quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Feliz Natal

Germinam os desejos da alma,
crescem os atos da vontade,

maturam os frutos da vida.

Eu sinto meu destino,
meu destino me encontra.
Eu sinto minha estrela, minha estrela me encontra.
Eu sinto meus objetivos,
meus objetivos me encontram.

Minha alma e o mundo são um só.


A vida, ela se torna mais clara ao redor de mim,
a vida, ela se torna mais árdua para mim,
a vida, ela se torna mais rica em mim.

Busque a paz,
viva em paz,
ame a paz.

(Dança da Paz, Rudolf Steiner)

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Sábado à noite na terra da Florestania

Este ano completa 20 anos do assassinato de Chico Mendes. Para marcar a data, o Prêmio Chico Mendes de Florestania, concedido pelo governo do estado, saiu um pouco do seu formato tradicional e premiou 20 pessoas, entregando a cada uma delas um diploma e uma espécie de troféu onde, numa madeira, está fincada um ouriço de castanha em bronze. Bonita a homenagem.

Na hora em que me arrumava para ir a premiação, pensei: “mas isso está com cara de evento ´chapa-branca´ e lá vou eu...”. Mas não dava para não ir: amigos muito caros estavam sendo contemplados pelo Prêmio e queria estar com eles, particularmente com um, que não via a uns dois anos, o Ailton Krenak. Arrumei-me para a noite. O convite dizia “esporte fino”, me previniu a Débora. Pensei: “vamos ver qual a leitura acreana do esporte fino”. E lá fui eu, de esporte fino: um vestido branquinho de algodão da Cantão, que comprei para levar para Paris e não consegui usar lá devido ao frio, e que ainda estava virgenzinho no guarda-roupa. Sapatilha ou sandália de salto? “Salto”, decretou a Débora. Ok, mas vou levar a sapatilha just in case, pois depois tinha uma festa na Malu. Arrematei com uma bolsa de couro vegetal, um colarzinho, brincos combinando e um baton pra dar um toque. Ao chegar lá, constatei: "esporte fino" é uma questão muito pessoal, ou sujeito a leituras bem subjetivas, ou ainda, exagerando um pouco, "cada um vai como quer". Os que estavam de paletó e gravata, como ensina o manual de esporte fino, confessavam certo constrangimento.

Foi um evento muito bonito, devo dizer com satisfação. Sob medida. O cerimonial enxuto, com direito a Vitor Fasano, bonitão lá no palco. Os discursos, de quem discursou (Marina, Binho, Raimundão, Toinho Alves, Steve Schwartmann e Jorge Viana), inspirados e também de bom tamanho, bons de ouvir. Houve um fantástico anti-clímax com a fala do Toinho, que fez uma auto-crítica por todos, encarnando, como disse o Binho, o Chico Mendes naquela noite e lembrando a todos que, sim, trabalharam muito nesses 20 anos, mas estão todos muito longes de ter cumprido o dever de casa. Muito pelo contrário, perdeu-se o foco, o extrativismo está como que às moscas, sem uma política consistente e permanente, e as Reservas Extrativistas em crise. É, foi boa esta parte da noite. Precisava.

Entre as premiações, divididas em três blocos, música: primeiro a Carol Freitas, que abriu o evento cantando aquela música do Vital Farias sobre “a bonita floresta, mata verde, céu azul, a mais bonita floresta”. Depois teve o Sérgio Souto, a Keyla e a noite fechou com Los Porongas. Demais!

E aí saímos para o hall, tomamos suco, tietamos os Porongas e ainda jantamos com os premiados no Inácio. Novamente, mais do que a comida, bem em desacordo com as minhas pessoais preferências alimentares, bom mesmo foi estar com os amigos: Ailton, o Toinho filhos, o Taska e a Laura, o Terri e sua extensa família indígena, o seu Antonio de Paula, a Sheyla e outros ali presentes.

É, teve bom. Só não deu pra ir na Malu que no dia seguinte tinha hinário...

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

No Campus Floresta

Esta semana que passou estive em Cruzeiro do Sul. Fui participar de concurso da UFAC para preenchimento de vagas para professor. Estive em duas bancas, ambas selecionaram professores que estarão atuando no curso de Licenciatura Indígena, ou seja, professores que estarão dando aulas para indígenas, muitos dos quais, acho que quase todos, já atuando como docentes em escolas nas aldeias. Não vou contar do concurso, mesmo porque não pode, é meio secreto o que ocorre nas salas de aula e depois nos bastidores da banca. Então, deixa isso pra lá e vamos ao que me traz aqui hoje.

Quero falar do Campus Floresta, que me espantou pela ausência justamente do que a UFAC escolheu para batizá-lo: a floresta. Ao chegar, um susto: o estacionamento, amplo, imenso, asfaltado e sem um pé de planta para dar sombra, hoje ou futuramente. Fiquei sinceramente chocada com este cartão de visitas. E sem entender.

Comentei isso com alguns colegas professores, que na hora concordaram comigo. Um deles não descartou a possibilidade de um dia vir com uma picareta, abrir um buraco e plantar uma árvore pioneira no estacionamento. Seria um bravo ato, sem dúvida. Como pioneira, ela (a árvore) certamente sofreria um pouco sem companhia e no meio daquele asfalto que esquenta pra valer - mas esta parece ser a sina dos pioneiros e pioneiras: enfrentar resistência e dificuldades dobradas. Sugiro que esta árvore seja uma bem resistente, daquelas que não tem medo de "tempo ruim".

Entrando no campus, mais especificamente passeando entre os prédios novos, de cor clara e dois andares, agradáveis portanto, de novo, no que seriam áreas verdes internas, ausência de árvores. Uma ou outra espaçadamente plantada. Pensei, e falei: "mas aqui deveria haver era pequenas amostras de sistemas agroflorestais!". Imagina: entrar numa instituição de conhecimento científico e topar com pequenos sistemas diversos, a riqueza da floresta e do conhecimento humano associado a ela (pensando aqui nas plantas cultivadas) representadas em miniatura, uma espécie de bonsai da floresta. Bom, talvez isso já esteja começando a acontecer, pois vi bananeiras plantadas (na foto, bem ao fundo). De toda forma, o entorno do campus é inspirador, pois há uma matinha muito atrativa. Vale lembrar que o Campus Floresta da UFAC é um dos filhos que vingou da proposta de uma Universidade da Floresta, cujo mote inicial foi o intercâmbio entre conhecimentos nativos e científicos. Na construção, pelo menos, esta troca (ainda) não está espelhada.

Quero deixar claro que gostei muito de ter estado no Campus Floresta, encontrado colegas valorosos e que apostam suas vidas profissionais na região. Gente que veio de longe e que está dando o melhor de si para que a região do Juruá possa contar com uma instituição de ensino e pesquisa de qualidade. Vi isso no concurso, nas bancas de que participei e nos contatos e conversas que tive com alguns professores, como a Heide (na foto à esquerda, comigo, Maria e Selmo, já no aeroporto, na hora de ir embora) e o Marcus Athaydes, entre outros que infelizmente não recordo os nomes. Esclareço ainda que estou louca pra ser convidada a dar aulas lá, e espero que esta postagem não seja mal interpretada por meus colegas de Cruzeiro.

Tem algo na cultura universitária (talvez não só da UFAC), e na burocracia, que amarra idéias, enquadra propostas inovadoras, e nesta rigidez perde frescor e inteligência. E o resultado é que habitamos ambientes áridos e calourentos, uma tendência, inclusive, que ameaça toda a Amazônia. Precisamos ir na contra-mão!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Semana de Ciências Sociais

Na semana passada, o Centro Acadêmico do curso de Ciências Sociais da UFAC realizou a Semana de Ciências Sociais, que, em sua sexta edição, teve como tema “De Chico Mendes ao Estado da Florestania: os desafios da sustentabilidade”. De segunda a sexta-feira foram quatro mesas-redondas e uma palestra, as primeiras no auditório da Biblioteca da Floresta e a segunda no Teatrão, tendo como palestrante a senadora Marina Silva, uma esperada presença pelos alunos do curso.

Não pude participar ao longo da semana, por motivos pessoais achava-me fora de Rio Branco. Mas na sexta-feira apresentei-me aos organizadores da Semana para mediar a mesa de encerramento batizada de “Reservas Extrativistas (por onde anda a ‘reforma agrária do seringueiro’)”. Embora o folder não tenha registrado, tratava-se de uma pergunta: em que pé estão as propostas de regularização fundiária adaptadas ao modo de vida daqueles que vivem na floresta? São várias delas: além da mais conhecida – as Reservas Extrativistas, fonte de inspiração e mesmo mãe de todas as demais – há ainda os Projetos Agroextrativistas (PAEs) e os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), além das Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), entre outros formatos que buscam conciliar conservação e a presença de populações florestais não-indígenas.

As Reservas Extrativistas foram propostas em 1985, por ocasião do I Encontro Nacional de Seringueiros, realizado em Brasília. Naquela época, era claro para os seringueiros reunidos em Brasília por meio de seus sindicatos, associações, cooperativas e comunidades eclesiais de base, que o formato tradicional da reforma agrária – lotes – era totalmente inadequado, e insustentável, para aqueles que vivem na floresta do agroextrativismo. Recortar áreas de floresta em lotes era uma lógica que só podia fazer sentido na cabeça e mapa dos técnicos e burocratas de escritório, que não sabiam (muitos seguem sem saber) que a caça, os peixes, os cursos e espelhos d’água, os piques de castanha e as estradas de seringa não obedecem a traços geométricos e não respeitam este tipo de fronteira. Uma reforma agrária que mantivesse o sistema de colocações e evitasse a fragmentação da unidade pela venda das posses ou propriedades individuais: estes critérios orientavam as propostas de então. Inspirados nas Terras Indígenas chegou-se ao formato das Reservas Extrativistas: propriedade da União com usos e frutos dos moradores.

Todo esse percurso histórico, e mais rico de detalhes, foi tratado por Raimundo Mendes de Barros, o Raimundão, primeiro a falar na mesa-redonda. Do alto de sua rica e já longa experiência como sindicalista e liderança de primeira hora, junto com outros, dos empates de então, Raimundão rememorou com emoção e de forma didática aqueles anos de esperança, lutas e criatividade, quando podia-se contar com a liderança inestimável de Chico Mendes. Em seguida, dona Maria das Dores da Silva Lima fez uma breve fala sobre o PAE São Luis do Remanso, onde vive. Dona Maria, que tem larga experiência a frente da organização local, focou sua fala nas iniciativas de manejo florestal (madeireiro e não) em curso no PAE. Com uma sutileza invejável, ela trouxe questões delicadas para discussão, como as irregularidades fundiárias presentes, os objetivos não só financeiros daqueles que aderem ao manejo, as políticas públicas que colocam esta opção [a do manejo] para os agroextrativistas, e não outras. O terceiro e último palestrante foi Eduardo Borges, o Cazuza, do Pesacre, que compartilhou com os presentes sua vivência de mais de dez anos na criação e implantação do PDS São Salvador, em Mâncio Lima, o primeiro criado no Acre. A presença e fala de Cazuza trouxeram a importância das parcerias na viabilização dessas áreas de reforma agrária, em particular com ONGs.

O debate foi animado, com muitos inscritos. Cheguei a pensar em fazer alguma fala, mas calculei que iria tomar mais tempo, havia uma ânsia da platéia em se manifestar e a noite era dos palestrantes. Então, me controlando com alguma dificuldade, não me manifestei sobre uma série de questões que apareceram e sobre as quais teria coisas a dizer. O manejo, como seria de se esperar, foi um tema bastante debatido. Ficou-me mais uma vez a impressão, que acabei explicitando ao final da noite, de que o debate em torno do tema carece de mais substância, de mais pesquisa de campo que possa esclarecer sobre os processos localmente em curso: como as populações locais estão vivenciando as iniciativas de manejo? O que, do ponto de vista delas, é positivo e o que não? O que pensam e querem? Os argumentos econômicos e ecológicos produzidos por técnicos e cientistas são, claro, parte importante do debate, mas há uma carência das argumentações nativas, digamos assim.

Enfim, naquela noite, muito modestamente, estivemos todos ali – alunos, professores e outros – ouvindo e aprendendo com palestrantes envolvidos mais ou menos diretamente na consolidação dessas experiências de reforma agrária diferenciada. Juntos exploramos as condições necessárias para o seu sucesso. Não todas, mas algumas, como o papel do Estado, os constrangimentos da lei, a questão tecnológica e da cadeia produtiva dos produtos florestais, a insegurança fundiária, a fiscalização ambiental. Não chegamos a conclusões, mas pistas de investigação foram ali apontadas. É um tema envolvente, dramático e atual. Um campo de pesquisa fascinante, e de militância apaixonante. Traz alegrias e decepções (como tudo na vida). Pode dar vontade de correr, mas é um osso difícil de largar de roer!

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Almoço de domingo

Domingo foi dia de almoço aqui em casa. Dia de visitas amigas. Pilotando a comilança e o apetite do pessoal, o chef Meirelles, aqui já famoso pelo “molho-trisca” e outras aventuras. Cedo ele e Terri me acordaram: já estavam indo para o mercado. Fui encontrá-los carregados de sacolas com peixes, verduras, limão, frutas. Já pra casa que o peixe não pode ficar tanto tempo fora da geladeira sem tempero, e o processo de feitura é demorado, vamos começar logo. Com sorte, as 13 horas estamos almoçando.

Sob o comando então do Meirelles, Terri, Liulda e eu trabalhamos e nos divertimos na cozinha. Dois pratos foram preparados: peixe assado “a pizzaiolo” e uma moqueca de tucunaré. Os peixes que foram para o forno (três matrinchãs) inicialmente ficaram imersos em água temperada com verdinhos diversos e sal. Depois de um tempo ali, antes de ir para o forno, receberam generosas injeções da água em que estiveram de molho. Injeção mesmo, com seringa e agulha gigantes! Então, nada de ficar passando sal no peixe antes de levá-lo ao forno, que faz a carne ficar ressecada e dura. Após isso, o toque “a pizzaiolo”: rodelas de cebola e tomate espetadas no couro do peixe. E lá se foram eles para o forno, onde ficaram por mais de hora, regularmente sendo banhados pelo molho inicial de água, sal (pouco) e verdinhos.

Mais havia outro prato pra preparar: a moqueca! Se o peixe é cozido, pode salgar, e com muito sal, para as postas ficarem meio durinhas mesmo. Enquanto isso, pegue as cabeças e cozinhe na água, sem qualquer tempero. Ferveu, começou a desmanchar, apague o fogo e separe todo os ossos, escamas e coisas não comestíveis. O que fica – a água com a cabeça dissolvida – é, olha o segredo da coisa, onde o peixe será cozido. Aí vc pode pegar o peixe salgadíssimo, lavar ele, e colocar na água da cabeça. Se quiser, adicione um pouco de leite de coco, vai do gosto do freguês. Pronta a moqueca, uma delícia!

Finalmente, chegou a hora de comer. A esta altura a fome era grande e o povo estava animado com a cachaça mineira que o Elson Martins trouxe e o cajú com sal. O Edgar e o Edu haviam chegado. As crianças presentes estavam alvoroçadas com as cachorrinhas, crias da Luna e Alecrim que estão agora com um mês de vida. Fizemos ainda uma saladona, arroz, pure de macaxeira e um pirão escaldado com parte do caldo da moqueca e farinha de Cruzeiro do Sul, e a talentosa mão da Elizete. A comilança teve fases e comensais, até o Macedo deu uma passadinha. O Joaquim e família Yawanawa deram a honra da presença, e ainda uma rodada de rapé de alto nível no fim do dia, na varanda, entre as árvores.

É, teve bom, como se diz. Ei, Meirelles, vamos repetir o programa e conhecer outras receitas!

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Uma assembléia no tempo IV

O dia seguinte foi aberto com a apresentação das chapas concorrentes e um discurso de cada um dos candidatos, que não assisti pois me atrasei na casa do meu afitrião na foz do Tejo. Quando cheguei ao local da assembléia, a votação fora iniciada. Na escola, de longe, via uma aglomeração absurda de gente, como se todos quisessem votar ao mesmo tempo. Um sol de chuva brilhava e queimava. Não estava muito fácil. O calor era grande. Soube que estava levando muito tempo para que os mesários da eleição encontrassem o nome do eleitor na lista assinada no dia anterior, já que esta não estava em ordem alfabética. O pessoal do BIS, que desde o dia anterior estava ali e ajudara na fila da alimentação, tentava apoiar a organização da muvuca da votação. Não me atrevi a chegar perto.

Logo soube que se decidira mudar o processo: ao invés de procurar o nome das pessoas na lista, os eleitores iriam ser chamados a votar, pelo microfone. E assim o processo reiniciou. Mas a multidão não arredava o pé e a concentração de gente na entrada da sala de votação permanceu. Uma lógica interessante: ao invés de procurar um lugar para se sentar e aguardar seu nome, a maior parte das pessoas queria era ficar ali mesmo, embora apertadas e sem lugar para sentar. O pessoal do BIS continuava no apoio, tentando organizar aquele povo que relutava em ser enfileirado. Bravos rapazes os do BIS, pelo menos vi o Exército servindo o povo naquela foz do Tejo!

Surgiu então um assunto que deu muito o que falar: havia uma solicitação de que a lista de assinaturas para eleitores fosse mais um vez reaberta para os retardatários que chegavam para votar. Isso foi motivo de opiniões contrárias entre os partidários de uma e outra chapa, mas os dois candidatos a presidente acabaram concordando em que a lista fosse reaberta até o meio-dia. Esta autorização foi motivo de crítica dos partidários de Zé Augusto até muito depois de terminada as eleições. Diziam: fora por meio daquele expediente que muitos moradores da vila Thaumaturgo conseguiram votar, mesmo sem residir na Reserva.

O fato é que no domingo a foz do Tejo bombou. Encheu mesmo, muita gente da vila, gente que veio para vender coisas (lanches, refrigerantes, churrasquinhos) e também para passear, e sem dúvida para tentar votar. Não saberia dizer quantos acabaram fazendo-o e nem como conseguiram, já que os mesários supostamente conheciam quem era ou não morador da Reserva. Conversei pelo menos com um atual morador da vila, ex-morador da Reserva mas que tem nesta toda a sua família (pai e irmãos) e que foi impedido de votar. Mas ouvi outros casos onde esta negativa não teria ocorrido. Tem uma ambiguidade aí, pois muitos desses “moradores da vila” (mas não todos) são ex-moradores da Reserva, alguns inclusive mantendo uma casa na vila e outra na Reserva, ou ao menos um roçado ou seu gado, por exemplo. Onde afinal mora esta pessoa? Os estatutos são omissos sobre casos assim, que por sua vez atingem mais aquelas pessoas que moravam perto da vila, e não as dos altos rios.

Por falar em estatutos, gostaria de assinalar que o vice-prefeito eleito, o sr. Maurício Praxedes, permaneceu o sábado e domingo na foz do Tejo, conversando com seu candidato (Domingos), partidários e os que o procuravam. Na foto acima ele conversava com a equipe do BIS. Enfim, esteve bastante ativo durante todo o tempo, mesmo porque, como ele mesmo disse na sua fala de abertura, era um eleitor. Como assim? Pois é, boa pergunta. O fato é que modificações nos estatutos foram realizadas durante os últimos anos, sob o comando de Orleir Fortunato, e nas quais Maurício Praxedes era uma pessoa-chave, controlando o funcionamento da cooperativa. Entre essas mudanças esteve a de permitir que pessoas que prestassem relevantes serviços a Reserva ou a Associação (não sei bem a redação pois este último estatutos, que mais deve parecer uma colcha remendada, nunca chegou as minhas mãos) pudessem votar. Quem será que defendeu uma coisa destas? Pessoas de fora, ou que não são seringueiros ou agricultores, votando numa associação de representação justamente dessas categorias? Acho sinceramente um absurdo este tipo de coisa, um abuso. E caberia ainda perguntar que relevantes serviços são estes já que a Associação encontrava-se sem nem um palito de fósforo próprio?! Quem está no meio de movimento de trabalhadores sem o ser, ou é para apoiar na coadjuvância, ou está querendo tomar a direção da coisa.

E assim a coisa foi indo. Até que caiu a maior chuva, e a lama ficou boa mesmo – pra escorregar! Enquanto isso o almoço saiu, muito tumultuado, segundo relatos, e as eleições não pararam, chamando nome de eleitores a todo momento. Neste meio tempo, inventaram de despachar o combustível para os sócios, e aí a confusão ficou boa e uma fila só conseguiu ser minimamente organizada com a presença a autoridade da Polícia Federal. Muitos reclamavam que o despacho de combustível contemplara moradroes da vila, ou fora feito de forma inadequada, contemplando com muita gasolina quem mora perto e com pouca quem mora longe. Enfim, gasolina, diesel, esses assuntos, são danados pra dar confusão.

Ainda fiquei ali pela foz do Tejo até o final do dia, conversando com velhos amigos e amigas que a todo momento encontrava. Tanta gente boa! Encontrei, por exemplo, com o sr. Iraçu, o primeiro sócio da Associação, como ele mesmo lembrou, ainda nos tempos do Macedo e do Mauro Almeida, como ele também fez questão de assinalar. Emocionou-se dizendo do quão bons eram aqueles tempos, e mandou um abraço para os dois amigos dos quais não esquece.

E muitos representantes dos povos moradores das Terras Indígenas vizinhas a Reserva também se fizeram presentes - uma presença que foi tão marcante nos primeiros tempos da Reserva e que nos últimos dez anos tinha desaparecido. Pois nesta assembléia fizeram-se presentes, inclusive membros de uma aldeia Kaxinawá que está instalada dentro da Reserva, no rio Breu, sem que isso esteja significando qualquer tipo de conflito com os "brancos".

Mais tarde, já na casa do Nonatinho e da Maria, onde também estavam hospedadas outras pessoas, como a vibrante e conversadora-sem-papas-na-língua dona Zefa, irmã da dona Nazaré de quem já falei, e outras pessoas do Bagé, vimos nosso anfitrião, que justamente fazia aniversário naquele dia, entrar chorando em casa e se enfiar dentro do quarto. Logo ele saiu e anunciou que Zé Augusto perdera por 11 votos. Estava inconformado, repetia a todo momento que toda culpa fora da reabertura da lista de votantes naquele domingo. Logo outras pessoas chegaram, todas incorformadas e dizendo que no local da assembléia estava uma tristeza só por parte dos eleitores do Zé Augusto. Mas era aniversário do Nonatinho, e mais tarde não resistimos e cantamos – todos os hóspedes e família – um parabéns bem animado para o nosso anfitrião aniversariante.

Quanto ao Zé Augusto, este só fui ver no dia seguinte, ainda com a mesma roupa do dia anterior e preocupado com o combustível para os sócios voltarem para casa. Seu ânimo não estava comprometido. Disse: “é isso aí, vamos em frente”. É, ficar parado é que não dá. Mas o que será que aconteceu? Votos da vila explicam a derrota, que foi tão apertada? Domingos com 478 votos e Zé Augusto com 467 (mais 12 nulos, totalizando 957 votos). Fiquei pensando se não houvera uma transferência de votos das eleições municipais, ou seja, se muitos dos eleitores do PMDB não teriam transferido seus votos para Domingos nas eleições da Asareaj. Não sei. Será que o Zé Augusto ficou identificado com uma candidatura do PT? Não sei, talvez não, pois se este fosse o caso acho que a diferença teria sido maior entre ele e Domingos. Afinal, foram só 11 votos...

Pegamos – Terri, eu e Eliza, esta debutando na região – uma carona de canoa para voltar para vila e cruzamos com o batelão do fazendeiro Otávio, soltando rojão em comemoração pela vitória de Domingos, imaginamos. Ele, assim como outros, como o sr. Antonio Vieira, associaram-se e votaram nas eleições. Como isso foi possível? Quem os associou? Sua felicidade pela vitória de Domingos não deixava muitas dúvidas sobre isso.

Em Marechal Thaumaturgo, antes de voltar para casa, ainda presenciei uma movimentação ferrenha por parte dos moradores do Bagé, que desceram todos da foz do Tejo para a vila. Estavam inconformados com o resultado das eleições, e com a situação de desrespeito na Reserva. Pela diretoria eleita não nutriam qualquer esperança de mudança. Ainda no mesmo dia veio a notícia de que algumas irregularidades haviam sido identificadas nas eleições da Asareaj: o candidato eleito seria beneficiário do Projeto de Assentamento do Amônia, portanto um assentado; a presença de um número maior de votos do que de eleitores que assinaram a lista; o fato de fazendeiros terem votado. Começou a se formar um movimento daqueles que queriam a impugnação das eleições. Não sei bem como ficou, pois viajei sabendo que estava sendo organizado um abaixo-assinado. A semana passada, por telefone, soube que a ata da assembléia misteriosamente ainda não teria sido registrada. Mas que Domingos estaria em Cruzeiro do Sul, “apoiado por dois advogados” e disposto a brigar na Justiça por sua vitória.

Enfim, aí já estamos no campo da chamada rádio-cipó. Aguardemos os próximos capítulos desta trama, que parece que ainda vai longe...

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Uma assembléia no tempo III

Marcada para os dias 25 e 26 de outubro, a assembléia só foi realmente aberta na parte da tarde do primeiro dia. Toda a manhã fora dedicada a cadastrar os sócios-eleitores que chegavam à foz do Tejo, local da assembléia. Esta foi a medida adotada para tentar evitar que não-sócios conseguissem votar nas eleições para presidente da Associação, como ocorreu, segundo relatos, nas últimas assembléias e teriam ajudado a garantir as sucessivas reeleições de Orleir Fortunato. Por “não-sócios” refiro-me aqui aos “moradores da vila”, como são conhecidos os habitantes da sede municipal, distante a menos de uma hora da foz do Tejo. Como se comprovou, a medida não foi de todo descabida, embora também não de todo eficaz.

Apesar do desaparecimento da sala de reuniões, hospedaria e refeitório da Associação – que um colaborador da diretoria que encerrava o mandato convenientemente atribuía ao fato do barranco estar “quebrando” e a roubos praticados por desconhecidos – ou seja, apesar da precariedade das instalações disponíveis, o grupo que, junto com Zé Augusto, organizara a assembléia, o tempo todo defendera que a assembléia devia ocorrer mesmo que “no tempo”, isto é, ao ar livre. A situação em que a Associação realizava sua assembléia espelhava nada mais, nada menos do que a situação real em que se encontrava.

A Prefeitura (do PT) concordara em mandar construir uma estrutura de casa coberta de lona plástica (esta paga com recursos da assembléia), como se vê na foto acima. O chão, contudo, não foi nivelado; era de capim, roçado contudo. A cozinha funcionou na antiga casa de um morador, já desabitada e convertida em sala de aula no período escolar. Na escola propriamente dita funcionou o local de votação. Assim, espaços públicos cobertos eram dois: o da casa de lona, onde ocorreram as atividades do primeiro dia, e a escola.

Para comer, era entrar na fila, pegar o prato e arrumar um canto para se sentar; bancos haviam uns poucos, mas algumas toras de madeira foram convertidas em assentos. Para dormir, a casa de lona foi usada, assim como de moradores da localidade e das proximidades (dentro do rio Tejo, por exemplo); um batelão da prefeitura também foi cedido para as pessoas passarem a rede, assim como o do sr. Otávio, um fazendeiro residente na foz do Caipora, dentro dos limites da Reserva. Assim, a maior parte do espaço ocupado pelos participantes era ao ar livre, sob sol e chuva – tal como profetizado, no tempo.

Após o almoço, que mesmo com pratos insuficientes ocorreu com relativa tranquilidade, foi aberta a assembléia. Não sei dizer quantos participantes encontravam-se naquele momento na foz do Tejo, mas já passávamos dos 400, com certeza. O presidente em exercício, o sr. Evandro Lima Firmino, foi o primeiro a discursar, agradecendo a todos pela presença mas sem dar qualquer esclarecimento sobre a situação da Associação que estava entregando a diretoria a ser eleita. Em seguida, já sob o comando da Mesa Coordenadora dos trabalhos, presidida pelo STR, vários falaram: Benki Pianko(Apiwtxa/Yorenka Ãtame), eu mesma, Adalberto Iannuzzi (ICMBio/Ibama, de Rio Branco), Terri Aquino, Erisberto (vereador encerrando mandato pelo PT e candidato a vice na chapa de Zé Augusto), Maurício Praxedes (verador encerrando mandato pelo PMDB, vice-prefeito eleito pelo mesmo partido e assessor das últimas diretorias da Associação), João (presidente do STR), entre outros.

Já durante a primeira fala, de Benki, a chuva caiu, e forte. Foi interessante, porque criou uma situação de efetiva reunião de todos ali de baixo daquela casa de lona. Não dava para sair dali, e o jeito era ficar bem juntinho. O barulho da chuva na lona era forte, mas o microfone também falava alto, e ali ficamos todos até o final desta abertura mais formal. Ao final de algum tempo de chuva, muitos já estavam com os pés dentro d’água. Mas havia uma predisposição e boa vontade de quem estava ali, isto era visível. Com toda aquela precariedade material, as pessoas estavam interessadas no futuro da Reserva e de sua Associação. Foi mesmo comovente observar isso, mas, mais do que isto, foi gratificante: depois de tantos anos de Reserva, era possível perceber uma maturidade em muitas falas.

Da parte dos convidados, gostaria de registrar aqui a fala do representante estadual do ICMBio/Ibama, que assumiu publicamente a ausência da instituição da área, desculpou-se como pôde explicando a reestruturação pela qual passara o órgão, e, principalmente, comprometendo-se a novamente marcar presença na Reserva. Este ano, assegurou, já haverão algumas reuniões comunitárias visando marcar este tempo de retorno. Este foi um fato relevante, e que merece apoio e monitoramento.

Terminadas as falas dos convidados, o microfone foi aberto para quem desejasse se pronunciar. Várias foram as falas: de dona Nazaré, com seus 80 anos de vida no alto rio Bagé, uma veterana das assembléias da Associação, sempre na primeira fila, assistindo a tudo do primeiro ao último dia; o sr. Sebastião Estêvão, outro veterano dos tempos em que Macedo começou a andar na área; dona Maritô, valente moradora do rio Amônia, dedicada a buscar os direitos daqueles que se acham ameaçados pela criação de uma Terra Indígena naquele rio; Valmar Calixto, da família dos Cunha, compositor e cantor; Toinho Grajaú, do rio Bagé; um morador do rio Caipora, que valentemente denunciou a ação do fazendeiro das imediações amedrontando os moradores; João Gonzaga, seringueiro, poeta e artista, morador da colocação Solidão, no alto rio Bagé, entre outros. O renascer da Reserva era uma imagem constante nessas falas, algumas defendendo um ou outro candidato a presidente da Associação.

Assim encerrou-se o primeiro dia. Minha impressão era que tudo corria bem, e acho que não estava de todo errada. Claro que o pessoal da cozinha e de apoio trabalhava de forma redobrada para dar conta do volume de pessoas que só crescia. Previa-se uma insuficiência de combustível. A lista de cadastramento de sócios-votantes teve que funcionar até as 17 horas dada a chegada a todo instante de moradores da Reserva. A lama tornava o deslocamento dos participantes pelo local bastante desconfortável. Mas o clima era tranquilo, não havia animosidade no ar. Neste dia houve mesmo cantoria, e a dupla João Gonzaga e Joãozinho mais uma vez brindou a todos com suas canções e interpretações.

Para mim, a previsão de vitória nas eleições era imprevisível. Ouvi opiniões contraditórias todo o tempo: “Zé Augusto vai ganhar”, “Domingos vai ganhar”. A disputa era grande, estava claro.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Uma assembléia no tempo II

Claro que Zé Augusto não é aquele mocinho que faz tudo sozinho e vence os bandidos. Primeiro porque ele não esteve sozinho: pôde contar com o apoio inestimável do Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Marechal Thaumaturgo, liderado pelo combativo João Lima (seu irmão), e, principalmente, das comunidades de seringueiros e agricultores que visitou e que se uniram a ele na empreitada de retomar as rédeas da situação da Asareaj e da Reserva. Talvez não tenha ficado claro na última postagem, mas a Reserva encontrava-se numa situação de desgoverno. Não só pelo destino trágico da Asareaj – com seu presidente na cadeia, seu escritório de Cruzeiro do Sul fechado e sua estrutura na foz do Tejo totalmente destruída (na foto abaixo, restos arqueológicos do que um dia já foi um salão de reunião) – mas principalmente porque nos últimos anos todo o esforço de gestão participativa da Reserva foi colocado de escanteio, ou mesmo desestimulado.

Acabaram-se as reuniões comunitárias e as assembléias nas quais os sócios discutiam seus problemas e as soluções possíveis, planejando o futuro almejado. Práticas ilegais tornaram-se correntes, como a caçada com cachorros (“está liberta”, como vários moradores resumiam a situação), os desmatamentos na beira do rio, as pastagens (em especial no rio Juruá, mas não só) para gado que ultrapassam os limites permitidos pelo Plano de Utilização. Mesmo casos de retirada de madeira, na forma, por exemplo, de casas construídas na sede do Município por ex-moradores da Reserva ou de canoas para venda, passaram a ser relatados. Os antigos fiscais colaboradores, atuais Agentes Ambientais Voluntários, sentiam-se sem condições de trabalhar, principalmente pela não atuação complementar do Ibama, que da Reserva andava sumido há muito tempo. Assim, o Plano de Utilização, que pode ser descrito como a Constituição da Reserva, na qual estão gravadas suas leis mais fundamentais, parecia estar se tornando letra morta. Felizmente, para o desespero de muitos. Foi justamente este inconformismo que permitiu que a iniciativa de Zé Augusto, morador da foz do Bagé e com alguma experiência anterior na Asareaj, encontrasse terreno fértil.

No primeiro semestre deste ano, com apoio do STR, Zé Augusto percorreu, se não estou errada, 27 ou 28 comunidades da Reserva realizando reuniões comunitárias, todas elas com lista de presença e ata. Dessas reuniões emergia uma reivindicação: assembléia geral para eleição de nova diretoria da Asareaj. Foi com essas atas em mãos que, em agosto deste ano, Zé Augusto procurou antigos parceiros da Reserva: a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI), o Projeto de Pesquisa e Monitoramento e os Ashaninka do rio Amônea (estes institucionalizados na associação Apiwtxa e coordenando o Centro de Formação Yorenka Ãtame). Estes três parceiros – uma ONG, um programa de pesquisas colaborativas e uma organização indígena – estavam naquele momento, com recursos do Programa Arpa/Funbio, dando início a atividades focadas na gestão territorial da região do Alto Juruá. O apoio a demanda popular da qual Zé Augusto era portador foi conjuntamente avaliado como pertinente num contexto de necessário fortalecimento das organizações locais. Nesta mesma época, Zé Augusto, lograra viajar até Rio Branco e manter contato direto com o escritório do ICMBio/Ibama na capital acreana.
Em setembro do mesmo ano, em oficina realizada no Yorenka Ãtame, Zé Augusto compareceu com alguns representantes comunitários e o assunto foi novamente debatido. O presidente em exercício da Asareaj, o sr. Evandro, acabara de concordar em assinar um edital convocando uma assembléia geral para o dia 25 e 26 de outubro próximo. De repente o tempo ficou curto e a assembléia já estava no horizonte. Nesta conjuntura, dois fatos devem receber nossa atenção: candidaturas concorrentes começaram a pipocar pela Reserva, mas foram sendo localmente articuladas no esforço de uma chapa única encabeçada por Zé Augusto. Contudo, um candidato permaneceu independente. Conhecido por Domingos, este candidato a presidente da Asareaj, que já fora seringueiro no alto rio Machadinho (onde o conheci nos idos de 1994), tinha seus próprios apoios. Segundo relatos, entre seus apoiadores estaria o candidato a vice-prefeito pelo PMDB. O segundo fato a ser destacado é que justamente na semana seguinte o PT perderia a Prefeitura de Marechal Thaumaturgo para o PMDB.

Enquanto a política local esquentava, primeiro com as eleições municipais e, em seguida, com a proximidade da assembléia da Asareaj (já sendo divulgada no rádio), um esforço coletivo foi empreendido a partir de orçamento preparado por Zé Augusto e o sr. Antonio de Paula, ex-presidente da Asareaj e experimente em assembléias. Calculou-se que 400 sócios se fariam presentes. Ao final, quase na última hora, com a colaboração da CPI (pagamento de serviços locais, como cozinheiras), da Apiwtxa (combustível), do Gabinete do governador do Acre (combustível), do gabinete do deputado estadual Edvaldo Magalhães (combustível), da Rainforest Concern (combustível, alimentação), Prefeitura (infra-estrutura), Exército e Polícia Federal (segurança) e a doação de dois bois (pelo sr. Evandro e outra pessoa), alcançaram-se os recursos necessários a realização do evento. Observe-se que todo este trabalho não contou com o interesse ou participação do candidato que concorria com Zé Augusto, que se concentrava em fazer sua campanha na Reserva com apoios que só ficaram mais claros durante a assembléia.

Na próxima postagem, começa a assembléia!

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Uma assembléia no tempo I

Há já algum tempo a Reserva Extrativista do Alto Juruá vem sofrendo com a progressiva desestruturação, ou melhor, descaracterização pela qual vem passando a associação local de moradores. Criada em 1990, a Associação dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá (Asareaj) já conheceu dias melhores.
Nos dez anos que se seguiram à sua criação, enfrentando as dificuldades naturais de quando se está dando os primeiros passos, a Asareaj foi responsável pela condução do processo de consolidação da Reserva. Lembremo-nos de que trata-se da primeira Reserva Extrativista do planeta, e que o decreto que em 1990 regulamentou esta figura jurídica não era muito detalhista sobre como fazer para implantá-la. A Asareaj, nos primeiros anos junto com a representação regional do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS, coordenada por Antonio Macedo), e também com apoios diversos (Ibama, Cedi, Unicamp, Associação Saúde Sem Limites, CVA, organizações indígenas, entre outros), enfrentou com coragem seu ineditismo e seguiu em frente. Cadastrou os moradores, fez um levantamento sócio-econômico, votou e aprovou seu Plano de Utilização. Impossível dizer aqui tudo que ocorreu naqueles dez primeiros anos de Reserva, mas citaria, por exemplo, as unidades de produção de couro vegetal implantadas; o amplo programa de pesquisa e monitoramento que foi iniciado, e ainda vigora; os agentes comunitários de saúde que foram capacitados, estando hoje vários deles contratados pelo Município de Marechal Thaumaturgo, que na época, diga-se de passagem, ainda nem fora criado; os professores voluntários que trabalhavam em escolas construídas pela Asareaj.

Seguindo os estatutos, assembléias periódicas eram realizadas e novas diretorias eleitas, destacando-se nomes como Chico Ginú (antigo delegado sindical, ex-coordenador regional do CNS e hoje no ICMBio coordenando as ações na Reserva Extrativista do Riozinho da Liberdade), Dolor Farias (ex-seringueiro, liderança na criação da Reserva, talentoso mecânico e ferreiro, hoje morando na sede do Município), Milton Gomes da Conceição (líder d’os Milton, desde a primeira hora engajados no esforço de criação da Reserva), Antonio de Paula (veterano seringueiro, agente de saúde, contabilista e eternamento ativo nas lutas sociais), e Orleir Fortunato (ex-seringueiro, tesoureiro de muitas diretorias da Asareaj até sua ascensão à presidência, em 1999). Haveria outros nomes a serem lembrados, mas concentro-me aqui nas pessoas que ocuparam o cargo de presidente da Asareaj, alguns deles por mais de um mandato.

A entrada no século XXI, ao contrário do que poderia se esperar, representou um retrocesso para a Asareaj. O Projeto RESEX (recursos da cooperação internacional para Reservas Extrativistas) inundara a Reserva com várias ações, mas várias delas, contudo, acabaram sendo capitaneadas com fins eleitoreiros, o que ficou bem claro na assembléia da Asareaj de 1999. Nesta época, um outro paradoxo: a ascensão do PT ao governo do estado, em 1998, acabou por introduzir o componente partidário na luta e organização dos moradores da Reserva, com o tempo desviando a Asareaj de suas funções primeiras, quais seja: a defesa da Reserva e do interesse de seus moradores seringueiros e agricultores. Todo essse período é difícil de ser descrito num parágrafo, pois foram complexos e densos os processos que tiveram lugar. Políticas governamentais (municipais, estaduais e federais) terminaram estimulando a formação de pequenas “vilas” na Reserva, com o consequente abandono do modelo de “colocações”; as atividades agropecuárias entraram em alta em detrimento do extrativismo gomífero; a Asareaj passou a admitir entre seus sócios e assessores pessoas oriundas da sociedade local de ex-patrões, comerciantes e fazendeiros; e o Ibama, nos últimos anos, esteve quase que totalmente ausente da Reserva. Cooperação internacional, política partidária, urbanização, agropecuária, dominação neopatronal, ausência do poder público: posso estar exagerando, mas de alguma forma esses elementos compuseram o contexto dos últimos dez anos de história da Asareaj e da Reserva.

Há dois anos, contudo, um fato novo, novo e dramático: em 2006 o presidente da Asareaj, Orleir Fortunato (já em terceiro mandato por meio de alterações casuístas nos estatutos) foi preso por porte de drogas no aeroposto de Cruzeiro do Sul. Ainda hoje Orleir está preso. A notícia caiu como uma bomba na Reserva, abatendo a moral dos moradores, o que com o tempo foi se refletindo na própria dilapidação do patrimônio e imagem da Associação. A foto acima deve ser vista como uma metáfora dramática desta situação, e digo que hesitei bastante antes de colocá-la aqui. Os motivos que levaram Orleir a transportar drogas são, para mim e outros, desconhecidos, mas não deixa de causar estranhamento sua trajetória de seringueiro-diretor de associação à traficante-“mula”. Como este percurso tornou-se possível? Quem eram suas companhias? Em que esferas circulava? O que tudo isso tem a ver com a Reserva? São perguntas sem resposta. Hoje, soube, não sei se é verdade, Orleir tornou-se evangélico e, para o meu espanto, ouvi dizer que ainda tem liderança na Reserva, em especial no rio Juruá, onde concentrou sua atuação nos últimos anos de mandato. Se isso é verdade, como terá sido esta legitimidade construída a ponto de superar uma acusação tão grave quanto a que está enfrentando na prisão?

Com a prisão de Orleir, assumiu o vice, o sr. Evandro, sem nenhuma experiência prévia a frente de qualquer associação. E assim as coisas foram seguindo, a Asareaj parecendo uma espécie de carta momentaneamente fora do baralho. Em meados deste ano o mandato da diretoria eleita em 2005 expirou, mas nenhum esforço, que eu saiba, foi feito no sentido de convocar uma assembléia e realizar eleições para diretoria. Contudo, já em julho do ano passado, por ocasião da inauguração do Centro de Formação Yorenka Ãtame, coordenado pela Apiwtxa, na sede de Marechal Thaumaturgo, um homem procurava conversar com antigos aliados da Reserva e buscar apoio para mudar aquela situação.

Nas próximas postagens vou contar um pouco dos frutos do esforço desta pessoa, o Zé Augusto, morador do rio Bagé. Em particular, a Assembléia Geral que foi finalmente realizada no último fim de semana na foz do rio Tejo e que elegeu uma nova diretoria para a Asareaj. É emocionante, aguardem.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Identidade da pele

O último dia do Simpósio e Colóquio (dia 17) que ocorreu na UFAC (ver postagem anterior) foi emocionante. Às 14 horas ocorreu uma mesa que contou com duas presenças ilustres, embora até então desconhecidas aqui: o professor Juracy Marques, da Universidade Estadual da Bahia, e Jô Brandão, maranhense de nascimento, liderança negra e feminina do Conselho Nacional Quilombola. O tema era “Movimentos Sociais e Identidades Negras”. Ainda estou mastigando as instigantes questões que foram levantadas por Juracy e Jô. Este tema – o da “identidade”, o da auto-definição – está no centro dos meus atuais interesses, estou lendo sobre e ministrando uma disciplina na UFAC com este nome.

– “O que é ser ‘negro’?”, perguntou Juracy, provocando: “cor da pele é suficiente?”. Ou seja, é “negro” quem tem a pele negra? Bom, aí entra-se numa seara bem interessante, de quem se considera e não se considera, e de quem é considerado ou não. Casos foram relatados, como o do feirante que quase agrediu Jô por ela se definir como “negra”, enquanto ele [feirante], cuja pele tinha a mesma cor, afirmava-se “moreno”, ou melhor, não se considerava “negro”. O caso das cotas também foi tratado: como dizer se um aluno candidato é ou não negro para se incluir no programa? É ele que diz que é? Ou diz-se se ele é ou não? Jô defendeu as cotas, argumentando que elas estabelecem o debate da desigualdade e que não se trata de privilégio, e sim “de nivelamento de oportunidade”. – Por que temos tanto medo da diferença?, indagou. Afinal, as cotas trazem a diferença e a desigualdade para a cena principal.

O Brasil é signatário da “Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tradicionais”, que estabelece que o critério relevante é a auto-definição, é esta autonomia de dizer-se ao invés de ser dito. Os artigos constitucionais que garantem os direitos indígenas incorporaram, depois de muita briga e da participação importante de antropólogos e sua associação (a ABA), a formulação de que ser índio é uma questão de auto-determinação. Contudo, com relação aos quilombolas, a determinação legal mais recente (Instrução normativa 49, deste ano) está sendo considerada um retrocesso, em especial porque outorga, de acordo com Jô, ao Estado a identificação de grupos como quilombolas ou não. Parece que agora, antes de ter qualquer direito assegurado, uma perícia antropológica tem que ser feita e concluir que, sim, trata-se de quilombolas, ou não, não é o caso. Não é mole não esta vida de quilombola, e do antropólogo “perito de identidade”, como diz o Eduardo Viveiros de Castro.

Juracy mostrou com sua exposição, recorrendo aos intelectuais ditos “da diáspora” (africanos, indianos, que saíram de seus países, foram estudar nos grandes centros colonizadores e passaram a refletir sobre a realidade e dos processos vigentes em seus países, ex-colônias), que a auto-definição de “negro” pode conviver com outras, como a das populações que, além de negras, são “pescadores artesanais” e não detém títulos válidos de propriedade do local onde vivem, ou seja, são “posseiros”. O “ser negro”, disse, é algo que se constrói em processos político-organizativos. Assim, se bem entendi, ser negro teria uma dimensão política inegável, mas não necessariamente seria excludente de outras formas de auto-identificação dado o caráter de rede das relações sociais nas quais as pessoas transitam (pescador artesanal-negro-posseiro).

Mas a Jô, senti, estava disposta a colocar o dedo na ferida e na sua fala a questão racial, ou étnica, veio para o centro do debate. “A questão é raça”, não dá pra fugir, argumentou, “o racismo é escancarado”. Ela deixou claro que para o movimento quilombola, ou o movimento negro, ser “negro” é uma questão de pele sim. A sociedade assim o coloca, e as leis também. Não se pode esquecer, lembrou Jô, que a história das populações negras no Brasil remete ao continente africano e também aos processos de incorporação (escravidão) e resistência (quilombos-território-política, terreiros-religião). Então, tem uma conexão aí entre raça, terra e religião, tudo isso numa arena política que exige bons guerreiros. Foi muito bonito o momento de abertura da fala da Jô, em que ela, antes de tudo, agradeceu aos seus ancestrais e convidou-nos a ficar de pé e, com ela, cantar para Oxalá, o dono do dia (sexta-feira). Aberto e consentido o trabalho, ela pôde então trazer sua contribuição forte. Não sei se entendi tudo, mas ficou-me gravada uma fala de um ponto de vista de quem está num campo político-racial.

Minhas idéias sobre identificação étnica andam por outras praias, mesmo porque debruçadas sobre populações indígenas. Mas fiquei pensando na diferença que há entre o que por vezes refletimos na academia e o que é dito pelos agentes políticos. Como fazer este diálogo em torno de temas tão candentes? Como argumentar, por exemplo, numa situação de perícia técnica indigenista, frente ao Estado e aos próprios atores indígenas interessados em legitimar seus pleitos, que a auto-identificação étnica envolve devires outros que a auto-identificação "sou índio” (algo que se cria quando tem o outro que é “branco”)?

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Digo porque vi

Desde ontem, dia 13, está acontecendo na UFAC um evento que vale à pena ser prestigiado. Fruto da incansável disposição do Gérson Albuquerque, que recentemente foi batizado de nosso James Dean da floresta num artigo do Elson Martins, o evento na verdade são dois e seus nomes pomposos: o II Simpósio Linguagens e Identidade da/na Amazônia Sul Ocidental e o I Coloquio Internacional "As Amazônias, as Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia". Esta pomposidade faz juz, modéstia a parte (pois sou uma das palestrantes convidadas), ao rol de pesquisadores e professores presentes de vários estados do Brasil e gente também da América Latina e África. Idéias novas, pelo que vi hoje, estão circulando, e procurei dar minha contribuição neste sentido. Tudo isso faz bem para o intelecto, o corpo e as emoções. A programação, pra quem quiser, está no site da UFAC (ver em "Eventos").

Mas o que quero contar aqui é algo que me chamou atenção no evento de hoje à tarde, uma palestra com o Prof. Dr. Boubacar Barry, do Senegal, um senhor negro e vestido à caráter, como a foto acima deixa entrever. Ele falou em francês, língua do país que colonizou o Senegal, e que convive, dentro do país, com o árabe trazido pelo islamismo e as línguas nativas. Ele nos disse que a África, mais do que uma revolução econômica, como nos fazem crer as análises correntes nos meios de comunição, precisa antes de uma "revolução intelectual", ou "cultural", que dê conta de criar uma linguagem capaz de tocar, por exemplo, os 60% da população do Senegal que não fala francês ou mesmo árabe (que se fala das esferas de poder e nas mesquitas, respectivamente). Multiplique esta situação pelos países africanos, e você tem uma diversidade cultural imensa e uma dificuldade de diálogo talvez do mesmo porte. Nosso palestrante falou de outras coisas, como a tradição oral e a figura dos "griôs", mestres das narrativas orais e guardiães das histórias nelas veiculadas, e como estas tradições se relacionaram ao longo da conquista colonial e depois da independência com a disciplina da História.

Mas gostaria aqui de antes chamar atenção para algo bem interessante que aconteceu, e o que poderia ser um incômodo fruto de uma incapacidade individual transformou-se numa situação cuja solução foi encontrada pelo coletivo dos presentes. Nosso palestrante falou em francês, com um tradutor a seu lado. Ao início tudo correu bem. A parte inicial da palestra, densa de relatos e tradições orais, já tinha sido traduzida para o português, e nosso tradutor leu o texto de forma pausada e tranquila. Aí entrou em cena o Dr. Boubacar, com seu francês melodioso e calmo, para dar tempo ao tradutor de fazer o seu trabalho. Logo problemas começaram a aparecer: para quem entendia um pouco de francês (como eu, viva!), era perceptível que algo estava se perdendo; para quem entendia bastante, a situação foi ficando insustentável e interferências e correções começaram a ser feitas da platéia. A coisa foi indo de um jeito que uma dessas pessoas foi por nós, público ali mais próximo, indicada como co-tradutora ad hoc da palestra. E assim seguimos, agora mais confiantes. Mas traduzir cansa, e nossa recém-nomeada tradutora não dispensou o tradutor-veterano, chamando-o para um trabalho conjunto. E assim fomos indo. A situação ficou um pouco mais complexa na hora do debate: eram dois microfones para quatro falantes: o palestrante, os dois tradutores e o público participante. Mas tudo arranjou-se, e até o Gérson ajudou nesta movimentação e arranjo.

O que achei interessante nisso tudo foi que, para ouvirmos o Dr. Boubacar, que veio de tão longe para conversar conosco, tivemos que trabalhar em equipe: o paletrante pacientemente assistindo a tudo que ocorria sem dar o menor sinal de alteração; todos os presentes redobrando a atenção para entender idéias que iam sendo traduzidas por mais de uma pessoal, o que implicava em correções frequentes; o tradutor-veterano assumindo que era leigo no assunto (não na língua) e redimensionando sua participação; a tradutora-nomeada se dispondo a sair de sua posição de público e conosco socializar seus conhecimentos de francês e também do assunto; e o rapaz que traduzia para uma moça da platéia tudo que era dito para a linguagem de sinais dos surdos e mudos - bom, este trabalhou bastante dada a quantidade de fatos inusitados que tiveram lugar, com suas idas, vindas e reparos. Saí antes de acabar, lamentando ter que o fazer: estava, de fato, tudo muito interessante.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Cambitos e Garranchos

Este é o nome da iniciativa de fabricação artesanal de móveis rústicos por Saturnino Brito, amigo já de algum tempo e morador da Fortaleza, no Município de Capixaba. A Fortaleza é onde vive seu Luiz Mendes e vários de seus familiares e agregados. Uma comunidade reunida em torno da liderança do patriarca e do Santo Daime. A Fortaleza, que fica dentro de um desses clássicos Projetos de Assentamento do Incra quase que inteiramente desmatado para criação de gado, abriga um Parque Ecológico criado pelos próprios moradores com cerca de 40 hectares. Lá, é proibido caçar e qualquer tipo de exploração predatória. Alguns salões naturais foram instituídos como local de meditação, passeio e cerimônias com o Santo Daime.

Na Forteleza, Saturnino, filho de seu Luiz, resolveu fabricar móveis a partir do seguinte conceito: aquilo que está desprezado na floresta será a matéria-prima com a qual trabalharei. Foi assim que árvores naturalmente derrubadas pelo vento e não-aproveitadas, madeiras parcialmente aproveitadas devido a brocas, raízes que também ameaçavam se perder foram todas transformadas em cadeiras, mesas, bancos, camas, sofás. Estudando cada forma que encontrava nos restos ou pedaços de árvores e raízes recolhidas, explorando suas singularidades, trabalhando duro e com dedicação, Saturnino chegou a um primeiro conjunto de móveis. Com apoio de amigos e parceiros, os móveis foram transportados para Rio Branco para serem expostos numa feira de artesanato e comidas típicas que se encerrou no último domingo no centro da capital acreana.

Estive lá neste último dia de exposição para conhecer o trabalho de Saturnino, e lamentei não ter avisado outros amigos que certamente teriam sabido apreciar a iniciativa – e quem sabe se animado a adquirir uma das peças. Encontrei com o Altino lá, aí na foto experimentando um dos sofás da coleção. Não resisti e saí de lá com uma mesinha de centro e uma cadeira, esta última comprada depois que sentei e vi o quanto era confortável. Madeira é realmente um material fascinante e muito confortável: sua dureza é de outra natureza. As peças lá expostas, todas de madeira reaproveitada como disse, incluíam cedro, cerejeira, quariquara e outras parentas notáveis.

No dia seguinte, Saturnino veio em casa entregar os móveis, e me deu a boa notícia: foi tudo vendido. Bom começo. Quem quiser conhecer o trabalho, aguarde um pouco que novos móveis serão ainda produzidos. Não há data já definida para a próxima exposição, mas quando souber, com certeza aviso. De toda forma, se alguém quiser mais informações pode encontrar Saturnino na Fortaleza, trabalhando duro tanto no roçado, no incremento da estrutura do lugar, que sempre recebe muitos visitantes, nos trabalhos espirituais e, agora, também na oficina da Cambitos e Garranchos!

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Viva a aniversariante!

No último dia 29 fiz aniversário. Estava na Yorenka Ãtame, nos finalmentes da Oficina de Agroflorestalismo que lá realizávamos. Foi um aniversário atípico, por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque datas natalícias não costumam ser comemoradas naqueles interiores como costumamos fazê-lo nas cidades. Não foram poucas as vezes em que, ao longo desses anos, conversava com alguém que de repente se lembrava que aquele dia era o do seu aniversário, ou mesmo que seu aniversário havia passado e nem se lembrara... Bolo, velinhas para soprar e “parabéns pra você”, coisas que adoro fazer no meu aniversário, não são muito comuns nos altos rios. Então passei sem. Felicitações sim, recebi várias depois que alguém me denunciou como a aniversariante (eu mesmo estava disposta a passar o dia no anonimato).

O segundo motivo da singularidade deste 29 de setembro foi a surpreendente companhia, durante quase todo o dia, da Soraya, que por várias vezes me parabenizava e me brindava com um presente: um beijo, um sorriso, um piscar de olhos que ela sabe fazer, e até mesmo um presente mesmo: uma bonequinha, de nome “Pretinha”, presente de sua mãe e que ela carinhosamente depositou em minhas mãos depois de procurá-la com determinação no meio de suas coisas. Também brincamos na varanda de tirar fotos enquanto ela corria com meu xale para lá e para cá, “voando” como uma águia, afirmou. Contamos estórias uma para outra, brincamos de rugir como felinos e rimos bastante.

A Soraya tem sete anos. É filha da Ramene, que está morando em São Paulo, e do Tupi, com quem ela mora em Rio Branco há mais de um ano. Disse para a sua mãe que ela [Soraya] é um “ser ramênico”: amorosa, risonha e leve. Adorei o meu presente de aniversário. Uma alegria, a Soraya. Que Deus a abençoe sempre.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Aliança agroflorestal

Tem que ser com amor, ensinava ontem Antonio Caxixa, morador da Reserva Extrativista do Alto Juruá, inventivo agroflorestal formado por meio de oportunidades diversas na vida e fundamentalmente por seu próprio empenho e criatividade. Estávamos – participantes de uma Oficina de Agrofloresta no Centro de Formação Yorenka Ãtame – aprendendo como plantar uma muda de coco da praia. Caxixa mostrava como cortar as raízes da muda antes de colocá-la na terra e nos orientava como segurar o coco para não ofender as palhas.

Dali partimos para um local, uma parcela de terra pequena, em torno de 5 por 8 metros, e Benki indicou inicialmente os locais onde as mudas de coco (num total de três) poderiam ser plantadas. Como fazê-lo? Estava eu interessadíssima no assunto: mais um passo nos meus planos futuros de ter um dia uma propriedade com muitos pés de coco. Pois bem, aprendi que, escolhido o local, uma cova de meio metro de fundura deve ser cavada, sendo seu diâmetro também de 50 centímetros. Feito isso, a cova deve ser toda preenchida com terra estrumada (com cinza, esterco ou outro paú) e o coco plantado sem que seu “cólo” (da onde saem as palhas) seja inteiramente coberto. Última etapa: cobrir a terra em volta do coco com capim para que o sol não judie da muda recém-transplantada ou a chuva não a encharque impiedosamente.

Mas não paramos por aí. O objetivo era formar um início de Sistema Agroflorestal e Benki logo apareceu com outras mudas para dar continuidade à atividade de plantio. Ali, naquele pedaço de chão, cerca de meia hora depois, além dos cocos, já estavam plantados pés de pupunha, açaí, acerola e uma jabuticaba. Que coisa bacana, pensei, se esta moda pega... É um pouco este o objetivo da Oficina, embora moda talvez não seja o melhor termo, pois que passageira: é mais um modo de bem-viver que possa ser compartilhado pelos moradores indígenas e não-indígenas do Alto Juruá.

Como se sabe, a região do Alto Juruá, riquíssima na sua diversidade biológica e cultural, tem estado ameaçada por vários fatores, desde a exploração madeireira peruana que entra pela fronteira brasileira, invadindo Terras Indígenas e a Reserva; o tráfico de drogas, que tem na região algumas de suas rotas, assustando muitas famílias residentes em especial no rio Amônia; a expansão da pecuária na Reserva e seus consequentes desmatamentos, que por sua vez ameaçam os recursos hídricos; a criação de vilas no meio da floresta, impactando fortemente as tradicionais formas de ocupação do território e de uso dos recursos; a hipertrofia da influência do poder público municipal e a concomitante atrofia da força institucional das associações locais de moradores, agravada pela ausência do ICMBio/Ibama na região. O rosário é grande e não é o caso de o desfiar agora. Vamos antes às oportunidades e boas novas.

Índios, seringueiros e agricultores moradores da região começam a perceber que novas alternativas precisam ser criadas para a vida na região. Ouvi vários moradores duvidando do gado como uma alternativa realmente vantajosa, embora eles mesmos tenham investido nesta opção. Contudo, observam, os desmatamentos estão excessivos, não dá pra negar, e, afinal, está-se dentro de uma Reserva; os igarapés estão secando, a terra ficando dura como barro; e o rendimento auferido com o gado é no longo prazo e com muito investimento. Estas ponderações, estas dúvidas sobre que caminho seguir, são salutares e também portas de entrada para novas idéias e práticas.

Por meio de lideranças locais, de mediadores e aliados de longa data, da Yorenka Ãtame e de apoio financeiro externo governamental e não, um arco de alianças quer se firmar. Esta aliança é fundamentalmente entre quem tem mais a ganhar junto e muito a perder cada um por si: as populações locais. Alguém disse: “morar perto não é o mesmo que ser vizinho”. A construção desta vizinhança potencializa o agroflorestalismo como uma prática econômica e ambiental, e também como uma ação social e política.

Ver esta conversa acontecer, com seus impasses, diferenças e sinergias é algo que estimula e põe lenha na chama da minha esperança – que anda meio bruxuleante, como se sabe.