sábado, 31 de agosto de 2013

A Ontologia Barrageira: Represas, Contingenciamento Orçamentário e Outros Cinismos

Por Juan Felipe Negret Scalia


Tanto faz represar um rio ou contingenciar o orçamento. Interrompe-se o fluxo contínuo, suprime-se a diversidade de imaginários, de representações e de valores-de-uso, aplica-se todo o poder institucional na literal canalização de certo potencial aos surdos e únicos propósitos que a própria ontologia consegue visualizar. Invisibilizam-se os demais mundos possíveis. Seca e contingenciamento a jusante, e alagação e acumulação a montante.
A ontologia barrageira, ou por tecnicamente dizer, ontologia do aproveitamento hidrelétrico atua por corte de fluxos. Atua por certa fractalidade: a partir da Casa Civil criam-se Pequenas Centrais Hidrelétricas operando contingenciamentos em todo Ministério e toda Autarquia por meio dos setores de contabilidade e finanças; e ainda mini-PCHs em todo o território nacional, em cada unidade descentralizada do Estado brasileiro, cada Superintendência, cada Delegacia ou Coordenação Regional. Todos obrigados a represar os fluxos das políticas públicas. Uma sutil linha de transmissão se encarrega da concentração fractalidade acima.
Administrar um país é igual a construir uma barragem. Estabelecem-se muralhas por Decreto: rio-acima da muralha a acumulação, rio-abaixo da escassez canalizada para a reprodução da própria obra. “Crescer o bolo para dividir”, dizia-se em campanha: o paradoxal aumento em números absolutos da renda da classe média, apesar do distanciamento em números relativos entre o mais rico e o mais pobre.
As eclusas se abrem para reprodução das mesmas obras, da própria ontologia: dos estádios de futebol, dos aeroportos, de mais eclusas. Mas são estas mesmas eclusas que se encarregam de enclausurar o próprio o Estado quando tenta chegar aos assentamentos de reforma agrária, às favelas, às aldeias e seringais: nem sequer apresentar-se nas paisagens da miséria quando a própria barragem inundou os agricultores, desalojou bairros pobres, indígenas, quilombolas; todos alagados-desterritorializados. “A idade do cinismo é a da acumulação do capital, porque é ele que precisa de tempo, precisamente para a conjunção de todos os fluxos descodificados e desterritorializados.”[1] 
Não se trata somente de ser contra a Usina de Belo Monte ou do Tapajós; nem tampouco de somente disputar o projeto político de país; trata-se de um deslocamento mais complexo ainda dos contornos ontológicos. Neste ano, governo comprou 1.591 motoniveladoras e 3.995 retroescavadeiras: “viram ‘souvenir’ de Dilma para prefeitos”, diz a manchete do Blog. 
A ontologia barrageira é incompatível com um dito Governo Popular. Um bom-governo só pode agir por dentro de uma ontologia dos rios livres, dos rios voadores!


[1] Deleuze e Guattari, . O Anti-Édipo.