Dois sentimentos me assaltaram quando soube que os Kuntanawa estavam dando início a uma movimentação política visando reconhecimento étnico e territorial. Soube disso, se não estou equivocada, por meio do pessoal do Cimi em Cruzeiro do Sul, que me ligou para falar do assunto e gentilmente enviou-me documentos que naqueles dias (isso em 2004) os Kuntanawa haviam encaminhado a Funai e outros orgãos. Pois bem, como ia dizendo, dois sentimentos tive: o primeiro de surpresa, o segundo de apreensão.
A surpresa porque nem nos meus sonhos mais secretos imaginei que isso pudesse acontecer, quer dizer, que este ressurgimento étnico viesse a ganhar o espaço público e transformar-se numa demanda territorial. Que durante toda a pesquisa da minha tese de doutorado estivera lidando com um grupo com fortes referências indígenas, disso eu sabia e não tinha dúvidas. Desde nosso primeiro contato, em 1991, notei e anotei os traços indígenas, a proximidade e identificação com os "parentes" vizinhos - sendo tudo isso algo que os distinguia dos demais moradores da Reserva, que gostavam realmente de referir-se a eles como "caboclos" (que aqui no Acre é um sinônimo positivo e negativo de "índio"). A medida que a tese foi sendo construída, que a história familiar foi se desvelando e que minhas relações com a família foram se aprofundando, a todo momento esbarrava com a vertente indígena daquelas pessoas, seja em suas falas afirmativas ("sou índio"), sua maneira de viver, de estar juntos, de consagrarem a ayahuasca.
E abro um parêntese aqui para dizer que toda esta surpresa tem um componente de satisfação. A perspectiva que informou o trabalho de reconstituição da história da família de seu Milton é de que o destino daquelas pessoas foi (e é) por elas construído, com a autonomia possível dada pelas circunstâncias, mas com a agência inegável delas. E foi isso que vi acontecendo: independente de mim, da antropóloga "deles", seu Milton e filhos e demais parentes e afins decidiam sobre seu destino. Exatamente: eles não são "meus" índios, como se costuma dizer, mas eu a antropóloga "deles" - e com tranquilidade digo que fui a última a saber de tudo!
Mas falemos agora da apreensão. Na mesma hora, lá em 2004, pensei: "e a Reserva?". Refiro-me aqui a Reserva Extrativista do Alto Juruá, meu local e casa de trabalho desde 1991. Nossa, espantava-me, ela vai ficar sem um pedaço seu, e sem um povo seu também, pois "os Milton" são parte inseparável da história de criação da Reserva. Senti-me dividida. Queria apoiar e acompanhar meus amigos, mas queria também lutar pela Reserva, e de alguma forma isso estava associado, para mim, naquele momento, a manter a integridade do território. Pensava também nos moradores do alto rio Tejo, vizinhos dos "Milton" a serem atingidos pela possível criação de uma Terra Indígena: o que será deles? Para onde irão?
Como disse a Eliza no Papo dela (ver postagem anterior), não se trata de "mocinhos e bandidos", ou seja, não dá pra cair num maniqueísmo numa situação como esta: a de sobreposição de territórios indígenas sobre áreas habitadas por populações extrativistas. Mesmo porque os índios de hoje compartilharam a sociedade de seringal com os seringueiros, e muitos dos seringueiros de hoje tem em sua história a ascendência indígena. Os trânsitos entre uma situação e outra são mais complexos do que uma oposição simplificada entre "brancos" e "índios". Como então tomar partido? Devo dizer ainda que mais recentemente andei revendo minha relutância em pensar a Reserva desmembrada. Afinal, são as Reservas parentas próximas das Terras Indígenas, e os Kuntanawa, ora, estão no seu direito.
Mas, volta-me ao pensamento, há os demais, os ditos não-índios: como fica sua situação? Ah, receberão indenização e pronto, a lei é soberana e garante aos índios o direito à terra. Bom argumentações assim, tão taxativas, não conseguem me convencer por inteiro. Novamente, não se trata de bandidos e mocinhos. Os prováveis futuros atingidos são extrativistas, seringueiros, população trabalhadora e com uma história de mais de cem anos na área. De formas diferentes, participaram das lutas pela criação da Reserva, e, também de forma não homogênea, estão envolvidos no esforço de mantê-la para seus filhos e netos. Tal como os índios, lutam neste país para viver com dignidade. Que direito elas têm?
Tendo a concordar com a Eliza: é preciso um reconhecimento de direitos de ambas as partes e que isso seja levado a sério, ou seja, se traduza em procedimentos de negociação e políticas públicas, em especial no caso das indenizações. Ao Estado é exigida uma nova postura para lidar com uma situação de tal complexidade e delicadeza. Dará ele conta? Bom, aí já entram complicadores e morosidades inacreditáveis... Mas Eliza está certa em sua análise, concordo com ela.
Agora há pouco (ontem), o Ministério Público Federal no Acre enviou uma recomendação a FUNAI para que sejam iniciados os trabalhos de demarcação da TI Kuntanawa. A FUNAI tem 30 dias para se manifestar. Por outro lado, dentro da própria FUNAI, é aguardado para logo um parecer sobre o caso Arara, do rio Amônea. Muita água ainda vai rolar em mais este capítulo de sobreposições territoriais. Esperemos que o roteiro traga (boas) novidades.
2 comentários:
Cara Mariana,
O que me motivou a fazer esse comentário foi a leitura do Papo de índio último escrito por você.
Dois aspectos são de fato limitadores e, ao mesmo tempo, constituintes necessários aos processos, tanto envolvendo as populações indígenas quanto as não-indígenas: Político e legal (jurídico).
Do ponto de vista político não se trata de maniqueísmo simplório entre mocinhos e bandidos. Se trata de forças e projetos (como os do Incra e Ibama, parte deles) que historicamente vem negando direitos e apostando no "desenvolvimento" e "produção". Por causa dessa visão e modelo politico é que se torna mais fácil conseguir insentivos para o desmate, plantio de capim para a criação de bois e outros como a construção de barcos, casas escolas... até para o poder público.
Neste caso a posição política deve necessariamente partir de algum ponto. Não que esse ponto seja o único e somente ele o correto. No nosso caso partimos do ponto dos indígenas, nossos aliançados preferenciais por força de nosso compromisso histórico. Não obstante, em todas as nossas manifestações em defesa dos direitos dos povos indígenas, reafirmamos a necessidade de se fazer garantir também o bem viver dos não-índios igualmente pobres e desrespeitados. Neste ponto é preciso responsabilizarmos o Incra e o Ibama. Que venham a público manifestar sua compreenção e posição política frente a situação. Não vale se esconder e dizer que "o que está por trás dos índios é apenas uma ação 'política´".
Na perspectiva jurídica, temos sim garantias inclusive constitucionais aos povos indígenas. É importante dizer que essas garantias não foram dadas pelo Estado Brasileiro, mas foram conquistadas pelas lutas dos povos indígenas e seus aliados. Grandes mobilizações foram feitas (e ainda são feitas) em Brasília na intensão de garantir direitos e avançar na consolidação de uma legislação mais adequada à nossa realidade plurietnica.
Nós insentivamos sempre os povos indígenas a lutarem pelos seus direitos e exigirem respeito. Entendemos que os não-índios também precisam se organizar melhor e forçar a contrução de uma legislação que lhes seja mais favorável. É fato que o modelo de "assistência" dado hoje pelo Ibama e pelo Incra não respondem às necessidades e anseios.
Bom trabalho
Lindomar Padilha
Cara Mariana,
Ocupo mais uma vez esse espaço, desta vez para falar da grata satisfação que tivemos, nós do Cimi, com a decisão da justiça, por meio do juiz Sr. Dr. Jair Facundes, que deu ganho de causa ao povo Apolima-Arara (Arara do Amônia) e determinou que a Funai demarque aquela terra em até 90 dias. Caso a decisão não seja cumprida, será aplicada uma multa de R$ 2.000,00 por dia.
Como em comentário anterior eu disse que o Cimi faz uso do arcaboço jurídico que foi conquistado pela luta dos própios povos indígenas, tenho a satisfação de dizer que mais uma vez pode ser possível acreditar na justiça.
Alegra-me ainda mais quando o Cimi foi e tem sido duramente criticado por sua ação, chegando mesmo a ser acusado de "inventar índios" e "transformar" branco em liderança indígena, como é o caso do Francisco Siqueira. Parte da imprensa e alguns antropólogos se esmeraram em diminuir a importância de nossa luta e em desqualificar os aliados dos povos indígenas. Mas a luta continua e, em meio a tantas derrotas, uma vitoria para os Apolima-Arara com sabor de ano novo.
Bom Trabalho
Lindomar Padilha
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