqui vizinhas à nossa, ganhou a certificação do padrão FSC. Nos perguntamos hoje se essa certificação foi dada para certificar o extermínio de várias espécies, florestais e animais. Também nos perguntamos se o plano de manejo certificado foi para invadir áreas da linha de fronteira e prejudicar diretamente o país vizinho e seus recursos, se foi para desrespeitar a faixa de 2 km (dois quilômetros) do trato de respeito à fronteira. Precisamos ver isso com mais atenção e mais detalhe, pois nessa região vivem seres humanos que precisam ser respeitados nos seus direitos. Também as Nações Unidas precisam ter conhecimento desse fato, e fazer valer o direito de cada povo ter direito à sobrevivência, não só o direito do homem sobreviver, mas o direito à proteção dos recursos naturais de que depende para viver, os rios, a flora e a fauna, que podem garantir, por fim, a vida do Planeta por mais tempo.

7 - No plano de exploração da Forestal Venao tudo parece perfeito, mas, na prática, a sua forma de exploração só tem gerado o extermínio de milhares de espécies e a poluição das águas, algumas das quais correm para o território brasileiro. Mais recentemente, começaram a chegar as concessões minerais e petrolíferas, que para nós serão uns dos maiores problemas e que precisam ser discutidos. E não aceitamos que as empresas tenham tratamento de vítimas, como é comum nos debates, onde colocam as mesmas como importantes e produtivas para o desenvolvimento da economia e os povos indígenas como improdutivos e atrasados.8 - Solicitamos a pronta manifestação das instituições endereçadas, e as convocamos para uma reunião na fronteira o mais rápido possível.

Assinam esta Carta
Associação Ashaninka do Rio Amônia (APIWTXA) e Asociación de Comunidades Nativas de Ashanínkas-Ashenínkas de Masisea y Callería (ACONAMAC)

Carta endereçada a: AIDESEP - Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana, Assembléia Legislativa do Estado do Acre, Conselho Nacional dos Seringueiros, COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, COICA - Coordinadora de las Organizaciones Indigenas de la Cuenca Amazonica, Colégio del Biólogos del Peru, Comissão da Amazônia, Integração Nacional e de Desenvolvimento Regional - CAINDR/Congresso Nacional do Brasil, Comissão de Direitos Humanos e Minorias – CDHM/Congresso Nacional do Brasil, CONAM, Consejo Nacional del Ambiente, Defensoria del Pueblo - Oficina Defensorial de Ucayali, Departamento da Polícia Federal, Governo do Estado do Acre, Exército Brasileiro, Ejército del Peru, FUNAI, IBAMA, INRENA - Instituto Nacional de Recursos Naturales/OSINFOR, Oficina de Supervisión de las Concesiones Forestales Maderables, Ministério da Defesa do Brasil, Ministerio de Defensa del Peru, Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Justiça, Ministerio del Justicia del Peru, Ministério das Relações Exteriores do Brasil, Ministerio de Relaciones Exteriores del Peru, OEA, OIT, ONU, OTCA – Organização do tratado de Cooperação Amazônica, Presidência da República Federativa do Brasil, Presidencia de la República del Perú, Procuradoria Geral da República, 6ª Câmara de Coordenação e Revisão Índios e Minorias, SEMA-Acre, Secretaria Estadual de Meio Ambiente.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Nossa amiga se foi...

Gente, soube hoje: a baleia minke não resistiu, morreu nas águas do Amazonas. Acho que ela deve ter sofrido um pouco. Lamento muito este desfecho. Que este não seja o destino da nossa floresta.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Visita ilustre

Semana passada uma baleia, minke ao que tudo indica, visitou-nos aqui na Amazônia. Ela foi vista já perto de Santarém, o que significa que enfrentou 1.500 km rio Amazonas acima. Perdida, assustada ou determinada, não sei bem em que estado fez a viagem, mas o fato é que fomos todos abençoados com uma presença absolutamente inusitada. Especula-se se ela se perdeu, se estava doente - o que a teria feito entrar no grande rio de água doce?

Também não sei, mas achei o fato tocante. Emocionou-me. Uma baleia, espécie ameaçada, aqui na nossa floresta, também ameaçada. Um encontro simbólico de gigantes da natureza. Os moradores da beira do rio, claro, assustaram-se, e falou-se em "cobra grande", provavelmente a "parenta" mais próxima da baleia aqui na Amazônia.

A última notícia que vi era que não havia mais notícia dela, pesquisadores temendo que ela tenha pouca chance de sobreviver. Vamos torcer por ela, rezar por ela, e agradecer por ter estado aqui entre nós tão majestoso e dócil animal, o maior do mundo, aqui no maior rio do mundo.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Sobre planos de manejo, Caipora e outros mistérios

Esta semana participei da qualificação da Renata Teixeira, aqui do Mestrado em Ecologia e Manejo da UFAC. Gostei muito do projeto dela, e de participar da discussão com os outros professores presentes. A Renata quer tratar de uma questão das mais relevantes no contexto atual: qual o papel do manejo madeireiro nas decisões que os seringueiros que dele participam passam a fazer sobre o uso de suas propriedades (colocações)? Lendo o projeto que foi examinado, me chamou atenção o termo “plano de manejo”. Na verdade, não é de hoje que já tinha tido minha atenção desperta: conversando com os seringueiros manejadores lá do São Luis do Remanso já pensara coisas parecidas com o que está logo aí abaixo.

O mote é o seguinte: que novidade é esta do “plano de manejo”? Da onde vem isso? O que ele introduz? Até que ponto ele é mesmo uma novidade? Ou o que nele é novo? Não sei falar de tudo o que pergunto – afinal, são perguntas – mas tenho algumas idéias, em especial sobre o “manejo seringueiro”.

É de domínio público e comprovado que o manejo seringueiro da borracha e da castanha ao longo desses mais de cem anos demonstrou ser extremamente seguro para a floresta – e isto não é obra de cientistas, e sim de moradores da floresta, indígenas incluídos. O manejo da fauna, pesca, madeiras, palhas etc, para fins de subsistência e dentro do sistema de colocações também é altamente eficiente. Nesse contexto de manejo florestal seringueiro, qual o elemento novo? Madeira para comércio, carne de caça para venda, copaíba para venda e por aí vai – ou seja, novos produtos, novas escalas, novas tecnologias, novas finalidades para produtos já conhecidos. E aí vem o nome: “plano de manejo”. Para quem não conhece e é novo na história, parece que as populações florestais agora finalmente estão acessando métodos de planejamento do uso da floresta.

Tem uma questão de fundo bem interessante nisso tudo sobre conhecimentos tradicionais e técnico-científicos. Quando um autor como Wyatt-Smith afirma que manejo florestal é “explorar a floresta de um modo a prover rendimento sustentado dos produtos florestais, sem destruir ou alterar radicalmente a composição e estrutura da floresta como um todo” (apud Teixeira de Oliveira), fico me perguntando em que esta definição seria incompatível com o manejo tradicional seringueiro... Lembrei-me da fala da professora Manuela Carneiro da Cunha sobre o equívoco que é achar que a ciência hegemônica, na sua interação com os conhecimentos tradicionais, vai legitimá-los.

Quais as interfaces entre o manejo seringueiro e o novo manejo? As novas técnicas de manejo são capazes, por exemplo, de assegurar a colocação como um sistema? Ou, ainda, garantir a sobrevivência de um manejo tradicional compatível com o novo? Ou seja, o novo ajuda a sobrevivência do tradicional? Consideremos ainda que para o seringueiro o manejo da floresta nunca foi uma questão puramente técnica. Parece que os seringueiros, produzindo borracha, mantinham acordos tácitos com a Mãe da Seringueira, e isto não é crendice, ingenuidade ou coisa que o valha. Isto é visão de mundo, isto é um mundo extremamente real, para quem o vive. É possível manejar (técnico-cientificamente) fauna, por exemplo, considerando o papel do Caipora na proteção das caças? No caso da madeira, que universo simbólico a cerca?

A madeira é comumente apresentada como um produto a mais a ser explorado no cardápio de possibildades que a floresta oferece, inserindo-se no tradicional sistema produtivo da colocação. Hum, não sei. A madeira não é um produto qualquer, sua inserção é um diferencial forte: tanto porque há polêmicas políticas e técnicas em torno do manejo madeireiro e sua sustentabilidade, quanto porque acredito que ela não é um produto extrativista da mesma forma que a borracha, por exemplo. A madeira tem um mercado consolidado e ávido. Tem preço, desde que se encontre o nicho e comprador certo, o produto seja beneficiado com qualidade, e também que se tenha tempo e algum capital para aguardar o retorno do investimento. Sua cadeia produtiva é longa e cara. Do momento que o produto sai da colocação do seringueiro até retornar em dinheiro, muita coisa se passa, muitas etapas são cumpridas, muito dinheiro é gasto. A não ser que se venda a madeira em tora: tirou, pagou.

Outro termo que parece caminhar junto com o de “manejo florestal” e faz parte de seu arcabouço: “produtores florestais”. O que é isso? O que esta idéia sugere? Uma nova perspectiva, um novo olhar sobre as populações florestais e também sobre a floresta. Tem a ver com rendimentos monetários e com o viver da floresta, sem derrubá-la. Tenho a impressão que junto com ela vem uma idéia de pequeno empresário florestal moderno: aquele que olha a floresta como um conjunto de recursos e a explora visando o máximo rendimento sem comprometê-la como fonte renovável. A floresta como um bom negócio. Mas, repito, e o Caipora?

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

De Cacique pra Presidente

Carta que o cacique Kaiapó Raoni entregou ao presidente Lula no dia 7 de novembro passado, em Belo Horizonte. Raoni esteve lá recebendo um prêmio do Ministério da Cultura.

Aldeia Piaraçu, 03 de novembro de 2007.

Ao Presidente da República do Brasil Luís Inácio da Silva –Lula

C/c para: Tarso Genro – Ministro da Justiça
Márcio Meira – Presidente da Funai

Nós estamos muito preocupados com o futuro dos nossos povos.

Queremos a demarcação do Kapôt Nhĩnore nesse ano. Há muito tempo estamos lutando pela demarcação, porque essa terra é sagrada e muito importante para o nosso povo Mebengôkre. Todos os anos os pescadores e fazendeiros estão invadindo e destruindo nossos recursos naturais e locais sagrados dentro do Kapôt Nhĩnore.

Além disso, sabemos que o seu Governo quer construir seis usinas hidrelétricas no rio Xingu e outras em seus afluentes, como no Tepwatinhõngô, que os brancos chamam de Jarina. Nós não vamos deixar construir essas usinas hidrelétricas que vão destruir nossos territórios, os nossos recursos naturais e a vida dos nossos povos.

Queremos a Funai fortalecida, recebendo e administrando todos os recursos que existem para os povos indígenas que estão espalhados em vários ministérios e órgãos governamentais. Não aceitamos a estadualização e municipalização da saúde e educação indígenas. Cada povo vai decidir como os recursos serão repassados e administrados para o atendimento de suas comunidades.

Não aceitamos a mineração em terras indígenas e principalmente sem autorização da comunidade indígena. Não queremos a entrada de mineradores, garimpeiros, madeireiros, pescadores e qualquer tipo de invasores em nossos territórios.

Queremos que os direitos indígenas conquistados na Constituição de 1988 sejam respeitados.
Presidente Lula, o Governo Brasileiro precisa respeitar e proteger os povos indígenas.

Assinam a carta:

Terra Indígena Kapoto –Jarina:

Aldeia Metyktire:
Raoni Metyktire
Karupi Metyktire
Iodji Metyktire
Pekãn Metyktire
Beptok Metyktire
Nokere Tapajuna
Jabuti Metyktire

Aldeia Kremoro (Kapôt):
Patoit Metyktire
Mokuka Metyktire
Yteí Metyktire
Bekà Metyktire
Ngôkontkaire Metyktire
Tõtire Metyktire
Mojkara Metyktire

Aldeia Krumare:
Bàka-ê Metyktire
Aldeia Kenpo:
Porekrô Metyktire
Kĩabjêti Metyktire

Aldeia Piaraçu:
Bedjai Metyktire
Meybã Metyktire
Pichanhã Juruna

Terra Indígena Xingu

Aldeia Tuba-Tuba:
Tinini Juruna
Karandindi Juruna

Aldeia Pakisamba:
Nhãnhã Juruna

Terra Indígena Mekrangôtire

Aldeia Angô’ã pari:
Krange Mekrangôtire

Aldeia Kamêrêkàkôp:
Karàkra Mekrangôtire
Pidjôbãrã Mekrangôtire

Aldeia Kororoti:
Nikàjti Mekrangôtire
Xik Mekrangôtire
Betoti Mekrangôtire
Bekôre Mekrangôtire

Aldeia Kubekàkre:
Kadjure Kaiapó
Ima Kaiapó
Màdmari Kaiapó
Nhàkêt Kaiapó
Ytumti Kaiapó

Aldeia Pykany:
Bekrê Kaiapó
Wakõtire Kaiapó

Aldeia Kendjam:
Pykatire Kaiapó
Môpdjô Kaiapó
Kàprõt Kaiapó
Bepngri Kaiapó

Terra Indígena Kaiapó

Aldeia Krĩny:
Kanhõk Kaiapó
Tôdkrã Kaiapó
Ngôtyk Kaiapó
Ire-ô Kaiapó
Mikin Kaiapó

Aldeia Gorotire:
Amjôti Kaiapó
Môj-y Kaiapó

Aldeia Kikretum:
Koãtoro Kaiapó
Bebajti Kaiapó

Aldeia Kokraimoro:
Kenti Kaiapó
Kôkti Kaiapó
Nepnoi Kaiapó
Banka-ê Kaiapó
Braire Kaiapó

Aldeia Pykararakre:
Kaĩxokaĩ Kaiapó
Kadjaĩtnhõrõ Kaiapó

Aldeia Kubekrankêj:
Paĩjtyk Kaiapó
Ykakôro Kaiapó
Rotkaĩre Kaiapó

Aldeia Tekrejarotire:
Parityk Kaiapó

Aldeia Mojkaĩraĩk:
Bemoti Kaiapó
Kaĩjkware Kaiapó
Oro Kaiapó

Aldeia Àykre:
Krwyĩte Kaiapó
Ômre Kaiapó

Aldeia Kawatxi:
Aĩkjabôrô Kaiapó

Aldeia Krãjaĩpari:
Pangraĩ Kaiapó
Bekwyĩka Kaiapó

Aldeia Pururu:
Kube-i Kaiapó
Terra Indígena Panara

Aldeia Nãsepotiti:
Perankô Panara
Kupêri Panara
Akâ Panara
Teseia Panara
Kretoma Panara
Pâtikâ Panara
Tukokian Panara
Sykia Panara

Assinam também a carta:
30 professores Metyktire e Mekrangôtire
10 professores Panara
3 professores Tapajuna
3 professores Juruna (Yudja)

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Homenagem póstuma


No dia 10 deste mês faleceu Jorge Terena, liderança indígena nascina na Terra Indígena Aldeinha, em Mato Grosso do Sul. Não sei muito sobre ele. Sei que era importante no movimento indígena, se sei também que era sociólogo formado. Um colega. Um colega de profissão indígena. Acho que teria gostado de conversar mais com ele.

Deu vontade de fazer alguma homenagem ao Jorge Terena, então busquei a foto na internet e reproduzo abaixo algumas de suas reflexões, publicadas num artigo que saiu na revista Galileu (31/08/2006):

Índio com diploma não é índio?

Algumas pessoas ainda acham estranho um índio ter bacharelado, mestrado e doutorado, mas muitos deles já são formados em áreas como história, direito, ciências sociais, engenharia, pedagogia e outras. A maioria dos que conseguiram essa formação não tiveram ajuda do governo para tal, e continuam não tendo.

Os estudantes indígenas às vezes passam por dificuldade nas cidades, mas por compromisso com suas comunidades insistem em adquirir ferramentas científicas e tecnológicas. Isso os permite discutir de igual para igual com os governos um planejamento de políticas públicas indígenas condizente com a realidade. Mas por que tanta dificuldade para ajudar um pequeno número de indígenas a concluir os estudos? Índio não precisa estudar?

Há 20 anos, o governo militar achava que lugar de índio era só na aldeia e queria mandar os estudantes indígenas de Brasília de volta para casa. Na época, os alunos adotaram uma frase de protesto: "Posso ser o que você é sem deixar de ser o que sou!". Contudo, a visão de que o índio que sai da aldeia abandona a própria cultura ainda persiste como preconceito. Ele não pode ter diploma e continuar sendo índio?

As escolas indígenas têm várias faces hoje. Podem ser mera imposição de modelos educacionais ou podem adotar métodos que não desprezam o pluralismo e a identidade cultural dos povos. Por isso é preciso fazer uma distinção entre educação indígena e a educação escolar indígena.
A educação indígena é o processo com que cada povo transmite conhecimento (em língua nativa) para garantir a sobrevivência e a reprodução cultural. Não é uma educação dentro de quatro paredes como todos estão acostumados, mas uma educação cotidiana. Quando um pai indígena leva o filho para caçar ou coletar material de artesanato, a criança passa por um processo de transmissão cultural de valores, história e crenças.

Já a educação escolar indígena deve congregar tanto o conhecimento tradicional dos povos quanto a cultura técnica e científica da sociedade brasileira como um todo. Um choque entre as educações escolar e indígena se deu por conta da existência de concepções de mundo diferentes.
A educação escolar seguia modelos dominantes, num incentivo à acumulação de bens, à competição e ao individualismo, contrária aos processos pedagógicos dos povos indígenas, que enfatizam diferentes formas de organização social. Mas a educação escolar indígena deve servir como um instrumento a serviço da autonomia de cada povo, que deve decidir o que é uma escola verdadeiramente indígena. É difícil para o Ministério da Educação integrar ações de ensino indígena nos três níveis de aprendizado. Se a educação escolar indígena ainda é capenga, imagine a superior. Existem algumas poucas experiências em universidades com licenciaturas específicas para atender à demanda de estudantes indígenas por cursos superiores. Mas será que estes cursos podem ajudar a solucionar os problemas enfrentados pelos povos no cotidiano?

Como os índios têm dificuldades para ingressar em universidades públicas, eles estão buscando o ensino particular, e a Funai não dispõe de verba para atender à demanda. Só um sistema integrado de educação escolar indígena, desde a educação básica até a superior, poderá garantir os princípios da especificidade, diferenciação e autonomia, que respeite a diversidade cultural, lingüística e as pedagogias próprias dos povos indígenas.

domingo, 11 de novembro de 2007

Arremedos urbanos na floresta

O papo hoje é sobre uma viagem recente que fiz. Passei quase todo o mês de setembro nas águas do rio Tejo, afluente do alto rio Juruá, hoje município de Marechal Thaumaturgo. Vou contar aqui um pouco do que vi e ouvi.

A primeira parada, vindo de Cruzeiro do Sul, foi na sede municipal. Lá, por três dias esperei uma passagem para subir o Tejo, e enquanto isso fui encontrando, a cada instante e esquina, antigos conhecidos do seringal, ex-moradores da Reserva Extrativista do Alto Juruá que se mudaram para a “vila”. Ora, Mal. Thaumaturgo já não é tão pequeno assim. Seus modestos e aproximados três mil habitantes não revelam por si o quanto a localidade vem mudando: ruas e ramais adentram o território municipal, sempre acompanhados do que parece ser um processo inevitável quando o assunto é “desenvolvimento”: o desmatamento. Chegando de avião é possível observar áreas abertas no interior e também nas margens do rio Amônea. E a coisa não pára. Tanto na ida quanto na volta, vi máquinas trabalhando, abrindo e terraplanando ruas, postes de luz sendo firmados, escavadeitas cavucando. Coisas de cidade...

Outra coisa de cidade: o lixo. O que fazer com o lixo? Em Mal. Thaumaturgo não há um aterro sanitário adequado, como deveria haver numa área tão ricamente biodiversa e considerada uma prioridade de conservação. Seus moradores e a natureza deveriam ter direito a isso: uma solução adequada para o lixo. Murilo, meu companheiro de viagem, filósofo e brasiliense, e morando por hora na sede dando aulas numa escola local, teve uma aventura recente na vila batendo-se pelo depósito dos couros de boi abatidos em outro local que não às margens do rio Amônea. Depois de uma sessão na Assembléia Legislativa, com a presença de seus alunos, vereadores e do vice-prefeito, o poder público assumiu a responsabilidade de recolher os couros para o lixão da cidade.
Mas não é só isso. O lixo muda. Quanto mais urbana Marechal Thaumaturgo se torna, mais seu lixo também se urbaniza, mais contempla artigos industrializados, mais plásticos passam a fazer parte do que deve ser descartado na natureza. A questão dos resíduos sólidos poderia ser acrescentada à das condições sanitárias e da poluição das fontes d’água. O que está acontecendo aos igarapés de Thaumaturgo? Há um maior, que desagua no rio Juruá, hoje praticamente um esgoto. E os outros? E as cacimbas, como convivem com as privadas? Perguntas incômodas, perguntas necessárias.

Mas por que mencionar apenas esses aspectos negativos? Em primeiro lugar, porque eles existem. Em segundo lugar, porque são relevantes. Não são exclusivos de Mal. Thaumaturgo, é verdade, mas estão lá. Claro está que esses aspectos não são o Município e que seus moradores têm apreço pelo seu local de moradia, e que por isso mesmo talvez esses temas deveriam ser uma prioridade na agenda municipal. Por que Mal Thaumaturgo não pode ser um município modelo em saúde pública e meio ambiente? Por que não?

Bom, vamos em frente, subamos o rio Tejo finalmente!

(para ler o artigo na íntegra, acesse a coluna Papo de Índio, publicada aos domingos no jornal Página 20, aqui em Rio Branco)

Alerta: espécie ameaçada?


Foi mais ou menos nesses termos que minha amiga Bia Saldanha, chegando no Alto Acre, Município de Assis Brasil, definiu o quadro que encontrou: “Mariana, os seringueiros estão em extinção!”. Como boa “soldada da borracha” que é, Bia estava quase que alarmada: fora lá para reuniões comunitárias com moradores da Reserva Extrativista Chico Mendes conversar sobre uma demanda de borracha para calçados ecologicamente corretos, e encontrou pouca gente interessada em cortar seringa...

Os mais velhos, bom, estão mais velhos, têm vontade mas o vigor físico já não é o mesmo; os mais novos, jovens, já não se interessam pela ancestral atividade de seus pais e avós. Restam os resistentes seringueiros, aqueles que têm amor mesmo pela atividade e que respondem de imediato a um pagamento que valorize o seu trabalho. Resultado: a demanda de borracha que, esperava-se, iria ser sanada em Assis Brasil, terá que ser complementada noutros seringais.

Lá no Alto Juruá, na Reserva Extrativista de lá, o quadro não é muito diferente. Seringueiros que cresceram na lida e hoje estão mais dedicados a agricultura e pecuária afirmam que não voltariam a cortar. Por que? – “Voltar a morar no centro?”, respondem, “sem escola, sem posto, longe da margem?”. Não, obrigado, respondem. Esta conversa não é unânime, mas é uma das tendências reinantes. Na verdade, acredito que além do baixo preço pago pelo trabalho do seringueiro, a atividade carece de prestígio. Qual jovem vai se interessar em especializar-se numa atividade mal paga e desprestigiada?


É grave e pesarosa esta notícia, a da extinção. Algo precisa ser feito. Coisas como aumento do louvável subsídio do governo estadual, que estancou nos R$ 0,70 há muito tempo. Ou o apoio de verdade ao projeto da Folha Líquida Defumada (FDL), desenvolvida pelo professor Pastore e sua equipe na UnB, que já implantou muitas unidades de produção nas florestas do Acre, mas que luta ainda com a falta de apoio e interesse dos governos. A FDL (foto acima) é uma borracha puríssima, de alta qualidade, produzida dentro da floresta e que dispensa a etapa de usinagem, ou seja, pode ir direto para a fábrica – uma maravilha! Há promessas de um convênio, por exemplo, com o governo do Acre – demorou!

Será que a seringa já é um símbolo do passado? Acho que ainda não, mas temos que cuidar, e logo! Na verdade, já perdemos foi muito tempo com tantos projetos de recursos vultuosos – como o Resex, do Plano Piloto (PPG-7 via Banco Mundial) – e que foram incapazes de dar um apoio sério e contínuo para o extrativismo tradicional da borracha, vocação natural deste Acre véio, que tem suas fronteiras demarcadas pela incidência desta fantástica árvore que é a Hévea brasiliensis. Se todo este dinheiro tivesse sido investido na melhoria do processo produtivo e no incremento de preço da borracha, garanto que tinha muito mais floresta em pé e muito mais seringueiro nessas matas.

Trabalho digno o do seringueiro. Quem quiser detalhes, tem um texto lindo na Enciclopédia da Floresta, organizada pela Manuela Carneiro da Cunha e por Mauro Almeida, publicada em 2002 pela Cia. das Letras. Lá, Mauro e Laure Emperaire contam com detalhes todo o conhecimento que a atividade envolve. Vale conferir, e ingressar neste exército de soldados da borracha, junto com a minha estimada amiga Bia.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Grave notícia da fronteira

Forte o relato-denúncia do sertanista José Carlos dos Reis Meirelles, que encontrei no blog do Altino Machado. O Meirelles chefia a Frente de Proteção Etno-Ambiental do Rio Envira (Acre), na fronteira do Brasil com o Peru, que tem como principal missão proteger territórios habitados por índios ainda não contactados.

Madeira, Ouro e Cocaína no Paralelo 10´

Tenho a impressão que escolheram o nosso pessoal da Frente Envira como alvo de tiro para iniciantes. Algum grupo de índios isolados -pouco provável- conseguiu roubar armas e munição e vem testando na gente a "novidade", ou, o que é pior, a mando de madeireiros, índios não vão mais nos dar folga.

Atiraram no nosso mateiro, o Jaboti. O chumbo, desta vez, acertou suas costas, ao contrário do tiro no Beré. Mas, felizmente, o cartucho devia estar molhado e o chumbo entrou só no couro grosso de Jaboti.

Acho que o nosso estoque de sorte está esgotando. No Beré, foi o tronco do paco-paco salvador. No Jaboti, o cartucho ruim, velho ou molhado. Uma hora o cartucho estará bom e a mira certa. É uma questão de treino dos atiradores.

E eu fico pensando na realidade do nosso serviço público. Não posso contratar meus mateiros. Tenho que pagá-los contra-recibo. O cara ganha a mixaria de R$ 500,00 por mês. Está longe da família, defedendo o território dos isolados. Esse mateiro dá resultado, pois defende o meio ambiente de fato. Esses homens mereciam um tratamento melhor do Estado.

Sabe o que a Funai fez com o cargo de mateiro? Extingiu de seus quadros. Afinal, pra que gente em campo? Pra defender o meio ambiente, os indios? Tem que ter, ao contrário, é um monte de assessores ganhando fortunas, cagando regras.

Um bando de técnicos em computação monitorando a desgraça via satélite, aviões e helicópteros, mas que só servem para constatar quando o estrago já foi feito. Para prevenção, para gente que leva tiro para defender a floresta, nada pode. E quando se pede um suprimento para pagar os mateiros a Funai fica frescando, dizendo que não pode, que isso e que aquilo.

Paciência tem limite e o couro dos mateiros não é de ferro.

Não seria melhor entregar ao Peru esta parte do território brasileiro esquecida pelo Estado brasileiro? Os madeireiros vão ficar felizes e explorarão toda a madeira que há, os traficantes plantarão grandes roçados de coca, algum garimpeiro poluirá de mercúrio as águas do Envira a procura de ouro.

O burocrata terá mesa e cadeira de mogno prá sentar sua bunda e olhar a telinha de seu notebook. Vai ter muita cocaína nos embalos das boates de Brasília com as peruas de silicone balançando seus anéis e braceletes de ouro. Tudo made in paralelo 10.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Parábola


Uma seguidora, muito sinceramente, disse ao seu Mestre, portador de imensa ciência e habilidades de cura:

- Mestre, eu queria conhecer o que o senhor conhece.

Ao que ele respondeu:

- Eu? Ah, eu só sei é comer arroz com feijão, bem cozido.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Pensamiento del Pueblo Waorani para el futuro

Antiguamente nuestros abuelos caminaban por todo nuestro territorio protegiéndolo en sus límites y enseñándonos los caminos, los ríos y los lugares donde están enterrados nuestros antepasados. El padre puma era el sabio espiritual, adivino y curador que tenía toda la magia que guiaba a nuestro pueblo y nos daba el poder para ser guerreros y vivir en bosque. El poder de los padre pumas defiende nuestro territorio.

Desde que llegaron los misioneros trataron de acabar con nuestras creencias, y nuestras tradiciones casi desaparecieron. Luego las empresas petroleras ingresaron a nuestras tierras contaminando y destruyendo la tierra. Cuando nos dimos cuenta, nuestras tierras estaban ocupadas y las familias dividas, entonces tratamos de recuperar nuestro territorio para volver a vivir como nos enseñaron nuestros abuelos.

Desde que nos dijeron que somos ecuatorianos hemos tratado de compartir los recursos con todos el Ecuador, pero no hemos sido beneficiados de esta explotación, no se han hecho políticas que nos respeten como nacionalidad indígena.

A mi me contaron que cuando nosotros morimos nos convertimos nuevamente en animales del bosque, en jaguares y anacondas. Y cuando entran las petroleras y las iglesias destruyen todo, acabando con nuestros espíritus y nuestros ancestros, cambiando nuestra cultura y tradiciones.

Actualmente existen siete empresas petroleras que contaminan y destruyen el bosque en el que vivimos. Además estas compañías dividen a las familias y causan enemistades entre hermanos, debido a las nuevas necesidades que se han creado. Las empresas no cumplen con los ofrecimientos que hacen, llevan militares a nuestras comunidades para vigilar los pozos y campamentos. Por las carreteras petroleras entran madereros ilegales que sacan madera de nuestro territorio.

Para nosotros es muy importante que se respete en su totalidad el territorio ancestral donde viven y sueñan los pueblos Tagaeri-Taromenane, que nadie ingrese a sus tierras ni roben sus recursos, que el Estado garantice que ellos puedan vivir en paz, con sus tradiciones, creencias y costumbres como siempre lo han echo. Que no les invadan las compañías petroleras, turistas, científicas, madereras, religiosos, Ong's de conservación, etc. Para nosotros nuestros hermanos son el último pueblo libre en la selva y pedimos al gobierno ecuatoriano que se solidarice con nuestro sentir y que respete a los pueblos Tagaeri-Taromenane.

Tengo muchas historias e ideas que contarles pero este espacio es muy pequeño para la larga historia de mi pueblo. Pero nosotros seguiremos viviendo en el bosque y no nos dejaremos callar. Mis abuelos eran fuertes guerreros que no dejaron entrar a los extraños , pero ahora yo soy amigo de otros pueblos y quiero que luchemos juntos para proteger mi territorio y el de mis hermanos Tagaeiri – Taromenane que viven en libertad y sin contacto con esta civilización.

Atentamente, Moi Enomenga

Para saber mais e ler a carta acima na íntegra, acesse http://www.amazoniaporlavida.org/

sábado, 27 de outubro de 2007

Uma outra ciência

Nesta semana, Mauro e Manuela estiveram no Acre, aqui em Rio Branco. Trata-se do casal de antropólogos Mauro Almeida e Manuela Carneiro da Cunha, que há mais de vinte anos realizam pesquisas no Acre e apoiam as lutas de suas populações por seus direitos territoriais, sociais, intelectuais, enfim, direitos a uma vida digna. Mauro, aliás, é acreano. Entre os anos de 1982 e 1983 viveu nos seringais do alto rio Tejo, cortou seringa, acompanhou o dia a dia dos seringueiros e dez anos depois defendeu sua tese de doutorado em Cambridge, infelizmente ainda não integralmente traduzida e publicada. Juntos, ele e Manuela organizaram a mais completa publicação existente até o momento sobre os conhecimentos e as técnicas desenvolvidas pelas populações locais do Alto Juruá, a “Enciclopédia da Floresta” (Cia. das Letras, SP, 2002). A Enciclopédia é resultado de um projeto que promoveu uma extensa e intensa parceria entre cientistas acadêmicos e moradores da floresta na região do Alto Juruá. Tive o privilégio de participar desta empreitada.

Na segunda-feira, dia 22, Manuela proferiu uma conferência num importante encontro promovido pela Embrapa sobre “etnociência”. Em sua fala, ela nos ensinou o que seria uma “ciência tradicional” e como nós, cientistas e representantes que somos da “ciência hegemônica”, deveríamos nos relacionar com a primeira: não a considerando um acervo pronto a que acessamos, e tampouco um conhecimento cujo valor de verdade será conferido por nossa ciência. A ciência tradicional é antes uma forma de produzir conhecimento, uma forma contínua e que pressupõe trocas de materiais e idéias entre os “cientistas tradicionais”. Ela depende ainda de condições (sociais, ambientais, legais) para que possa existir, tais como florestas e seu material genético preservados. É nesta perspectiva que questões como a dos direitos intelectuais deveriam ser tratadas, ou seja, ao invés de reproduzir um sistema de privatização para o conhecimento tradicional, como são as patentes, um outro regime deveria ser capaz de dar conta do dinamismo de sua forma de ser. Foi justamente pela inexistência de garantias dessa ordem que todo o material da “Enciclopédia da Floresta” (o botânico em especial) que poderia resultar em algum uso econômico até hoje não foi publicado.

Toda essa fascinante conversa teve continuidade nos dias que se seguiram. A foto acima ocorreu num descontraído bate-papo com Manuela e Mauro na Biblioteca da Floresta, um espaço cultural e do saber criado pelo governo do estado. No dia 24, Mauro proferiu sua palestra no encontro da Embrapa. Sua fala tocou num problema concreto: o que é um projeto de pesquisa ético quando se pretende acessar conhecimentos tradicionais associados a recursos genéticos? Ou, como garantir que princípios éticos possam se fazer presentes numa relação de pesquisa entre desiguais (academia e moradores da floresta)? A legislação atual ainda não é definitiva (é uma Medida Provisória), suas regras estão em pleno debate, mas de todo jeito não deixa de ser uma oportunidade, defendeu Mauro, de assumir que existem sim aspectos ético-morais em atividades científicas que envolvam colaboração de populações tradicionais. Nossa ciência hegemônica naturalmente resiste. Seus hábitos são muito arraigados, sua postura em geral inadequada, sua pretensão de verdade arrogante. E o fato é que é preciso tempo nas explicações e negociações com populações locais para que possam conscientemente assentir e colaborar com a pesquisa.

Boas reflexões nos trouxeram esses bons amigos. Que seu retorno seja breve!

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Vinheta


Se quieres ser feliz, como me dices

No analises, no analises...

sábado, 20 de outubro de 2007

Nova morada


Na vila Restauração, e ao longo de todo rio Tejo, e também do Juruá, e, enfim, de toda Reserva, o povo está de casa nova. São as casas do crédito-moradia do Incra. Já em janeiro de 2006, quando voltei a Reserva após uma longa ausência, me chamou atenção as casas que agora via coloridas nas margens do rio, todas de madeira serrada e cobertas de alumínio – materiais exigidos no contrato assinado pelos beneficiários. As casas tem mesmo uma metragem padronizada, mas muitos moradores investem recursos próprios e modificam o projeto original. É assim que surgem casas fartamente avarandadas, ou de dois andares, ou internamente muito amplas. Economiza aqui e ali, estica lá e cá, pronto, a casa dos sonhos está pronta! A do Bé e da Bia (ver acima), um jovem casal muito bacana, tem a varanda assoalhada com ripas de paxiúba, uma palmeira tradicionalmente utilizada no assoalho das antigas casas de seringal. Na postagem anterior há fotos destas casas na vila Restauração.

As novas moradias são unanimamente saudadas como algo positivo, uma melhoria. Poucos são os moradores que ainda não acessaram o seu crédito-moradia, quer dizer, dos que estão cadastrados. O fato é que tem sempre novos candidatos aparecendo, em geral os filhos e filhas que vão se casando e querendo sua própria casa. Observei também um movimento de filhos e filhas, netos e netas, morando em municípios vizinhos e aproveitando o crédito para construir sua casa na Reserva e para lá retornar. Mesmo jovens que vi indo para Cruzeiro do Sul planejavam construir sua casa na Restauração, passar uns tempos na cidade trabalhando, e voltar para junto dos parentes. Interessante esses movimentos todos, e como as pessoas se apropriam das políticas públicas para viabilizar seus desejos e projetos.

Mas como nem tudo é perfeito, o outro lado da moeda sempre aparece. Uma queixa corrente é a falta de controle com que as madeiras para construção das casas foram extraídas. Ou seja, o impacto ambiental de uma política governamental desta natureza e dentro de uma Unidade de Conservação. Comenta-se que houve muito desperdício, que há muita madeira derrubada da qual utilizou-se apenas parte, ficando o restante na mata, apodrecendo, virando “paú” (adubo). Pude ver alguns desses pedaços quando andamos (meu compadre Pedro, Murilo e eu) até o paranã do Machadinho, mais acima no Tejo. Mesmo ali no campo de futebol da Restauração havia uma samaúma imensa, que hoje jaz no chão, quer dizer, parte dela, a outra virou, ao que soube, caixaria. Moradores antigos da vila Restauração queixam-se de que suas estradas de seringa foram invadidas e muita madeira foi retirada sem seus consentimentos – o que seria uma regra antiga de propriedade a ser seguida. Os novos financiados, afirma-se, vão ter que buscar madeira longe...

A meu ver, todo o processo teve e está tendo também implicações no padrão de distribuição dos moradores na Reserva. A sociedade de seringal sempre foi marcada por uma grande mobilidade de sua população humana, embora isso possa parecer contraditório com o controle que os patrões seringalistas deveriam exercer sobre seus trabalhadores, os seringueiros. Mas o fato é que o povo mudava muito de lugar, mesmo depois da Reserva criada, em 1990. Com as mudanças na economia extrativista, o aumento da atividade agrícola e pecuária e as políticas públicas de saúde e educação, os surgimento de empregos e outras oportunidades, bom, todo esse padrão de alta mobilidade começou aos poucos a se alterar. Escolas e postos de saúde começaram a atrair as pessoas; empregos e diárias também; os centros da mata começaram a ser abandonados em favor de locais mais acessíveis nas margens dos rios; equipamentos públicos nas margens favoreceram o surgimento de núcleos populacionais mais densos. A vila Restauração é parte desse processo (aqui descrito meio suscintamente demais). O que quero sugerir é que com o crédito, o padrão “vila” se consolida.

Casas de madeira serrada e alumínio duram muito, e não são propícias a mudanças. Não se deixa para trás uma casa desta, como se fazia com as antigas casas de paxiúba e cobertura de palha. Este novo estilo de moradia vem acompanhado de uma outra forma de ocupação do espaço e de uso do ambiente e seus recursos. Pastos são investimentos, são custosos, e não são também transportáveis. As estradas de seringa não eram transportáveis, mas estavam em todo lugar! Agora, parece que as casas são construídas pensando numa fixação. Os mais velhos pensam nisso, e seus filhos também. O que parece é que o lugar eleito é um mixto de relações familiares e de percepção de indicadores de prosperidade. O que é esta prosperidade enxergada?

terça-feira, 16 de outubro de 2007

A cidade e a floresta


Um arremedo de cidade no meio da floresta. Assim poderia ser descrita a vila Restauração, decretada enquanto tal em 1993 pela Prefeitura de Mal. Thaumaturgo, mas que só floresceu mesmo quando uma escola de segundo grau foi implantada lá, em 2005. Aí, rapidamente, as cerca de 12 casas que existiam lá desde o final dos anos 90 transformaram-se hoje em quase 100. Não há ainda um censo, mas Mariazinha, auxiliar de enfermagem, nos contou que entre 0 e 5 anos há aproximadamente 70 crianças na vila. A população deve girar em torno de 500 pessoas. Já é um grupo bom de gente. Imaginem que toda esta gente tem que morar, comer, beber, dar vazão as suas necessidades fisiológicas, tomar banho, lavar roupa. Toda esta gente consome e produz lixo também. E toda essa gente planta e cria, caça e pesca, tira madeira para suas construções e outros extrativismos.

Um núcleo com características urbano-florestais. Um sonho de cidade sonhado na floresta. A combinação, a meu ver, acaba ficando com um “quê” de inadequação. Quer-se viver na floresta tal como se na cidade? A sede do Município é isto desenvolvido, ou seja, expulsa-se a floresta, abrem-se ramais, terrenos para casas, coloca-se postes de luz, e no entorno colônias com pastos e áreas agrícolas. Expulsam-se as árvores e todos andam no sol...

Mas voltando a Restauração, saí de lá realmente intrigada com o que pensam os moradores da vila sobre seu local de moradia e o que sentem em relação a ele. Por que sair de suas colocações, muitas delas com anos de investimento familiar e fartura de alimentos? Por que vir morar num local reconhecidamente, e cada vez mais, “ruim de rancho”? Vir morar “apertado” e sem escolher os vizinhos quando o costume sempre foi justamente o contrário? A justificativa que se ouve é “a escola”, isto é, oportunidade para os filhos estudarem e, esta é uma esperança, terem um futuro melhor. Melhor do que o quê? Há tantas inversões aí...


Tomando de barato que a existência da escola é motivação suficiente para tanta mudança (acho que isso precisa de melhor investigação), a idéia de um futuro melhor encerra algo perverso: a desvalorização de saberes e práticas desenvolvidos ao longo de cem anos na floresta. Conhecer a mata, saber andar nela, rastrear a caça, identificar plantas para remédios, reconhecer uma boa terra para o plantio e saber como fazê-lo, zelar e trocar sementes, perceber os movimentos da natureza e a mudança das estações, e ainda saber tratar seus semelhantes, ser solidário, vizinhar, realizar adjuntos, saber “pegar menino”, e tantos outros conhecimentos e saberes que dizem respeito a vida natural e social – tudo isso parece estar perdendo o valor. Conhecimentos tradicionais? Lá os próprios protagonistas parecem ainda não saber que isso dá pano para manga...

O que é o futuro melhor? Ter um salário, parece, um emprego. Um emprego na floresta? Para viver na floresta agora precisa de salário? Isto tudo quer dizer que há desemprego na floresta? Disse-me Osmildo Kontanawa: - Disposição que Deus me deu para trabalhar: este é o meu emprego! Quase bati palmas. Mas é fato: o dinheiro penetra em todos os rincões, e está lá na Restauração, nos comércios que crescem, nas relações entre os moradores, no que antes era dado e agora é vendido. É preciso pensar melhor sobre tudo isso. É preciso agir também.

domingo, 14 de outubro de 2007

É fantástico?

Acabo de ver uma reportagem no Fantástico sobre mudanças climáticas. É de domínio público a dramática situação em que nos encontramos no planeta. Pois bem, a uma determinada altura da reportagem, foram elencados duas causas principais de tanta alteração climática e ameaças ao meio ambiente (lixo, escassez de recursos etc). Não lembro se a palavra foi “causas”, mas eram dois pontos que precisam, na opinião do programa, serem enfrentados e para os quais soluções são urgentemente necessárias. Superpopulação e concentração de gases na atmosfera. Estavam ali os dois vilões do nosso drama atual.

Mas será possível, pensei, que meus amigos Kontanawa, que vêem com bons olhos o crescimento demográfico de seu povo com o expressivo nascimento de novas crianças, estejam entre os culpados do aquecimento global? Alegrar-se com o crescimento demográfico é comum entre povos e minorias que começam a se reerguer de anos de massacre e subjugação. Quanto aos gases na atmosfera, bem, entendo que são antes efeitos e não causa, ou seja, há uma relação de causalidade aí que parece estar invertida. Como e por quê aqueles gases foram e estão indo parar na nossa atmosfera? Acho que esta é a pergunta.

Por que não se fala uma palavra de todo o sistema que está por trás de tudo isso? De toda indústria de consumo e de guerra que ganha muito com tudo isso? É como se nosso mundo capitalista fosse algo “natural”. (Alguém já viu “The Corporation”?) Os gases na atmosfera são as flatulências de toda esta grande engenhoca. A (super)população, o mercado consumidor. Lá na Restauração, no alto rio Tejo, o lixo aumentou, é verdade, e plásticos são cada vez mais frequentes. Mas se os moradores compram é porque tem quem produz, divulga e vende aquela porcaria toda.

E aparecia o sr. Wilson dizendo, como tantos outros, que não precisamos parar o desenvolvimento, e sim fazer com que ele seja sustentável. Alguém consegue acreditar que é possível uma economia capitalista sustentável? Quem quiser, venha a Rio Branco e assista as carretas transportando madeira no verão – onde que aquilo pode durar para sempre? Ah, que saco...

sábado, 13 de outubro de 2007

Telefonia florestal

A Vila Restauração fica longe. Da sede do Município de Marechal Thaumaturgo até lá, rio Tejo acima, fizemos em um dia e meio. Mas o rio estava com mais água do que agora, quando, de volta, gastamos dois dias e meio para percorrer o mesmo percurso. Chegando lá, como se comunicar com o mundo? Ou pelo menos com a sede municipal...

Até bem pouco tempo não tinha jeito. Chegou lá, se conforme (e se alegre) pois notícias só as que vem de fora via rádio. É verdade que televisão e antena parabólica já existem no local há alguns anos, mas precisam de energia elétrica e o gerador comunitário está quase sempre quebrado ou “seco” (sem combustível). Rádios funcionam a pilha, mais garantido. Ano passado, se não estou enganada, chegou um orelhão. Mas logo quebrou. Liga pra quem pra vir consertar? Boa pergunta. Mas junto com o orelhão, que maravilha, veio o mais fantástico sistema de telefonia que conheci.

Vocês podem observar na foto. É uma antena da Embratel. Lá, não sei como, descobriu-se que é possível plugar um aparelho de telefone comum e ligar para onde for preciso, sem custo para o usuário. Muito justo. Alguns moradores têm aparelhos, que emprestam de bom grado, e aí você vai lá, por vezes enfrenta uma fila, e aí faz os seus telefonemas. Bom, não tem privacidade, mas quem é mais descontraído não se faz de rogado e namora mesmo no telefone. É engraçado.

Uma pena: quando saí de lá o sistema não estava funcionando. Parece que alguém tinha cortado um fio, ou feito algo que tirou tudo do ar... Chama quem pra consertar?

Lôro


É comum encontrarmos animais da mata sendo criados nas casas dos moradores da floresta. O papagaio, popular (aqui e lá) “lôro”, é talvez o mais comum. Na casa de seu Milton e dona Mariana, no alto rio Tejo, havia um. Já o conhecia de outras viagens, ele já vive com o casal há algum tempo. Sua “dona” é reconhecidamente, parece que inclusive por ele, dona Mariana. A foto acima não deixa dúvidas. O afeto é mútuo.

Mas o Lôro, como é chamado, é um ser interessante. Bastava nos sentarmos no chão da cozinha para as refeições, qualquer uma delas, e já ouvíamos ele se aproximar. Em geral vindo do alto, das partes mais altas da casa, sua habilidade para chegar de lá ao solo é digna de um artista de circo. O bicho vem se agarrando com o bico e as patas pelas laterais da parede ou de uma porta, até que chega no chão. Findo o malabarismo corporal, ele seguia andando, com um gingado meio deselegante, até o centro das refeições. Lá recebia sua porção: um pedaço de macaxeira, banana, um pouco de jacuba (farinha + água). Findo o repasto, nosso artista tomava o caminho de volta...

Um cuidado devíamos ter: botões e fechos – ele os adora! Tive um botão de um short destruído por ele, Murilo o chapéu furado. De uma bermuda de seu Milton ele arrancara o zíper. E se você o pegava no flagra e ralhava com ele, expulsando-o do local, ele emitia um som tipo “não vem não”, meio de quem não está gostando da bronca. Ele ficava aborrecido. Este Lôro!


É verdade que ele não é especialmente conversador, só quando fica mais à vontade, sabe, pega uma intimidade. Ele tem sensibilidade, convenhamos. Aí ele diz umas gracinhas e fica mais amigo. Um dia, chegando pela manhã em casa, onde sabíamos estar Murilo sozinho, seu Milton e eu ouvimos duas vozes conversando: “tem alguém aí com o Murilo”, eu disse. De fato, lá estava o Lôro, todo íntimo, quase dentro da rede, dizendo das suas. Nesta segunda foto, o Lôro “ajuda” seu Milton numa colha de arroz. Ajuda é modo de dizer, ele devia estar mais interessado é em comer os grãos de arroz...

Gostei de conviver com o Lôro essa temporada. Tadinho, teve uma vez que tomou uma pisa das galinhas, e ainda seu Milton pisou sem querer numa de suas asas – tudo no mesmo dia. Ele ficou meio abalado, e desconfiado. Também não gostava nada quando ameaçávamos puxar uma pena de seu rabo. Eu o fazia só de troça, mas Claudete, neta de seu Milton e dona Mariana, chegou a conseguir algumas penas para os brincos que fabricava. O Lôro não gostou de jeito nenhum, e dona Mariana também protestou.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Pêssego


Proust

Só de ouvir a voz de Albertine entrava em orgasmo. Se diz que:

O olhar de voyeur tem condições de phalo
(possui o que vê).

Mas é pelo tato

Que a fonte do amor se abre.

Apalpar desabrocha o talo.

O tato é mais que o ver

É mais que o ouvir

É mais que o cheirar.

É pelo beijo que o amor se edifica.

É no calor da boca

Que o alarme da carne grita.

E se abre docemente

Como um pêssego de Deus.

Manoel de Barros

domingo, 9 de setembro de 2007

Seu Milton e dona Mariana

O casal acima é o seu Milton Gomes da Conceição e a dona Mariana Feitosa do Nascimento. Vivem no alto rio Tejo, um pouco abaixo da Restauração. Vou visitá-los agora em setembro na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Somos velhos conhecidos, desde 1991 e mais intensamente a partir de 1993, quando morei em Cruzeiro do Sul. É, são uns 15 anos de conhecimento mútuo. Uma longa história. Parte dela está registrada num livro que publiquei sobre a família em 2004, intitulado “Os Milton. Cem anos de história nos seringais”. Lá, junto com seu Milton, dona Mariana e filhos e filhas, está narrada a história de constituição desta família ao longo do século XX, desde a chegada dos primeiros nordestinos na região e os conflitos com os povos indígenas nativos, até o fim do regime dos patrões, nos anos 80, e a criação da Reserva.

Ambos são naturais da região: seu Milton é nascido no vizinho rio Jordão, hoje a Terra Indígena Kaxinawá do rio Jordão, e dona Mariana nas proximidades da Restauração, embora tenha passado toda a sua mocidade também no rio Jordão, onde conheceu seu Milton. Em 1955, já casados mudaram-se para o rio Tejo, numa localidade bem acima da Restauração. Desde então residem na região, onde tiveram seus filhos, os criaram – todos casados e morando nas vizinhanças – e agora, aposentados, olham pelo futuro dos netos e bisnetos. Toda a família (pais, filhos e filhas, netos e netas, bisnetos e bisnetos, mais afins e alguns colaterais, como primos de vários graus) soma hoje quase 400 pessoas.

Mas, por que “os Milton” no título do livro? Este é um costume no seringal e tantas áreas do interior: o nome do patriarca (ou matriarca) vira um nome de família, de identificação, mais pelos de fora do que pelos próprios. Porém, hoje, “os Milton” estão num outro momento e movimento, e sua forma de reconhecimento está inclusive mudando. Hoje preferem ser chamados de “os Kontanawa”.

Seu Milton e dona Mariana são emblemáticos da história do Acre: ambos são filhos de índios capturados em “correrias” e que vieram a se unir a nordestinos recém-chegados – uma síntese do que é a população acreana, embora o lado indígena costume ser negado pela maioria... Pois bem, incorporados à empresa seringalista os ascendentes indígenas da família viveram à moda seringueira esses anos todos. Bom, o viver seringueiro tem muita herança indígena, é um viver na floresta, então há conhecimentos, alimentos, tecnologias que foram aprendidas com as populações nativas. Mas um seringueiro, em geral, não gosta de ser chamado de “caboclo” (no Acre sinônimo de índio). É de conhecimento público, contudo, que a família de seu Milton e dona Mariana sempre foi conhecida como “os caboclos do Milton”, este casado com “a cabocla Mariana”.

A história anda, o mundo gira, e “os Milton” começaram a perceber que estava na hora de reavivar a porção indígena de seu modo de ser. Este processo começou mais intencional e intensamente por volta de 2003, e agora encontra-se a todo vapor. É uma história comprida e cheia de novos personagens – em particular a geração mais nova da família – e que não cabe explorar aqui. De toda forma, toda essa reviravolta na vida da família é um dos motivos da minha viagem: quero observar mais de perto, conversar, documentar, melhor compreender os meus amigos.

Eu, de antropóloga rural, digamos, estou me tornando etnóloga; meu livro, um livro de etnologia. E depois dizem que o antropólogo tem que tomar cuidado para não interferir na vida dos seus pesquisados... minha experiência é que esta é uma via de mão dupla.

Em tempo: o livro está esgotado desde o ano passado, mas uma nova edição do mesmo acaba de ter seu projeto aprovado na Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Então, ano de que vem, uma nova edição de um livro que já virou história...