segunda-feira, 30 de junho de 2008

Nietzsche em poesia

Ontem à noite, naquele marasmo da TV aos domingos, lembrei do "Café Filosófico", programa que a Cultura exibe quase na mesma hora do Fantástico - ou seja, uma opção fantástica!

Cheguei meio tarde, mas ainda há tempo de ouvir Viviane Mosé, que falava de Nietzsche. Que programa mais lindo, não sei reproduzir aqui, mas aprendi várias coisas que não conseguia aprender. E acabei retomando o Zaratustra antes de dormir (é a terceira vez que recomeço o livro...). Vou tentar achar o programa no site da Cultura.

Aqui quero postar uma poesia da palestrante (que, vi depois, é relativamente conhecida, parece que apresentou algo no afamado Fantástico - como é a vida!). Num determinado momento, ela declamou poesias suas, justamente quando falava sobre a idéia de "instante", do "agora", tão importantes no pensamento nitzscheano. Nossa, gostei demais (encontrei os poemas aqui).

quem tem olhos pra ver o tempo soprando sulcos na pele soprando sulcos na pele soprando sulcos?

o tempo andou riscando meu rosto

com uma navalha fina

sem raiva nem rancor

o tempo riscou meu rosto

com calma

(eu parei de lutar contra o tempo

ando exercendo instantes

acho que ganhei presença)

*

acho que a vida anda passando a mão em mim.

a vida anda passando a mão em mim.

acho que a vida anda passando.

a vida anda passando.

acho que a vida anda.

a vida anda em mim.

acho que há vida em mim.

a vida em mim anda passando.

acho que a vida anda passando a mão em mim

e por falar em sexo quem anda me comendo

é o tempo

na verdade faz tempo mas eu escondia

porque ele me pegava à força e por trás

um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo

se você tem que me comer

que seja com o meu consentimento

e me olhando nos olhos

acho que ganhei o tempo

de lá pra cá ele tem sido bom comigo

dizem que ando até remoçando

domingo, 29 de junho de 2008

Viva São Pedro!


Hoje é dia de São Pedro, o Simão Pedro, aquele pescador que Jesus encontrou à beira mar e com ele e seus companheiros foi pescar. O mar não estava para peixe, no dizer dos pescadores, e dizem que Simão Pedro duvidou do sucesso daquela pescaria. Pois voltaram para terra com a embarcação quase para afundar de tantos peixes recolhidos nas redes! Pedro tornou-se um seguidor de Jesus, um de seus discípulos. Sempre que leio os evangelhos fico com a impressão de uma pessoa de personalidade forte. Foi ele que, pouco antes da prisão de Jesus, disse que não consentiria em tal fato, ao que Jesus respondeu: pois antes do sol nascer, tu ainda hás de me negar três vezes. Pedro não acreditou: como? Eu? Jamais, Senhor! Mas foi justamente o que aconteceu, e dizem que quando Pedro percebeu que o profetizado estava se cumprindo "chorou amargamente". Pedro, que quer dizer, pedra, estaria hoje entre nós na figura do Papa, mas isso é outra história... Ele também foi crucificado, de cabeça pra baixo, o que também foi profetizado por seu Mestre. Enfim, São Pedro tem história pra contar e motivos para ser festejado. É ele quem tem as "chaves do Céu". Não entendo direito isso, mas de toda forma parece que ele é um porteiro, que ele sabe o segredo de uma passagem, aquela que todos cumpriremos um dia.

Viva São Pedro!

sábado, 28 de junho de 2008

O Brasil é grande, mas o mundo é pequeno

Eduardo Viveiros de Castro

A Amazônia não é uma “coleção de árvores” (estas existem nos Hortos Botânicos e nos jardins públicos ou de palácios), mas um ecossistema, uma floresta composta de árvores e uma infinidade de outras espécies vivas — inclusive seres humanos, que lá estão há pelo menos quinze mil anos.

A Amazônia jamais foi um vazio humano, ao contrário, se sem algum momento conheceu um nadir demográfico foi após a invasão européia, com suas epidemias, seus descimentos forçados das populações nativas para fixação em missões e feitorias. E as populações indígenas encontraram, ao longo destes milênios de co-adaptação com o ecossistema amazônico (ou eco-sistemas - pois a Amazônia não é uma só, mas muitas), soluções de “sustentabilidade” infinitamente superiores aos processos truculentos e míopes de desmatamento com correntes, desfolhantes, motosserras e assim por diante.

A floresta amazônica sempre foi povoada, e nunca foi, ou não é há muitos séculos, milênios talvez, “virgem” — a maioria das espécies úteis da floresta proliferou diferencialmente em função das técnicas indígenas de aproveitamento do território e de seus recursos. Mas do fato da floresta não ser mais virgem não se segue que seja legítimo estuprá-la. Pois é exatamente isso que se está fazendo.

A Amazônia está sim sofrendo um violento processo de agressão — e digo a Amazônia, não a tal coleção de árvores — a Amazônia inteira, suas populações tradicionais e suas miríades de espécies vivas. Um novo modelo de desenvolvimento, como tem sido reiteradamente pregado para o Brasil, um que não seja a imitação simplória das receitas norte-européias, precisa ser um modelo que ponha a floresta no centro da equação — pois chegou-se a um momento da historia do planeta onde a vida é o valor em crise — a vida humana e não-humana. Não é mais possível fazer política sem levar em consideração o quadro último em que toda política real é feita, o quadro da imanência terrestre.

Usei a palavra imanência deliberadamente aqui. O ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger falou em entrevista recente que o destino do homem é ser “grande, divino; não é ser uma criança aprisionada em um paraíso verde”; e que “todas as pessoas são espíritos que desejam transcender”. Os índios concordariam com o ministro de que todas as pessoas são espíritos; talvez não concordassem com a idéia de que só os seres humanos são pessoas, mas este é um outro problema. Com certeza, porém, não concordariam com a idéia de que todos os espíritos ou pessoas “desejam transcender”. Esta é uma afirmação que soaria aos ouvidos indígenas inquietantemente parecida com aquela que eles vieram ouvindo com tanta insistência durante os cinco séculos desde a chegada dos europeus — a afirmação de que eles são crianças que precisam ouvir a mensagem divina da transcendência para se tornarem seres humanos plenos, a saber, cristãos e bons cidadãos (i.e. com muita fé e nenhuma terra). Estou falando, naturalmente, da conversão e da catequese forçadas, às quais se juntaram , naturalmente também, a sujeição econômica e política dos povos indígenas e uma história de etnocídio.

Os índios não estão “aprisionados em um paraíso verde” como disse o ministro. A Amazônia não é um paraíso; ao contrário, é uma laboriosa construção co-adaptativa, um sistema em equilíbrio dinâmico onde entraram a engenhosidade técnica humana (indígena) e as infinitas engenhosidades naturais das espécies que ocupam a região. E os índios não estão aprisionados lá.

A idéia de que as populações indígenas precisam ser “liberadas”, que Mangabeira Unger expôs em certo texto recente, parece-me visceralmente equivocada. Os índios que sofrem de depressão, suicídio, alcoolismo são justamente os índios que não dispõem de terras — os índios do Mato Grosso do Sul, por exemplo —, não os índios da Amazônia como os Yanomami, povo forte e feliz, justamente por gozar de um território à medida de suas necessidades vitais e espirituais.

As áreas indígenas da Amazônia são as áreas menos desmatadas, são elas que detêm a devastação nas fronteiras do país; e elas são peça essencial no processo de regularização ou estabilização jurídica da situação fundiária caótica que é a Amazônia, o paraíso da grilagem, da pistolagem, do tráfico de drogas, do contrabando e do subsídio. A Amazônia tem hoje cerca de 20% de seu território desmatado — nas áreas indígenas, é menos de 1%. Em Rondônia, a situação é catastrófica. Em Roraima, o que temos são arrivistas (arrozeiros) vindos do Sul surfando na onda da ditadura (integrar para não entregar), que sustentam um sistema político local baseado na corrupção generalizada e na exploração extensiva de áreas sem nenhuma incorporação significativa de mão de obra. E ainda querem culpar os índios.

O General Augusto Heleno levantou uma lebre inexistente, e se fez porta-voz dos interesses mais retrógrados, civilizacionalmente, que hoje cobiçam a Amazônia. E o problema da Amazônia, ou do desenvolvimento da Amazônia, não é a falta de idéias, mas o excesso de interesses — o conflito de interesses, nem todos interessantes para o país. A posição do governador de Mato Grosso, que conjuga de maneira eticamente miraculosa (meu primeiro eufemismo do dia) o papel de representante de um Estado da federação e seu maior agente econômico, é repugnante, sob todos os títulos.

Naturalmente, os índios sofrem de vários problemas, muitos deles causados pela incúria dos órgãos e agências de Estado que deveriam fazer respeitar seus direitos constitucionais. Mas também não se pode negar que os índios conhecem dificuldades de adaptação às formas socioeconômicas (e espirituais) da sociedade nacional não porque lhes faltem oportunidades (ainda que lhes faltem, em muitos casos), mas porque suas culturas e sociedades escolheram desde muito cedo na história um caminho civilizacional radicalmente distinto do nosso; o que chamei de via da imanência em lugar de via da transcendência. As culturas indígenas não estão fundadas no princípio de que a essência do ser humano é o desejo e a necessidade. Seu modo de vida, seu “sistema” de vida, no sentido mais radical possível, é outro. Os índios não rezam pelo sistema econômico-teológico ocidental que consiste em tirar das pessoas o que elas têm e fazê-las desejar o que não têm – sempre. Outro nome desse princípio é ”capitalismo”, ou “desenvolvimento econômico”. Esta é a teologia bíblica da falta e da queda, da insaciabilidade infinita do desejo humano perante os meios materiais finitos de satisfazê-los.

O desenvolvimento é sempre suposto ser uma necessidade antropológica, exatamente porque ele supõe uma antropologia da necessidade: a infinitude subjetiva do homem – seus desejos insaciáveis – em insolúvel contradição com a finitude objetiva do ambiente – a escassez dos recursos. Estamos no coração da economia teológica do Ocidente, como tão bem mostrou Marshal Sahlins; na verdade, na origem de nossa teologia econômica do “desenvolvimento”. Mas essa concepção econômico-teológica da necessidade é, em todos os sentidos, desnecessária. O que precisamos é de um conceito de suficiência, não de necessidade. Contra a teologia da necessidade, uma pragmática da suficiência. Contra a aceleração do crescimento, a aceleração das transferências de riqueza, ou circulação livre das diferenças; contra a teoria economicista do desenvolvimento necessário, a cosmo-pragmática da ação suficiente. Os índios são os senhores da imanência. Que transcendência temos nós, os orgulhosos brasileiros, supostos representantes da Razão e da Modernidade, a oferecer a eles, neste desanimador começo de século? É mais fácil os índios nos libertarem que nós irmos libertar a eles. Pelo menos em espírito.

27/06/2008 (fonte: clique aqui)

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Boa conversa sobre o bom português

Esta semana tomei conhecimento de uma planilha sintetizando as novidades do Novo Acordo Ortográfico da língua portuguesa tal como falada e escrita entre nós, brasileiros. Procurei ansiosamente por mudanças nas regras da crase, ou mesmo na extinção desta senhora que é uma pedra do meu calcanhar. Que nada, ela é imexível, e pelo visto continua valendo com todas as suas regras e exceções. Na redação da minha tese de doutorado, ralei com a tal da crase, e meu orientador e amigo Mauro Almeida por diversas vezes, além de corrigir meu texto, explicou-me as regras de uso, em particular aquela em que a gente substitui a palavra depois do "a" por uma masculina e vê se cabe "ao"; se couber, perfeito, tasca a crase! Bom, mas o fato é que há várias exceções e subregras...

Assim que recebi a planilha, numa atitude de cumplicidade, enviei para o Mauro, apreciador da boa escrita que é. Mauro então me respondeu com um email que eu gostei muito de ler, pelo frescor de uma conversa despretensiosa entre amigos, por um tom de professor que é também o de um observador crítico sobre a idéia de "não saber escrever", e ainda pelas informações (mesmo curiosidades) que traz sobre a língua portuguesa. Pedi a ele para reproduzir seu email aqui imaginando que teria gente que apreciaria o texto. Ele topou. Então, caro leitor e leitora, com vocês as palavras de um bom mestre e estudioso:

Mariana: já que você tocou no assunto...

Muitos dos acentos que caíram com a nova reforma ortografica não faziam diferença para a pronúncia, e vários deles já não rolavam em Portugal.

Já com a crase há uma diferença essencial entre Brasil e Portugal: aqui ela não faz diferença para a pronúncia, sendo um acento puramente gráfico; já em Portugal, ela é pronunciada e faz muita diferença no significado! Por isso mesmo, lá ela designa um aspecto da lingua popular, e ninguém faz "erro de crase". Lá ela soa diferente e significa diferente.

Qual é a diferença de som que a crase assinala em Portugal? Lá, há dois sons distintos: "à" é pronunciado como um "aa" longo; e "a" sem crase é pronunciado como um "a" curto. No Brasil, pronunciamos igual os dois como um "a" curto.

E qual é a diferença de sentido? No primeiro caso, o do "aa" longo (que se escreve "à"), o papel da palavrinha, quando soa no ouvido português, é modificar o ato em questão: "ataco à direita" quer dizer que meu ATO se dá pelo lado direito (adjunto verbal). Já no segundo caso, o do "a" curto, o papel da palavrinha é apenas o de individualizar o objeto da ação: "ataco a direita" quer dizer que ataco esse objeto que é "a direita" (objeto direto). Se você disser essas duas frases em Portugal, a diferença de sentido fica imediatamente claro. Se você der um endereço dizendo "Vire a direita" (sem pronunciar a crase), é possível que o ouvinte não entenda: "-- Como virar a direita? A direita é flexível? Cadê ela, para eu virar?"

No Brasil, se dissermos por exemplo que Roberto "atacou a direita..." e a frase não for completada, não sabemos se ele atacou pela direita (atacou à direita do campo, pelo lado direito) ou se atacou os defensores do lado direito (atacou a direita da defesa adversária). São duas coisas diferentes...

Mas entendemos muito bem qual é qual por causa do contexto! Logo, aqui no Brasil, se fosse abolida, a crase não faria diferença, porque a gente entende intuitivamente qual é a função daquele sonzinho, pelo significado e pelo contexto.

Há um outro exemplo interessante de diferença entre Portugal e Brasil na maneira de falar. Lá, a palavra "falamos" é escrita de duas formas: "falamos" e "falámos", e pronunciada de dois modos: no primeiro caso como "falâmos", e no segundo caso como "falámos" (a aberto). "Falamos" (falâmos) refere-se ao presente, como em "falamos muito mal nossa língua hoje em dia". Já na frase "Falámos muito mal nossa língua, mas hoje falamos bem", um português sabe que a primeira palavra refere-se ao passado, e a segunda ao presente. Brincamos hoje, e brincámos na nossa infância...

Mais uma vez, não precisamos dessa distinção sonora, nem gráfica! O contexto torna a coisa clara. Mas os portugueses gostam de tudo muito bem explicado.

Em suma: essa diferença gráfica do "falamos/falámos", que expressa sons e sentidos diferentes, desapareceu no Brasil. Já no caso da crase "à direita/a direita", a diferença se manteve no Brasil apenas como marca gráfica. Para quê? Só para traçar uma distinção hierárquica entre "quem sabe escrever e quem não sabe". Alguém já disse que "a crase não foi feita para humilhar ninguém", mas no Brasil é exatamente essa a função dela!


Bjs,
Mauro

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Meirelles esclarece


A nota abaixo foi divulgada esta semana pelo Meirelles (acima, em foto feita pelo Altino Machado), coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Rio Envira, da Funai, e que tem estado no centro dos desdobramentos nacionais e internacionais da divulgação de fotos recentes de índios "isolados" em afluentes do alto rio Envira. O texto abaixo, divulgado no Terra Magazine, faz importantes esclarecimentos e reitera denúncias que vem sendo feitas sobre a atividade madeireira ilegal no Peru e o impacto sobre as populações nativas vivendo na fronteira. Vale muito a leitura.

Tendo em vista a Nota "Confirmado: No son peruanos los nativos fotografiados en territorio brasileño", emitida pela Oficina de Comunicaciones do Instituto Nacional de Recursos Naturales, a 13 de junho de 2008, e suas repercussões na imprensa escrita peruana e em diferentes sites da internet, e de informações desencontradas que resultaram da divulgação no Brasil e no exterior, de fotografias de índios isolados na região do rio Envira, no Estado do Acre, a Frente de Proteção Etnoambiental Rio Envira (Funai) vem a declarar:

A Funai mantém, desde o ano de 1987, a Frente de Proteção Etnoambiental Rio Envira (FPERE) cuja finalidade é proteger os povos isolados e seus territórios nas cabeceiras dos rios Envira, Tarauacá e Jordão.

Desde 1987 o coordenador dessa Frente é o sertanista José Carlos dos Reis Meirelles Júnior. Durante esse período foram oficialmente reconhecidas e demarcadas as Terras Indígenas Kampa e Isolados do rio Envira e Alto Tarauacá. Em 2008, será demarcada a Terra Indígena Riozinho do Alto Envira, consolidando, pelo lado brasileiro, um corredor contínuo de 636.384 hectares de florestas, que se estende ao longo do paralelo de 10ºS, na fronteira com o Peru.

O monitoramento dessas três terras indígenas é efetuado por dois postos de vigilância localizados nos rios Envira e Tarauacá, de forma a evitar invasões por caçadores e pescadores nos territórios dos índios isolados. Além disso, expedições terrestres e sobrevôos são feitos periodicamente como parte do monitoramento.

No ano de 2004, durante um sobrevôo, além das malocas já conhecidas, foi identificado um novo conjunto de malocas na região do igarapé Riozinho, afluente da margem direita do rio Envira. Com base nas informações deste sobrevôo, é possível afirmar que, naquele ano, não existia, no lado brasileiro, qualquer presença de povos isolados nas proximidades do paralelo de 10ºS.

No início de 2006, a Frente constatou a descida pelo rio Envira de pranchões de mogno serrados com motosserra, marcados com as iniciais dos pretensos proprietários, bem como tambores de combustível e de óleo comestível, com marca peruana, o que então evidenciou a atividade madeireira nas cabeceiras do rio Envira, em território peruano. Este material chegou ao lado brasileiro pela cheia do rio Envira. A Funai possui esta documentação fotográfica. Em 2007 o mesmo fato ocorreu, embora a maioria dos pranchões fosse de cedro.

Em 2006, à época da descida dos pranchões, a Frente constatou, por meio de vestígios (rastros, caminhos, tapiris e visitas de índios aos roçados da Frente) e de contato visual, a presença, no igarapé Xinane, de um grupo de índios isolados com características distintas daqueles índios que até então habitavam a região de forma permanente.

Em outubro de 2007, durante expedição terrestre no paralelo de 10ºS, como rotina de vigilância, foram encontrados, nas cabeceiras dos formadores do igarapé Xinane, vestígios da presença de índios isolados, alem de terem sido ouvidos gritos dos mesmos. As coordenadas geográficas desse ponto foram registradas com GPS. Em início de 2008, por meio do Google Earth, constatamos uma abertura na floresta próxima ao ponto registrado durante aquela expedição terrestre.

No final do mês de abril de 2008 foi realizado um novo sobrevôo na região, durante o qual monitoramos os dois conjuntos de malocas anteriormente conhecidas: o primeiro, nas cabeceiras do Rio Humaitá e igarapés da margem esquerda do rio Envira; e, o segundo, nas cabeceiras do igarapé Riozinho, afluente da margem direita do rio Envira.

Durante esse mesmo sobrevôo, guiados pelo ponto de GPS marcado na expedição terrestre e pelas coordenadas da abertura obtidas por meio do Google Earth, foi confirmada a existência de duas novas malocas de índios nas cabeceiras do igarapé Xinane, próximo ao paralelo de 10ºS, em território brasileiro.

Essas malocas não existiam antes de 2004, quando do sobrevôo então realizado. As evidências de atividade madeireira nas cabeceiras do rio Envira, no lado peruano, dos vestígios constantes no igarapé Xinane e a ocupação recente (malocas e roçados novos constatados fotograficamente) permitem afirmar que estes índios são oriundos do território peruano.

As fotografias amplamente divulgadas na mídia nacional e internacional, onde aparecem índios isolados, são do grupo das cabeceiras do rio Humaitá e igarapés da margem esquerda do rio Envira, que a Frente monitora há vinte anos, e são tradicionalmente habitantes do território brasileiro.

Outras dezenas de fotos das malocas dos índios isolados do igarapé Xinane, estes sim oriundos do Peru, foram encaminhadas à Fundação Nacional do Índio e não foram objeto de divulgação na mídia.

A Frente Envira protege quatro povos indígenas isolados, dos quais três têm hoje assentamento permanente em território brasileiro. Os Mashco-Piro também perambulam nas cabeceiras do Envira. Em 2004, cerca de trezentos desses índios se fizeram presentes na sede da Frente no rio Envira. Nos meses mais secos dos anos seguintes, novas evidências de sua perambulação foram constatadas. De nenhuma forma, portanto, os Mashco-Piro devem ser confundidos com os índios isolados há pouco chegados do Peru, estabelecidos nas cabeceiras do igarapé Xinane, em território brasileiro.

As informações já disponíveis demonstram que a presença de povos indígenas isolados na região de fronteira, em território peruano, não se restringe unicamente aos Mashco-Piro. A existência da reserva territorial Murunahua, destinada à proteção de povos em isolamento voluntário Murunahua, Chitonahua e outros, falantes do tronco lingüístico Pano, localizada no limite oeste do Parque Nacional Alto Purus e da Reserva Territorial Mascho-Piro, é uma evidência disso.

Por fim, a Fundação Nacional do Índio, torna pública a sua disposição de estreitar relações com os órgãos afins do Governo Peruano, com objetivo de implementar políticas articuladas para a proteção dos povos isolados e de seus territórios em ambos os lados da fronteira internacional do Brasil com o Peru.

Rio Branco, 27 de Junho de 2008

José Carlos dos Reis Meirelles Júnior
Coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Rio Envira (Funai)

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Viva São João!


Ontem foi dia de São João Batista, primo de Jesus, que anunciou sua vinda e o batizou, e foi por ele batizado, no lendário rio Jordão. São João, dizem as escrituras, pregava no deserto, no deserto natural e no interior, aquele que está dentro de todos nós. Pregava o arrependimento, que eu acredito que seja uma regeneração, uma revisão de conceitos, idéias, pensamentos e valores. Pregava a transformação que todos nós devemos fazer para receber o Cristo em nós. Sem esta transformação, a gente fica numa espécie de meio do caminho. Bom, São João era mais enfático, mas esta é minha leiga leitura. Na doutrina que o Mestre Irineu nos legou, a data do santo é das mais importantes.

E assim, tivemos festa, no Alto Santo e pelo Brasil e mundo afora. No Alto Santo, onde tive o prazer de estar, a fogueira queimou a noite toda, e lá, bailando e cantando, a víamos. Que imagem poderosa. Pedindo a São João que neste fogo sagrado fossem incineradas as dificuldades que atravancam a transformação, nos roubam a firmeza e fazem vacilar. O trabalho é forte. Um irmão querido sempre me dizia que a noite de São João era de guerra - guerra interior. Os demônios, pra usar este termo, mais temíveis são aqueles de dentro, não os de fora. E assim, nesta batalha espiritual, e também material, seguimos cantando o hinário do nosso Mestre, fazendo da fraqueza a força e do sofrimento uma festa. Alquimia espiritual que se processa no nosso interior.

Pra terminar, quero registrar algo inusitado: no Alto Santo, na casa fundada pelo Mestre Irineu, a mudança de horário, que adiantou os relógios acreanos em uma hora à zero hora do dia 24, não vigorará. Permanece valendo o horário antigo, aquele a partir do qual o Mestre Irineu acertava seu relógio e marcava o tempo das sessões. Mantendo a tradição (uma das missões da casa), será por ele que nossa agenda de trabalhos espirituais continuará a ser regida.

E VIVA SÃO JOÃO!

domingo, 22 de junho de 2008

Pra onde caminha a humanidade?


Esta semana que passou fui ver um filme incrível - incrível e terrível. Chama-se "O Pesadelo de Darwin", e realmente cheguei a pensar em acordar daquele sonho terrível abandonando a sala de projeção. O filme, ou melhor, o documentário, de 2004, é do diretor Haubert Sauper, um austríaco que já rodou muito estudando, dando aulas e, claro, filmando. "O Pesadelo de Darwin" foi premiadíssimo em vários festivais, concorreu a Oscar de melhor documentário e por aí vai.

Tudo se passa na Tanzânia, numa aldeia, Mawanza, as margens do lago Vitória. Este, eu não sabia, é o segundo maior lago do mundo e acredita-se que ali foi o berço onde veio à luz a humanidade, ou seja, todos nós. Ali está também a nascente do Nilo. Pois bem, neste local repleto de densas referências, nos anos 60 do século XX, por razões que não ficam muito claras, foi introduzida uma espécie exótica no lago, a perca do Nilo. Este peixe, enorme, revelou-se um predador de marca maior, comeu todas as outras espécies e se reproduziu a valer no lago.


Além de um evidente desastre ecológico, tudo isso resultou num desastre humano, resultado da inserção de Mawanza na economia globalizada. A perca virou o carro-chefe da economia local, o que significou a instalação de indústrias de processamento de sua carne e transformação em filés para exportação para os países do Norte. Essas indústrias não pertencem a africanos, que são antes seus empregados. O transporte para os países compradores do Norte é feito em aviões russos que pousam e decolam sem parar, e que nos intervalos frequentam os bares locais. Suspeita-se que quando pousam trazem armas. Os moradores locais estão todos, de alguma forma, enredados nesta teia: os pescadores, muitos deles ex-agricultores do interior, pescam para vender para as indústrias; as prostitutas servem aos pilotos dessas aeronaves; as crianças moram nas ruas ou em condições muito difíceis; os doentes, nos acampamentos de pescadores, morrem de males como a AIDs. Todos, é o que parece, passam fome. O peixe é caro, então existe ainda uma subindústria dos restos dos peixes, cujas imagens são revoltantes - revoltam o espírito e o estômago. Só vendo.


Tem uma cena em que um pescador fala do tipo de "seleção natural" que estaria ocorrendo ali, na qual os mais fortes, que são os países do norte (que transportam e comem o peixe), subjugam os mais fracos, que são os próprios africanos, que extraem mas não usufruem de qualquer benefício significativo do seu trabalho. Antes parecem atrelar-se cada vez mais a dominação ali instalada. O vigia da indústria de filés ganha US$1 por noite, e sonha que uma guerra estoure, pois assim poderá ter um soldo e comida regulares. É um cara bem inteligente e com um intrigante sorriso quase permamente no rosto. Um rapaz, ex-menino de rua que conseguiu escapar do destino a ele reservado, vale-se da pintura para exorcizar a dura realidade e retratar o que acontece a sua volta. Crianças brigam por comida, se degladiam em torno de uma panela de arroz, e no final há aquelas chorando... Enfim, um pesadelo.

Mas o filme não é apelativo. Não, não se trata de sensacionalismo ou algo do gênero. Inclusive não há uma narrativa que vá conduzindo. Simplesmente as imagens e os personagens vão falando e o espectador vai montando o quadro todo. Há personagens humanas de muita força e sensibilidade. E há aquelas coisas que a gente fica até com vergonha, como uma reunião da IUCN ou do Banco Mundial (não que essas coisas sejam propriamente comparáveis) na qual aquela realidade tão crua passa ao largo da discussão toda.

Fiquei pensando na civilização humana, no que estamos construindo e legando. Aí sim fiquei com vergonha, e pensando no valor da vida, no valor de se viver neste mundo. É, foi meio forte a coisa. Recomendo.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Essa é boa!

Não acreditei quando li as ameaças do governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, de que as medidas antidesmatamento que o governo está para baixar – como a que bloqueia o crédito de produtores atuando na ilegalidade – podem comprometer o abastecimento e vir a aumentar o preço da carne bovina, largamente consumida pela população brasileira. "Com toda a certeza, isso vai pesar na crise da falta de alimentos e na elevação do preço", disse o governador, em audiência pública na Câmara dos Deputados. É muita audácia! Aliás, essa turma do agrobusiness estão me saindo é uns terroristas muito competentes no ramo, que pelo visto está fazendo escola: primeiro foi o Quartiero, lá em Roraima, com bombas caseiras e tudo, atentando contra a legalidade de forma violenta e ostensiva – e logrando paralisar o processo da TI Raposa Serra do Sol que já se encontrava nos seus finalmentes, com todas as etapas legais cumpridas. E agora o Maggi, com seus torpedos que trazem a mensagem: para o povo comer, a lei não pode valer; ou a floresta ou a fome; ou a floresta ou a carestia; “bois piratas” na panela do povo!

Bois piratas... agora a culpa é dos pobres, que de toda forma vão morrer, culpados ou inocentes. E olha que segundo o mesmo Maggi são 10 milhões só em Mato Grosso. De acordo com o Ministério da Agricultura, neste estado 56% das cabeças de gado estão pastando em áreas que estão dentro do bioma Amazônia. E vocês acreditam que o Maggi, também em Brasília, se juntou ao seu colega Ivo Cassol, de Rondônia, e ambos vieram com a conversa de que o desmatamento em seus estados está caindo. Bom, só se for porque quase não tem mais floresta! Informação pirata, como diz uma amiga. Como é que vai desmatar se não tem... Caindo ou não, estes dois estados, junto com o Pará, até onde eu sei, são campeões de taxas de desflorestamento na Amazônia. É aquela história do rei que está nu, só ele mesmo não vê, ou não quer ver, ou não está nem aí. Sei lá.

Mas eu acho mesmo que ao invés da gente ficar batendo palma para a atitude do Maggi de ficar de bem com o Carlos Minc, dizendo que a Polícia Militar no seu estado vai ajudar no combate aos crimes ambientais, a gente tem mesmo é que parar de comer carne. Sério, gente. Temos que parar de engordar o bolso deste negócio que está colocando a nossa floresta abaixo. É uma boa causa, para não falar nas questões de saúde. A criação de gado é altamente impactante, não só para a mata, mas para os recursos hídricos, na concentração fundiária e por aí vai. E para a saúde também, não é lá essas coisas.

Ah, mas é tão bom, me dizem os meus alunos na Ufac, uma picanha, hum... Acho isso uma fraqueza.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Olha ela aí!


Olha aí a nossa querida Marina - uma mulher notável, não dá pra negar. Tem uma conversa dela no Magazine Terra que vale à pena ler, sobre a Raposa Serra do Sol e outras coisas mais. Vai aqui como dica, e pra quem quer matar saudades de uma Marina "menos estatal". Clique aqui.

domingo, 8 de junho de 2008

Índios e fronteira (inter)nacional no Acre


Saiu hoje na coluna Papo de Índio (editada por Terri Aquino e Marcelo Iglesias num jornal aqui da capital) o documento final de um encontro entre populações indígenas do Brasil e do Peru na região do alto rio Juruá. É um documento incrível para comprovar a tese de que povos e terras indígenas na fronteira jamais foram uma ameaça a soberania nacional - muito pelo contrário.

A ação de madeireiras nesta região de fronteira, uma delas até certificada sob o padrão FSC (!), tem colocado em risco a integridade de recursos naturais e de populações humanas, várias delas de índios "isolados". Comunidades indígenas tem sido verdadeiramente acossadas por madeireiras, várias delas ilegais. Decisões e "planos de manejo" tem sido aprovados sem que qualquer consulta prévia ou consentimento local tenham sido obtidos, contrariando acordos internacionais, como a Convenção 169 da OIT. A prospecção de petróleo também ameaça a região, e a própria Petrobrás, que vive fazendo programa sobre a sua face ambientalmente correta (mas não sobre a ambientalmente incorreta) obteve do governo peruano autorização para prospectar e explorar petróleo e gás numa área sobreposta a territórios indígenas e uma reserva territorial destinada à proteção de índios isolados. Como se não bastasse, uma nova estrada vem sendo cogitada (e defendida por parlamentares da região) ligando Cruzeiro do Sul a Pucalpa, no Peru, atravessando, por exemplo, o Parque Nacional da Serra do Divisor, um hotspot de biodiversidade.

A ausência do Estado brasileiro (e do peruano) na fiscalização e punição das ilegalidades tem sido a regra (que, claro, tem suas exceções, que, infelizmente, são poucas). Pra conseguir que providências sejam tomadas, a solução é chamar atenção, muita atenção, em Brasília e no mundo.

Há alguns anos os Ashaninka do rio Amônia, que desde 1999 vem chamando atenção para o que está ocorrendo na fronteira nacional, foram ao Ministério Público Federal e processaram a União pelos prejuízos que eles e seu território vem sofrendo com a invasão de madeireiras peruanas e traficantes. Ganharam a ação. O Alto Comando do Exército já esteve na região depois disso, e hoje há um destacamento do Batalhão de Infantaria da Selva em Marechal Thaumaturgo. Na semana passada, o diretor da Polícia Federal foi até lá, na aldeia, conversar com os índios sobre tudo que vem acontecendo na região. Se não fosse toda essa mobilização Ashaninka e os bons aliados que lograram conquistar, quando essa turma da lei e da ordem iria pessoalmente conhecer esta fronteira nacional ou mesmo saber de tudo que vem acontecendo por lá? Mas, rapaz!

Para acessar o documento (que é longo mas vale a leitura), clique aqui. A foto acima, tirada ao final do encontro, é do Txai Terri Valle de Aquino.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Axé e munição 2


Uma noite, um velho índio Cherokee contou ao seu neto sobre a guerra o que acontece dentro das pessoas.

Ele disse:

- A batalha é entre dois 'lobos' que vivem dentro de todos nós. Um é Mau. É a raiva, inveja, ciúme, tristeza, desgosto, cobiça, arrogância, pena de si mesmo, culpa, ressentimento, inferioridade, mentiras, orgulho, falsidade, superioridade e ego. O outro é Bom. É alegria, paz, esperança, serenidade, humildade, bondade, benevolência, empatia, generosidade, verdade, compaixão e fé.

O neto pensou nessa luta, e perguntou ao avô:

- Avô, qual lobo vence?

O velho Cherokee respondeu:

- Aquele que você alimenta...