domingo, 23 de maio de 2010

Cartografia Kuntanawa

No dia 4 de maio passado, no Anfiteatro Garibaldi Brasil, campus da Universidade Federal do Acre, em Rio Branco, foi lançado o fascículo "Kuntanawa do Alto Rio Tejo". Nesta publicação, esta etnia conta um pouco de sua história e luta atual pela identificação de sua Terra Indígena. O fascículo, elaborado no contexto do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e com apoio institucional da Comissão Pró-Índio do Acre, é fruto de duas oficinas realizadas na aldeia Sete Estrelas (rio Tejo, Município de Marechal Thaumaturgo, oeste acreano) e do empenho de pesquisadores do Projeto e diversos kuntanawa, homens e mulheres, em traduzir numa folha de papel a visão deste povo sobre seu território e uma proposta de delimitação que contemple o histórico de sua ocupação e uso pelos Kuntanawa.

O evento contou com seis representantes Kuntanawa que formam hoje o Grupo Vukanã, empenhado em reavivar as manifestações culturais do grupo. No ano passado, gravaram um CD. Foram eles, portanto, que abriram a noite com suas músicas. Em seguida, uma mesa foi composta por Haru Xinã e seu irmão Rivelino, ambos jovens lideranças dos Kuntanawa, e pelos antropólogos Marcelo Piedrafita e Mariana Pantoja, esta que vos fala. Era esperada a presença de um outro colega e pesquisador do Projeto, Terri Aquino, que contudo estava em viagem pelo rio Jordão. Um datashow projetou imagens do fascículo que estava sendo lançado e também dos Kuntanawa em suas casas e dia-a-dia no rio Tejo. O público presente foi composto basicamente por professores e alunos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, além de pessoas do governo estadual que, deve ser dito, apoiou a realização do evento por meio da Fundação de Cultura Elias Mansur e da Biblioteca da Floresta.

Os Kuntanawa tem hoje sua demanda de reconhecimento étnico e territorial registrada na FUNAI, embora ainda sem previsão da formalização de um Grupo de Trabalho para a identificação de seu território. A área pretendida pelo grupo está inteiramente superposta a Reserva Extrativista do Alto Juruá, a primeira desta natureza criada no Brasil, em 1990. Em 2009, uma outra etnia, os Arara do rio Amônia, tiveram seu território criado e parcialmente superposto a Reserva. Entre os desafios locais que os Kuntanawa deverão enfrentar nos próximos anos está a negociação e diálogo com seus vizinhos da Reserva, moradores e/ou usuários da área reivindicada como Terra Indígena.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A ABA e o oportunismo da Veja

A Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia divulgou uma nota, assinada por seu coordenador, o antropólogo João Pacheco de Oliveira, que merece ser lida. Entre outras coisas, o texto revela os interesses escusos por trás do jornalismo da Veja. Não dá pra ficar na inocência, e muito menos assinar esta revista, pelo amor de Deus!

Aproveito, portanto, para lançar a campanha: cancele sua assinatura e não compre nunca mais a revista Veja!

NOTA DA COMISSÃO DE ASSUNTOS INDÍGENAS:

A reportagem divulgada pelo último número da revista Veja, provocativamente intitulada "Farra da Antropologia oportunista", acarretou uma ampla e profunda indignação entre os antropólogos, especialmente aqueles que pesquisam e trabalham com temas relacionados aos povos indígenas. Dados quantitativos inteiramente equivocados e fantasiosos (como o de que menos de 10% das terras estariam livres para usos econômicos, pois 90% estariam em mãos de indígenas, quilombolas e unidades ambientais!!!) conjugam-se à sistemática deformação da atuação dos antropólogos em processos administrativos e jurídicos relativos a definição de terras indígenas.

Afirmações como a de que laudos e perícias seriam encomendados pela FUNAI a antropólogos das ONG's e pagos em função do número de indígenas e terras "identificadas"(!) são obviamente falsas e irresponsáveis. As perícias são contratações realizadas pelos juízes visando subsidiar técnica e cientificamente os casos em exame, como quaisquer outras perícias usuais em procedimentos legais. Para isto o juiz seleciona currículos e se apóia na experiência da PGR e em consultas a ABA para a indicação de profissionais habilitados. Quando a FUNAI seleciona antropólogos para trabalhos antropológicos o faz seguindo os procedimentos e cautelas da administração pública.

Os profissionais que realizam tais tarefas foram todos formados e treinados nas universidades e programas de pós-graduação existentes no país, como parte integrante do sistema brasileiro de ciência e tecnologia. A imagem que a reportagem tenta criar da política indigenista como uma verdadeira terra de ninguém, ao sabor do arbítrio e das negociatas, é um absurdo completo e tem apenas por finalidade deslegitimar o direito de coletividades anteriormente subalternizadas e marginalizadas.

Não há qualquer esforço em ser analítico, em ouvir os argumentos dos que ali foram violentamente criticados e ridicularizados. A maneira insultuosa com que são referidas diversas lideranças indígenas e quilombolas, bem como truncadas as suas declarações, também surpreende e causa revolta. Sub-títulos como "os novos canibais", "macumbeiros de cocar", "teatrinho na praia", "made in Paraguai", "os carambolas", explicitam o desprezo e o preconceito com que foram tratadas tais pessoas. Enquanto nas criticas aos antropólogos raramente são mencionados nomes (possivelmente para não gerar demandas por direito de resposta), para os indígenas o tratamento ultrajante é na maioria das vezes individualizado e a pessoa agredida abertamente identificada. Algumas vezes até isto vem acompanhado de foto.

A linguagem utilizada é unicamente acusatória, servindo-se extensamente da chacota, da difamação e do desrespeito. As diversas situações abordadas foram tratadas com extrema superficialidade, as descrições de fatos assim como a colocação de adjetivos ocorreram sempre de modo totalmente genérico e descontextualizado, sem qualquer indicação de fontes. Um dos antropólogos citado como supostamente endossando o ponto de vista dos autores da reportagem afirmou taxativamente que não concorda e jamais disse o que a revista lhe atribuiu, considerando a matéria "repugnante". O outro, que foi presidente da FUNAI por 4 anos, critica duramente a matéria e destaca igualmente que a citação dele feita corresponde a "uma frase impronunciada" e de "sentido desvirtuante" de sua própria visão.

A agressão sofrida pelos antropólogos não é de maneira alguma nova nem os personagens envolvidos são desconhecidos, isto apenas considerando os últimos anos. O antropólogo Stephen Baines em 2006 concedeu uma longa entrevista a Veja sobre os índios Waimiri-Atroari, população sobre a qual escrevera anos antes sua tese de doutoramento. A matéria não saiu, mas poucos meses depois, uma reportagem intitulada "Os Falsos Índios", publicada em 29 de março de 2006, defendendo claramente os interesses das grandes mineradoras e empresas hidroelétricas em terras indígenas, inverteu de maneira grosseira as declarações do antropólogo (pg. 87). Apesar dos insistentes pedidos do antropólogo para retificação, sua carta de esclarecimento jamais foi publicada pela revista. O autor da entrevista não publicada e da reportagem era o sr. Leonardo Coutinho, um dos autores da matéria divulgada na última semana pelo mesmo meio de comunicação.

Em 14-03-2007, na edição 1999, entre as pgs. 56 e 58, uma nova invectiva contra os indígenas foi realizada pela Veja, agora visando o povo Guarani e tendo como título "Made in Paraguai - A Funai tenta demarcar área de Santa Catarina para índios paraguaios, enquanto os do Brasil morrem de fome". O autor era José Edward, parceiro de Leonardo Coutinho, na matéria citada no parágrafo anterior. Curiosamente um sub-título foi repetido na matéria da semana passada - "Made In Paraguay". O então presidente da ABA, Luis Roberto Cardoso de Oliveira, solicitou o direito de resposta e encaminhou um texto à revista, que nem sequer lhe respondeu. Poucos meses depois a revista Veja, em sua edição 2021, voltou à carga com grande sensacionalismo. A matéria de 15-08-2007 era intitulada "Crimes na Floresta – Muitas tribos brasileiras ainda matam crianças e a Funai nada faz para impedir o infanticídio" ( pgs. 104-106). O sub-título diz explicitamente que o infanticídio não teria sido abandonado pelos indígenas em razão do "apoio de antropólogos e a tolerância da Funai." A matéria novamente foi assinada pelo mesmo Leonardo Coutinho. Novamente o protesto da ABA foi ignorado pela revista e pode circular apenas através do site da entidade.

Em suma, jornalismo opinativo não pode significar um exercício impune da mentira nem práticas sistemáticas de detratação sem admissão de direito de resposta. O mérito de uma opinião decorre de informação qualificada, de isenção e equilíbrio. Ao menos no que concerne aos indígenas as matérias elaboradas pela Veja, apenas requentam informações velhas, descontextualizadas e superficiais, assumindo as características de uma campanha, orquestrada sempre pelos mesmos figurantes, que procuram pela reiteração inculcar posturas preconceituosas na opinião pública.

Numa análise minuciosa desta revista, realizada em seu site, o jornalista Luis Nassif fala de uma perigosa proximidade entre lobistas e repórteres nas revistas classificadas como do estilo "neocon". A presença de "reporteres de dossier" é uma outra característica deste tipo de revista. A luz dos comentários deste conceituado jornalista a lista de situações onde a condição de indígenas é sistematicamente questionada não deixa de ser bastante significativa. Ai aparecem os Anacés, que vivem no município de São Gonçalo do Amarante (onde está o porto de Pecem, no Ceará); os Guarani-M'bià, confrontados por uma proposta do mega-investidor Eike Batista de construção de um grande porto em Peruíbe, São Paulo; e os mesmos Guaranis de Morro dos Cavalos (SC), que lutam contra interesses poderosos, que os qualificam como "paraguaios" (tal como os seus parentes Kayowá e Nandevá do Mato Grosso do Sul, em confronto com o agro-negócio pelo reconhecimento de suas terras). Como o objetivo último é enfraquecer os direitos indígenas (em disputas concretas com interesses privados), os alvos centrais destes ataques tornam-se os antropólogos, os líderes indígenas e os seus aliados (a matéria cita o Conselho Indigenista Missionário/CIMI por várias vezes e sempre de forma igualmente desrespeitosa e inadequada).

É neste sentido que a CAI vem expressar sua posição quanto a necessidade de uma responsabilização legal dos praticantes de tal jornalismo, processando-os por danos morais e difamação. Neste momento a Presidência da ABA está em contato com seus assessores no campo jurídico visando definir a estratégia processual de intervenção a seguir.

Dada a assimetria de recursos existentes, contamos com a mobilização dos antropólogos e de todos que se preocupam com a defesa dos direitos indígenas para, através de sites, listas na Internet, e publicações variadas, vir a contribuir para o esclarecimento da opinião pública, anulando a ação nefasta das matérias mentirosas acima mencionadas. Que não devem ser vistas como episódios isolados, mas como manifestações de um poder abusivo que pretende inviabilizar o cumprimento de direitos constitucionais, abafando as vozes das coletividades subalternizadas e cerceando o livre debate e a reflexão dos cidadãos. No que toca aos indígenas em especial a Veja tem exercitado com inteira impunidade o direito de desinformar a opinião pública, realimentar velhos estigmas e preconceitos, e inculcar argumentos de encomenda que não resistem a qualquer exame ou discussão.

João Pacheco de Oliveira
Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas/CAI

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Para entender a farra oportunista da Veja

Pra quem está acompando minimamente os desdobramentos da reportagem da Veja desta semana intitulada "A farra da antropologia oportunista", aconselho fortemente o artigo de Rafael Barbi, que desvenda a falácia dos argumentos da revista apoiado, agora sim, em dados consistentes e com fontes citadas. Lá também podemos encontrar, na íntegra, as cartas de protesto de Eduardo Viveiros de Castro e Márcio Meire, denunciando a fraude da revista ao atribuir-lhes declarações que não se sustentam.

Pra quem está por fora, não lê (ou assina) a Veja (o que é sinal de bom senso na gestão da economia do lar e da mente), vale também ler o artigo de Barbi pra se informar e pra aprender um pouco mais de boa antropologia.

Boa leitura!

segunda-feira, 3 de maio de 2010