quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Saramago II

Falamos muito ao longo desses últimos anos dos direitos humanos; simplesmente deixamos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação ao outro, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro da existência de uma espécie que se diz racional.

*

O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do quotidiano, tudo isso contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses.

*

Temos que acreditar nalguma coisa e, sobretudo, temos que ter um sentimento de responsabilidade coletiva, segundo o qual cada um de nós será responsável por todos os outros.

*

Estou convencido de que é preciso continuar a dizer não, mesmo que se trate de uma voz pregando no deserto.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Saramago I

"Penso que estamos cegos,
cegos que vêem.
Cegos que,
vendo,
não vêem."

"Se podes olhar, vê.
Se podes ver, repara."

sábado, 25 de dezembro de 2010

Feliz Natal!

Dia 25 de dezembro de 2010. Após uma noite de festa, canto e bailado no Alto Santo, na companhia da irmandade sob os cuidados da Madrinha e cantando o hinário do Padrinho, nos reunimos para um almoço natalino na casa da Vera e do Luis - este casal tudo de bom aí em cima.

Na casa também mora o Bernardo (à direita na foto), filho da Vera e do Luis, que teve a companhia do Júnior (o do meio), enteado da Silvana, mãe zelosa na foto olhando a farra da dupla. Estávamos todos na sobremesa, um petit gateaux feito na hora pela Bebel, também filha da Vera, e sorvete, além da rabanada e uma torta de nozes. E café, que ninguém é de ferro depois de uma noite pouco dormida.

Aí somos Ana e eu, amiga querida deste 2010, cheio de aventuras e fortes vivências para ambas. Ficamos com saudades do Caio, filho da Ana que está passando as festas de fim de ano em São Paulo. Mas soubemos que ele está muito feliz e com agenda lotada de programas!

Muita conversa boa e divertida, gente amiga reunida. Gabriel (à esquerda), Marcelo (centro) e Luis, o dono da casa.

Em frente a eles, Bia (esposa do Marcelo), Caetano (filho mais velho da Vera) e Keilah, a Diniz, pra quem não conhece. Rolaram, por exemplo, lembranças do campeonato brasileiro, quando o Fluminense, que não é santo, obrou milagres, como se diz, salvando-se gloriosamente de um rebaixamento dado como certo...

E aí estão a Bia e a Keilah, que é mãe do Gabriel, que veio de Brasília especialmente para o Natal e para o aniversário dela, ocorrido no último dia 22 e comemorado numa animada festa que abriu os salões da varanda da casa nova da Keilah com um baile em alto estilo, reunindo a dileta sociedade do Irineu Serra!

E pra finalizar, uma foto iluminada da nossa Bebel, que preparou o petit gateaux. Ela acaba de voltar de uma temporada nos States, na casa da Cila e do Marcus, e voltou cheia de novidades: tá mais linda do que já era, descobriu a maquiagem (de leve) e incrementou seu astral com a experiência toda. Um axé, esta Bebel!

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Nasce uma Estrela

Vera Olinda

Nascer e morrer são complementariedade e mistérios. O bom é que os mistérios não são desvendados e assim não quebram os encantos da vida. Acredito que os seres encantados, os seres iluminados, nos sustentam na terra. Acho que eles nos mantêm ligados a natureza. São muitos os bons seres iluminados em órbita e, ontem, dia 20 de dezembro de 2010, ganhamos em outro plano a força da proteção do Sr Raimundo Luiz Yawanawa, que fez sua passagem.

Ficamos todos tristes, ficamos com saudade. Mas confortados pela força transformada do “Velho Raimundo”, como era chamado com carinho. Já sabemos de sua trajetória como liderança yawanawa, que lutou pela sua terra, que organizou seu povo para este mundo diverso. Junto com a luta pela terra o “Velho Raimundo” era um homem muito sabido. Sabia muito dos conhecimentos indígenas milenares. Sabia dar conselhos, sabia e gostava de ensinar, sabia ouvir. Outra característica marcante era o encanto absoluto com sua risada altíssima, inconfundível, que muitos de seus muitos filhos herdaram. Alegre, muito alegre. Como um membro nato da família lingüística pano, sua etiqueta de bem receber era absoluta: convidava, oferecia, trocava, informava, encantava o visitante e adorava filosofar. Incrível sua capacidade de entender e explicar as coisas, o mundo, os fatos dos mundos indígena e não indígena.

Bravamente segurou firme um tratamento de quimioterapia em Rio Branco, mas foi em Tarauacá, mais perto de sua terra indígena e de seus parentes, que escolheu virar um ser iluminado. Na verdade ele fez uma parada em Tarauacá, no caminho de volta para sua aldeia atual, chamada Mutum. Ontem, subiu o rio numa canoa, passou pelo Mutum e vai ficar todo o tempo no Kaxinawa, o primeiro lugar do povo Yawanawa, o lugar atual dos sábios e dos seres iluminados.

Um pouco antes de ir por definitivo conversou com Julia, Tashka, Mariazinha, Sales e outros familiares e pediu que segurassem o que ele começou, pediu que cuidassem da terra indígena, que não voltassem atrás, que seguissem seus ensinamentos. Eles disseram que assim será.

O Velho Raimundo Luiz foi uma escola diferenciada para nós todos. Agora virou ser iluminado, ou nasceu estrela, mas sua luz continuará brilhando em florestas e cidades para fazer deste, um mundo mais pró índio.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Dicas de ouro

Quem conhece e quem não conhece o seu Antonio Pedro, vale visitá-lo. Onde? Num blog onde ele está esperando, apresentando o seu trabalho, suas músicas e enverseios. Como está dito lá:

"Este é o 1º registro da obra musical do Sr Antônio Pedro da Silva, que aos 68 anos de idade tem agora a oportunidade de apresentá-la para a humanidade. Após 2 anos de pesquisa, apresentamos este documento sonoro histórico que procura retratar e reviver o panorama da música de raiz dos seringais do interior das florestas do estado do Acre, mais precisamente as regiões do alto Envira e rio Purús, abrangendo os municípios de Feijó, Manuel Urbano, Sena Madureira e Boca do Acre."

Este ano o seu Antonio Pedro e banda lançaram dois CDs, produzidos por meio da Lei de Incentivo a Cultura: "Enverseios" e "Festa no Seringal". Quem ainda não conhece, cuida!!!

Mas aí, se você vai no blog, é apresentado também, se ainda não conhece, ao Alexandre Anselmo, músico de mão cheia, paulistano aterrisado no Acre, já com família aqui, meu compadre com orgulho. Aí a visita já é dupla, pois num outro blog é possível conhecer mais sobre as "arrumações" do Alexandre aqui pelo Acre. Seus trabalhos incluem a "descoberta" do seu Antonio Pedro e coordenação de todo agito que resultou nos dois CDs, bem como em shows e apresentações diversas, muitas delas de cunho comunitário, envolvendo gente de bairros, escolas. Tudo isso está articulado no Projeto Baquemirim, que inclui ainda oficinas de lutheria e de música. Cultura acreana da boa!

domingo, 24 de outubro de 2010

Escapando por pouco...

Ontem estava em casa, na varanda, corrigindo provas de alunos e organizando as coisas da disciplina "Antropologia 1" que estou ministrando no curso de História da UFAC. Pois bem, maior calor, ventilador ali ligada, eu tentando me concentrar nos textos dos alunos, avaliando, corrigindo ortografia, essas coisas. Eis que, de repente, toca o telefone.

Atendo. De forma rápida uma moça começa a falar, dizendo que era da TAM e ItaúCard. Ela falou isso muito rápido, não me deu tempo nem para processar, e em seguida começou a dizer que eu era portadora agora de um novo cartão que ia me dar acesso a isso e aquilo da TAM nas minhas viagens, não ia pagar multa etc etc. Ela falava tão rápido que eu não lembro direito tudo que ela falou, e eu também não estava muito interessada. Pouco viajo pela TAM, acho um saco esses telemarketings, mas havia feito uma viagem recente ao Maranhão e minhas pontuações tinham aumentado e isso devia ter resultado na minha "promoção" do reles cartão branco para algum de outra cor, e além disso, coitada, não ia desligar na cara da moça, afinal ela também é um ser humano, trabalhando pra viver... E ela continuava falando.

De repente, mudou. Já era outra pessoa no telefone, outra moça, que aí se apresentou acho que como consultora e já foi conferindo uns dados meus, tipo idade, RG, nome, profissão, e aí eu perguntei: "mas pra quê tudo isso?". E ela: "não, dona Mariana, é porque nós temos que checar os seus dados cadastrais...". Sei. De repente, no meio daquela verborragia toda ouvi a palavra-chave: "anuidade". Fiz rápidas sinapses: anuidade em cartão de companhia aérea???? "Epa, peraí, isso tudo é cartão de crédito?", perguntei interrompendo a moça. "Sim, dona Mariana", disse ela, "do ItaúCard". Ah, minha filha, tô fora. E assim, tão rápido como a conversa tinha começado, terminou. A moça se despediu com uma rapidez de dar inveja a quem deseja terminar rápido uma conversa e não sabe como fazer. "Escapei por pouco", pensei.

Alguém já viu o filme "Zeitgeist"?

domingo, 29 de agosto de 2010

Manifesto contra Belo Monte

MANIFESTO

Assinatura da Concessão de Belo Monte é mais uma ofensiva macabra para sentenciar a morte do rio Xingu

Os funcionários do Planalto ainda não terão limpado os restos da festança que comemorará o retorno do Presidente da República ao seu Palácio nesta quarta, dia 25, e o governo federal assinará a sentença de morte do Xingu e a expulsão de milhares de cidadãos de suas casas, o pouco que ribeirinhos e pequenos agricultores das barrancas do rio podem chamar de seu.

Num ato de escandalosa afronta a convenções internacionais de direitos humanos, à legislação brasileira e à Constituição do país, o governo firmará, nesta quinta, 26, o Decreto de Outorga e o Contrato de Concessão da UHE Belo Monte com o Consórcio N/Morte Energia no Palácio do Planalto.

A assinatura ocorrerá antes do Ibama ter concedido a Licença de Instalação à obra, que, por lei, deve anteceder mesmo o processo de licitação (artigo 4 da resolução 006 do CONAMA), e enquanto ainda tramitam na Justiça 15 Ações Civis Públicas contra a Licença Prévia, contra o leilão e por violação de Direitos Humanos e Constitucionais das populações ameaçadas.

Neste ato, serão rasgados acordos internacionais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção sobre Diversidade Biológica, que exigem o consentimento livre, prévio e informado dos Povos Indígenas e Comunidades Locais em caso de empreendimentos que afetem suas vidas.

Será consolidado um procedimento que ressuscitou um autoritarismo aterrador por parte do governo, que instou o Tribunal Regional Federal a derrubar sem a mínima avaliação dos argumentos jurídicos três liminares concedidas pela Justiça Federal contra a obra e o leilão, constrangeu procuradores do Ministério Público Federal através de ameaças abertas por parte da Advocacia Geral da União, e avalizou um projeto que custará mais de 19 bilhões de reais – a maior parte advinda de fundos públicos como o BNDES e de fundos de pensão - sem a menor garantia de viabilidade econômica, representando uma grave ameaça ao erário público.

Há mais de um ano atrás, em julho de 2009, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu em audiência representantes da comunidade científica, lideranças indígenas e sociais e o bispo da Prelazia do Xingu, Dom Erwin Kräutler, e garantiu textualmente a seus interlocutores que não lhes “enfiaria Belo Monte goela abaixo”. Também se comprometeu a responder algumas questões, que lhe foram enviadas por carta posteriormente:

- O que diz Lula ao Brasil sobre a ineficiência energética da usina, que na maior parte do ano só produzirá 40% da energia prometida?

- Que garantias Lula dá às populações do Xingu de que não serão construídas outras três usinas – Altamira, Pombal e São Felix do Xingu – no rio?

- O que diz Lula sobre os impactos às populações indígenas?

- Qual o número de atingidos pela obra que serão deslocados de suas casas?

- O que será da população dos 100 km da Volta Grande do Xingu que secarão com Belo Monte?

- O que diz Lula sobre a pressão populacional que a região sofrerá com a migração de milhares de pessoas para Altamira, em busca de emprego e oportunidade?

- Qual é, afinal, o custo da usina?

- Qual será a tarifa cobrada da população brasileira pela energia produzida por Belo Monte?

Estas perguntas nunca foram respondidas pelo presidente. Não foram respondidas satisfatoriamente por ninguém. As populações ameaçadas, todos nós brasileiros, fomos escanteados, desrespeitados em nossos direitos, tivemos nossas leis pisadas na lama e nossos direitos ridicularizados.

A assinatura do Decreto de Outorga e do Contrato de Concessão da UHE Belo Monte, um dos primeiros atos oficiais no reluzente e recém-reinaugurado Palácio do Planalto, deixará uma mancha macabra e feia. Mas não extinguirá a resistência de indígenas, ribeirinhos e pequenos agricultores que lutam por suas vidas no Xingu, e por tudo que o rio e as matas são para eles e para nós: garantia de futuro. Vergonha sobre o governo! Belo Monte não passará!

Assinam:

Dom Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu
Movimento Xingu Vivo para Sempre - MXVPS
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira - COIAB
Conselho Indigenista Missionário - CIMI
Rede Fórum da Amazônia Oriental - FAOR
Comitê Metropolitano Xingu Vivo para Sempre, Belém/PA
Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos – SDDH
Instituto Amazônia Solidária e Sustentável - IAMAS
Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé
Instituto Socioambiental - ISA
Society for Threatened Peoples International
Instituto de Estudos Socioeconômicos - INESC
Instituto Terramar
Justiça Global
Rede Brasileira de Justiça Ambiental
Instituto Humanitas
Associação Floresta Protegida - Mebengokré/Kayapó
Instituto Ambiental Vidágua
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
IBASE
Centro Legal de Defensores do Meio Ambiente - EDLC
Survival International
FASE AMAZÔNIA
Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia - MAMA
Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense - FMAP
Articulação de Mulheres Brasileiras - AMB
Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará – CEDENPA
Terra de Direitos
Fundação Tocaia
Campa - Cooperação Associativo Ambiental Panamazônica
Fórum Carajás
Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais
COMITÊ-DOROTHY
OPERAÇÃO AMAZÔNIA NATIVA – OPAN
Associação Civil Alternativa Terrazul
REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS
Centro de Defesa dos Direitos Humanos
Educação Popular do Acre-CDDHEP
Articulação de Mulheres Negras da Amazonia Brasileira - FULANAS
Rede Jubileu Sul Brasil
Rede Jubileu Sul Américas
Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul - PACS
Forum Mudanças Climáticas e Justiça Social
Assembléia Popular Nacional
Grito dos Excluídos
Sindicato dos professores de Nova Friburgo e região

“Toda vez que nos unimos reforçamos nosso movimento. Temos que continuar lutando pela vida, pela cultura e biodiversidade e floresta; os velhos, os jovens e as gerações futuras não desistirão nunca da luta contra Belo Monte!" - Cacique Raoni Metuktire, Altamira, agosto de 2008

terça-feira, 24 de agosto de 2010

No Festival Pano - final

Hora das despedidas, pois tudo que é bom (e ruim) conhece um fim, como se diz. No caso do Festival Pano, o fim foi mesmo o encerramento com o alvorecer do dia, após mais uma noitada de ayahuasca, todos em roda, cantando. E aí correndo para pegar um lugar nas canoas que nos conduziram Tejo abaixo. Ah, que saudade. Saudade de um lugar que parecia um não-lugar, um lugar fora dos lugares. Houve momentos em que me perguntava: onde estou mesmo? Rio Branco parecia estar perto, será que estou na Fortaleza do seu Luiz Mendes no festival que lá se realiza anualmente? Não, não, estou na Reserva. Na Reserva? Não, estou na terra dos Kuntanawa, no Festival Pano. Aí assentava de novo e me localizava, para logo, logo me deslocalizar. As referências eram novas, as já conhecidas (o Tejo, rio da borracha, coração da Reserva) não valiam ali.


E assim também fui encontrando os meus amigos, não mais "Milton", agora (e sempre, afirmam com orgulho), índios, índios Kuntanawa. E não são poucos, pelo menos quatro gerações estavam ali reunidas. Veja-se a foto abaixo: dona Mariana está sua bisneta Jorrana, filha de sua neta Claudete, que é filha de sua filha Lurdes.

Vejam agora esta foto, tirada em 1998, na foz do rio Machadinho, onde parte da família Kuntanawa vivia então. Nela estão, da esquerda para a direita, os irmãos Carla, Alisson e Claudete (a mãe de Jorrana), todos filhos de Lurdes.

Agora, mais de dez anos depois, aí abaixo está o Alisson (de quem, aliás, tenho fotos aos três anos de idade, todo peladinho!), hoje um "homão", todo lindo, no colo com a filha de um de seus primos. Dos irmãos Alisson, Carla e Claudete, só ele ainda não tem filhos(as).


Vi também, no Festival, as primas e primos reunidos, e lembrei deles ainda crianças, também juntos, brincando, correndo, brigando, chorando. Na foto abaixo, de 1998, estão (da esq. para dir.) Ebismarque, Alisson, Davi, José, Marlene, Adriano e, sentadas, Macilene e Maciléia.

Todos, a excecão de Maciléia, estavam lá no Festival participando ativamente. Aí abaixo, por exemplo, estão, Cláudia (irmã do Davi aí acima), filha dos finados Cilene (filha de seu Milton e dona Mariana) e Luis Fontenelle, e Adriana (minha afilhada) e Mariana, ambas filhas do meu compadre Pedro (acima com o rosto todo pintado de urucum) e da comadre Maria. Umas lindas, não?

Aproveito então o ensejo para fazer uma homenagem a Cilene, que faleceu tão jovem, uma mulher trabalhadora, caprichosa e bem-humorada. Olha uma foto dela, de 1998. E também uma de Cláudia, bem menina.

Foi especialmente emocionante encontrar Cláudia. Ela tem poucas lembranças da mãe e falamos bastante de Cilene, de como ela era, do seu jeito. Foi muito gratificante trocar isso com a Cláudia. Ao final, depois dela me pintar com urucum, tiramos uma foto juntas.

Não dava para não encontrar também o Osmildo, amigo que conheci há quase 20 anos (em 1991), na época do cadastramento da Reserva Extrativista, ele integrando a equipe chefiada pelo Txai Terri e integrada também pelo Siã Kaxinawá. Na época em que o Conselho Nacional dos Seringueiros na região do Juruá era chefiado pelo Macedo e o Mauro Almeida era o principal assessor. Tempo bom, que também passou. Pois é, o Osmildo hoje é o coordenador da Organização dos Povos Indígenas do rio Juruá, a Opirj, e estava lá como Kuntanawa que é e como representante da entidade regional. Sempre com sua fala forte e longa. Osmildo, filho de seu Milton e dona Mariana, completou 46 anos durante o Festival e é, no seu povo, creio que o mais antigo estudioso da ayahuasca.

Os Kuntanawa tem seus jovens líderes, líderes que tem se destacado nas andanças pelo mundo, nas articulações que têm logrado estabelecer com o povo de fora da floresta e do Brasil. O Festival, inclusive, é fruto destas relações interétnicas, nacionais e internacionais, como também de um esforço de reunião do povo Pano, grupo linguístico majoritário no estado do Acre. Entre eles, Haru Xinã se destaca especialmente. O conheci ainda menino, em 1993, na foz do Machadinho, onde sua família então vivia. Ele é filho dos meus compadres (então casados, hoje já não) Pedro e Maria, e hoje seu pai, cujo nome indígena é Univú e foi retratado acima, com o rosto vermelho de urucum, é seu grande esteio e companheiro. Vejam esta foto do Haru, então Fabio, apesar do nome de batismo ser José Flávio: foi tirada em 1993.

Fiquei agradavelmente surpresa ao assistir a performance de Haru no Festival, sua capacidade de reunião, sua fala que atrai, sua forte presença, sua luz. Ele tem um carisma, e o brilho do outro é uma coisa muito agradável de se ver. Era visível, ao menos para mim, a força que era adicionada nas danças no terreiro quando ele entrava na roda e a liderava (como na foto abaixo). Havia um adensamento, uma intensidade. Do nosso histórico de amizade nesta sua maturidade, que data [este histórico] de alguns poucos anos, cheios de cumplicidade e também de embates (por que não dizer?), estar com ele no Festival, vê-lo lá, foi uma reconciliação no meu coração. Uma compreensão do tempo das coisas, uma percepção melhor de todo movimento que a família Kuntanawa experimenta.

E por último, mas lembrando que os últimos são os primeiros, estive com seu Milton, o patriarca de todo grupo. Era, para mim, um conforto poder descansar de toda a movimentação e agitação do Festival na casa dele e de dona Mariana (e netos e bisnetos...) ali improvisada. Chegava lá e entrava num outro universo, velho conhecido, familiar e acolhedor, onde me sentia à vontade e encontrava o meu lugar neste tempo de tantas mudanças.

Foi dali, desta referência familiar e de afeto, que pude apreciar mais ainda o Festival, ver o meu lugar neste tempo da etnicidade, junto com os Kuntanawa em seu movimento e também recostada com calma na casa de paxiúba do meu coração. Agradeço profundamente a seu Milton e dona Mariana por sempre me receberem como uma pessoa da casa.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

No Festival Pano 4

Teve pescaria na festa, de batição e de tarrafa. Foi um momento bonito, com as embarcações no meio do lago confronte o terreiro, e pessoas nas margens "batendo".

Era uma alegria. Nas margens, sentados, tomávamos caiçuma, conversávamos e torcíamos pelos nossos pescadores. Afinal, eram muitas bocas para alimentar!
E aí os peixes começaram a chegar...

O fogo foi aceso, o peixe tratado pra ser assado. Quem quiz, comeu. O Siã, Huni Kuin do Jordão, amigo de longa data, da minha chegada ao Acre, também estava lá assistindo tudo e ajudando a organizar a coisa toda. Acho que ele ficou feliz, ou não?

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Fogo! Fogo!

Interrompemos nosso relato do Festival Pano para uma triste notícia de última hora:
Fui ao aeroporto por volta das 17 horas buscar o meu professor Mauro Almeida, chegando de Cruzeiro do Sul num voo já totalmente atrasado devido à falta de condições de pouso: muita fumaça das queimadas. Na volta, paramos para observar o drama que se desenrolava no campus da Universidade Federal do Acre: fogo, a mata ali perto da UTAL estava pegando fogo. Tirei fotos com a máquina do Mauro, mas minha conexão está péssima e não consigo carregar as imagens...

Ah, gente, um horror ver as árvores serem devoradas pelas chamas. Sinistro. E lamentável. Um retrato da nossa situação atual: seca, fumaça e a floresta queimando. Estamos todos, direta e indiretamente, colocando fogo e criando o nosso próprio inferno.

Onde tudo isso vai parar? Quando vamos parar? Hoje vi carros andando com um pano preto em sinal de luto pela morte de um parlamentar. Pensei em algo similar em protesto pela morte das nossas árvores, palmeiras, animais e oxigênio.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

No Festival Pano 3

O Festival também teve alguns momentos mais formais, ou institucionais, como foi a passagem por lá da Shirley Torres, que já foi da Secretaria Estadual de Esporte, Turismo e Lazer, hoje concorre a uma vaga para deputada estadual. Shirley "falou pouco, mas falou bonito", como se diz, o que foi muito sensível de sua parte: não transformar o momento numa discurseira política.

E teve também a comitiva da Prefeitura de Marechal Thaumaturgo, que baixou por lá já nos últimos dias e foi recebida em alto estilo: no terreiro e com rapé! Foi uma passagem rápida, discreta e simpática. Na foto acima o prefeito, Randinho, está à esquerda de Haru, de blusa amarela. Quem está ali de blusa listrada azul é Isaac Ashaninka, secretário municipal de meio ambiente, um luxo!

Tivemos também a apresentação do IGF, o Instituto Guardiões da Floresta, entidade recém-nascida, fruto da articulação de jovens lideranças indígenas com profissionais diversos do sul, em especial do Rio, São Paulo e Brasília. Diversos deles estavam lá, e se apresentaram publicamente, num outro momento institucional do evento, digamos assim. O IGF é uma Ocip que tem em sua diretoria indígenas e brancos e pretende, pelo que foi lá dito, desenvolver atividades nos temas cultura e meio ambiente em terras indígenas.

Falou-se em fortalecimento, resgate, preservação. O Festival foi um primeiro projeto do IGF, um evento Pano, trans-étnico, trans-territorial. Uma pena o pouco tempo dedicado a discutir e entender melhor esta entidade - que encerra um misto de entidade de representação e de apoio - bem como o Projeto Corredor Pano, o carro-chefe do IGF. De toda forma, é gente nova no pedaço, com gás e vontade de fazer. Um conselho: explorar o território e as territorialidades vigentes por aqui, ou seja, chegar de mansinho, conhecer as pessoas, informar-se sobre o que já existe feito, produzido e experimentado, o que não é pouco!

Tivemos ainda a famosa reciprocidade, fenômeno magistralmente analisado por Marcel Mauss no início do século XX e que criou a máxima universal: dar, receber e retribuir - está criada a ligação que encerra espontaneidade mas fundamentalmente obrigatoriedade: eis a relação social por excelência! Pois é, teve isso lá. Foi a troca de presentes, onde o que menos importa é a igualdade do valor material ou monetário, e sim o valor simbólico no ato encerrado e nos presentes trocados. Seu Milton, por exemplo, trocou o livro (que escrevi) sobre sua família com Marcos, do Ministério da Cultural, que em troca lhe deu sementes de um projeto apoiado pelo orgão que ali representava.

Houve também um hasteamento de bandeiras, das bandeiras dos países ali presentes: além de nós, o Brasil, estavam também Canadá, Inglaterra, Espanha, Alemanha, Groelândia... O negócio foi pluriétnico mesmo. O corredor ali estabelecido unia brancos e índios de várias partes do mundo. Isso é muito legal.

"Uncle", como pronunciávamos o nome da liderança espiritual esquimó que veio especialmente para o Festival, foi responsável por vários momentos solenes. Seu canto ecoava pela floresta, um mantra poderoso, que levou um dos índios presentes a referir-se a ele como "o homem que esturrava". Ora, quem esturra é onça, um animal de poder no universo xamânico. Não é pra qualquer um esturrar! Lá no Groelândia, o animal sagrado é o urso polar. Tinha um cachorro que toda vez que passava em frente a imagem do urso, latia, latia, como que acuando o bicho, pode?

Uncle, cujo trabalho espiritual pareceu-me voltado para o culto dos antepassados, dirigiu um ritual da "tenda do suor": numa das praias do Tejo foi construída uma pequena maloca de barro e folhas, toda fechada. Uma fogueira foi acesa com pedras dentro, que deveriam, depois de quentes como o fogo, aquecer a maloca com o vapor da água sobre elas borrifada. Bom, não funcionou exatamente como o previsto. Subestimou-se o frio da floresta, e a tenda ficou no máximo quentinha. Participei do ritual, e gostei de ficar ali dentro, no escuro, com umas 20 pessoas, ouvindo o Uncle cantar e contar histórias. Muito linda esta presença do gelo na floresta tropical, esta aliança metereológica, este homem que veio do topo do mundo pra colaborar com os Kuntanawa na convocação de suas ascendentes.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

No Festival Pano 2

Como dizia (antes da minha internet sair total do ar), o terreiro foi o local por excelência de convivência e encontro. Você podia acordar pela manhã, tomar o seu café e ir pra lá que alguma coisa já estaria acontecendo, alguém já estaria no microfone dando avisos, fazendo convites, lá sempre era possível encontrar gente nas arquibancadas para conversar, trocar idéias e se pintar de genipapo e urucum.

E realmente é muito bom brincar de roda, e isso não é de hoje, né? Lembrei-me também das danças circulares, das mandalas que criamos em círculo, olhando-nos uns aos outros, fazendo movimentos em conjunto, rindo e reparando no jeito, ou falta de jeito, uns dos outros.

Lá na aldeia Kuntamanã, no terreirão, fizemos tudo isso, tivemos todos esses encontros. A roda começava pequena e ia crescendo, crescendo. Começávamos no sol e quando este esquentava nossa roda de gente ia migrando em busca das sombras do terreiro...

E lá íamos girando, num ritmo que dava para todos, quase não entendendo (nós, os brancos) as letras que eram cantadas, mas curtindo e repetindo mesmo assim. É sabido que muitas dessas brincadeiras são picantes, as letras das músicas são insultos de um sexo a outro, provocativas. Havia momentos em que os homens cantavam, e as mulheres riam, riam, e diziam entre si: "vamos dar o troco". E lá vinham elas cantando algo também provocativo e sensual.

E às vezes a coisa acabava na pancadaria, como foi a brincadeira da cana!

Aí acima, debaixo dessas mulheres todas, e das que estão se aproximando, havia um homem... Pois é, um indígena com um pedaço de cana na mão que ele não soltava de jeito nenhum, e às mulheres cabia justamente fazer com que ele soltasse a cana. Para isso, tudo era válido: bater, fazer cosquinha, arranhar, puxar, empurrar, tirar a roupa... - "Êpa, peraí, tirar a roupa não vale não, sacanagem, pô!" - protestou um jovem subindo as calças. Ok, ok tirar a roupa não vale, viu, meninas? Mesmo assim, era difícil resistir a elas, que estavam decididas a ganhar o jogo!

E ainda teve a brincadeira do fogo, com novamente as mulheres no ataque, ateando fogo a palhas e vindo atrás dos homens que, em fileira, se defendiam com galhos verdes. Uma festa, a meninada adorou!

Limpo o terreiro, nos reunimos todos para uma benção dos pajés contra os males que pudessem estar rondando o Festival. O fato é que logo no início do evento houve uma crise de febre e diarréia, que atingiu indiscriminadamente brancos e índios, brasileiros e estrangeiros. Muita gente passou baixo. Veio um socorro médico da vila Restauração e da Sáude Indígena do Município, e também a fonte da água para beber passou a ser melhor monitorada. Uma reunião de lideranças e pajés também tomou suas providências, entre as quais a de reunir todos num ritual de proteção e consagração.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

No Festival Pano 1

No final do mês passado, dia 25, tomei o avião para Cruzeiro do Sul. De lá, no dia seguinte, segui para Marechal Thaumaturgo, também de avião, agora pequenininho (uma aviãozinho), para, em seguida, num bote de alumínio, rio Tejo acima, ir em direção a aldeia Kuntamanã. Lá ocorria o I Festival Cultural Pano 2010.

Na passagem por Cruzeiro do Sul, tenho que registrar a ponte que está sendo construída sobre o rio Juruá, uma mega obra para as dimensões da cidade e que deverá reconfigurar todo o trânsito de veículos ali pelo centro da cidade. A chegada do progresso, dirão os mais afoitos. Soube que os imóveis do outro lado sofreram uma valorização monetária incrível, e já está caro morar lá. Moradores de mais posses estão adquirindo terras lá. E eu ainda lembro quando a gente olhava lá para o outro lado, onde estão bairros como o Miritizal, e tinha aquela visão bucólica de uma vida ribeirinha em frente à cidade. Enfim.

Chegando a Marechal Thaumaturgo nem mesmo subi na vila. O bote, já com o piloto, Dão, aguardava. Embarcamos combustível e o Hudson, que ajudava Haru Kuntanawa na produção do evento, e, por volta das 14 horas, partimos. Julho, poucas chuvas, o Tejo estava meio seco, com suas praias cultivadas (e cercadas devido ao gado solto). Mas nosso bote, com pouco peso, seguia veloz e com poucos encalhes. Mesmo assim dormimos em viagem, no Maranguape Velho, casa da dona Dulé, e no dia 27, as 9 horas, chegamos!

O Festival começara no dia anterior, e se estendeu até o dia 31. Foram, portanto, seis dias de atividades, em sua maioria de confraternização, como rodas de mariri no terreiro central, brincadeiras diversas, apresentações musicais, pescaria tradicional, troca de presentes, o ritual esquimó da tenda do suor e, claro, rituais com ayahuasca e o rapé. Conversas mais institucionais, sobre o projeto Corredor Pano e a recente criação de uma nova entidade - a Ocip Instituto Guardiões da Floresta, IGF - também ocorreram, mas não foram a tônica do evento. O objetivo principal parecia ser mesmo o encontro e festejo das dez etnias ali presentes (Kuntanawa, Huni Kuin, Yawanawa, Shanenawa, Shawãdawa, Jaminawa, Nukini, Marubo, Katukina e Ashaninka, esta do tronco Arawak) e seus convidados brasileiros (entre acrianos, cariocas, paulistas, brasilienses) e estrangeiros (que incluíam um "pajé" esquimó, ingleses, alemães, espanhóis, suiços). Todo este grupo totalizou algo em torno de 200 pessoas reunidas, além dos visitantes das imediações.

Pra contar um pouco o que presenciei por lá, farei uso de imagens e legendas para as mesmas.

Tive a felicidade de logo encontrar com dona Mariana e seu Milton que, junto com sua família, ocupavam uma das casas de palha que foram construídas para abrigar os visitantes (além de uma área para camping). Frequentei bastante aquela casa, que reproduzia, num espaço bem menor, o universo familiar que me é velho conhecido. Na foto acima, dona Mariana, a matriarca dos Kuntanawa, está sendo pintada com tintura de genipapo por seu neto Alexandre, o Xan, bisneto, portanto, da velha cabocla Regina, pega "à laço" nas matas do rio Envira nos idos de 1900.

Uma vista das casas de madeira e palha construídas para abrigar os presentes ao Festival. Simpáticas e confortáveis, formavam uma espécie de "rua", umas ao lado das outras, e onde foi possível estabelecer, ao longo dos dias, relações de convivência e vizinhança. Na barraca onde fiquei, estavam também Roberta Graf, do Ibama, e a delegação Marubo. Pude então reencontrar Sebastião, que não via há anos, e conhecer o sr. Eduardo. Nas vizinhanças estavam os Yawanawa, que logo fizeram uma espécie de "praça" em frente a sua casa e um fogo que frequentamente estava aceso e com gente reunida em volta.

Os Shanenawa, do rio Envira, também compareceram numa delegação expressiva, marcando uma presença forte no terreiro do Festival, sempre juntos. Cantaram bastante e era um grupo com que se podia contar para iniciar as brincadeiras.

Os Huni Kuin (Kaxinawá) também eram numerosos, do Jordão e do Humaitá. Suas cornetas de rabo de tatu eram como "vuvuzelas" pontuando os momentos de maior intensidade das cantorias e conversas. Bisku, do Jordão, liderou vários cantos e brincadeiras com um humor fino, embora eu e quase todos os brancos não compreendessemos suas palavras. Uma delas tornou-se um "hit" do Festival: "Shikitani, shikitani..." (?)

A participação Kaxi incluiu ainda fantásticas roupagens vegetais, feitas com folhas de palheiras. Tinha a impressão que ali, debaixo daquela sombra, devia estar mais fresquinho um pouco...