sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Uma assembléia no tempo II

Claro que Zé Augusto não é aquele mocinho que faz tudo sozinho e vence os bandidos. Primeiro porque ele não esteve sozinho: pôde contar com o apoio inestimável do Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Marechal Thaumaturgo, liderado pelo combativo João Lima (seu irmão), e, principalmente, das comunidades de seringueiros e agricultores que visitou e que se uniram a ele na empreitada de retomar as rédeas da situação da Asareaj e da Reserva. Talvez não tenha ficado claro na última postagem, mas a Reserva encontrava-se numa situação de desgoverno. Não só pelo destino trágico da Asareaj – com seu presidente na cadeia, seu escritório de Cruzeiro do Sul fechado e sua estrutura na foz do Tejo totalmente destruída (na foto abaixo, restos arqueológicos do que um dia já foi um salão de reunião) – mas principalmente porque nos últimos anos todo o esforço de gestão participativa da Reserva foi colocado de escanteio, ou mesmo desestimulado.

Acabaram-se as reuniões comunitárias e as assembléias nas quais os sócios discutiam seus problemas e as soluções possíveis, planejando o futuro almejado. Práticas ilegais tornaram-se correntes, como a caçada com cachorros (“está liberta”, como vários moradores resumiam a situação), os desmatamentos na beira do rio, as pastagens (em especial no rio Juruá, mas não só) para gado que ultrapassam os limites permitidos pelo Plano de Utilização. Mesmo casos de retirada de madeira, na forma, por exemplo, de casas construídas na sede do Município por ex-moradores da Reserva ou de canoas para venda, passaram a ser relatados. Os antigos fiscais colaboradores, atuais Agentes Ambientais Voluntários, sentiam-se sem condições de trabalhar, principalmente pela não atuação complementar do Ibama, que da Reserva andava sumido há muito tempo. Assim, o Plano de Utilização, que pode ser descrito como a Constituição da Reserva, na qual estão gravadas suas leis mais fundamentais, parecia estar se tornando letra morta. Felizmente, para o desespero de muitos. Foi justamente este inconformismo que permitiu que a iniciativa de Zé Augusto, morador da foz do Bagé e com alguma experiência anterior na Asareaj, encontrasse terreno fértil.

No primeiro semestre deste ano, com apoio do STR, Zé Augusto percorreu, se não estou errada, 27 ou 28 comunidades da Reserva realizando reuniões comunitárias, todas elas com lista de presença e ata. Dessas reuniões emergia uma reivindicação: assembléia geral para eleição de nova diretoria da Asareaj. Foi com essas atas em mãos que, em agosto deste ano, Zé Augusto procurou antigos parceiros da Reserva: a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI), o Projeto de Pesquisa e Monitoramento e os Ashaninka do rio Amônea (estes institucionalizados na associação Apiwtxa e coordenando o Centro de Formação Yorenka Ãtame). Estes três parceiros – uma ONG, um programa de pesquisas colaborativas e uma organização indígena – estavam naquele momento, com recursos do Programa Arpa/Funbio, dando início a atividades focadas na gestão territorial da região do Alto Juruá. O apoio a demanda popular da qual Zé Augusto era portador foi conjuntamente avaliado como pertinente num contexto de necessário fortalecimento das organizações locais. Nesta mesma época, Zé Augusto, lograra viajar até Rio Branco e manter contato direto com o escritório do ICMBio/Ibama na capital acreana.
Em setembro do mesmo ano, em oficina realizada no Yorenka Ãtame, Zé Augusto compareceu com alguns representantes comunitários e o assunto foi novamente debatido. O presidente em exercício da Asareaj, o sr. Evandro, acabara de concordar em assinar um edital convocando uma assembléia geral para o dia 25 e 26 de outubro próximo. De repente o tempo ficou curto e a assembléia já estava no horizonte. Nesta conjuntura, dois fatos devem receber nossa atenção: candidaturas concorrentes começaram a pipocar pela Reserva, mas foram sendo localmente articuladas no esforço de uma chapa única encabeçada por Zé Augusto. Contudo, um candidato permaneceu independente. Conhecido por Domingos, este candidato a presidente da Asareaj, que já fora seringueiro no alto rio Machadinho (onde o conheci nos idos de 1994), tinha seus próprios apoios. Segundo relatos, entre seus apoiadores estaria o candidato a vice-prefeito pelo PMDB. O segundo fato a ser destacado é que justamente na semana seguinte o PT perderia a Prefeitura de Marechal Thaumaturgo para o PMDB.

Enquanto a política local esquentava, primeiro com as eleições municipais e, em seguida, com a proximidade da assembléia da Asareaj (já sendo divulgada no rádio), um esforço coletivo foi empreendido a partir de orçamento preparado por Zé Augusto e o sr. Antonio de Paula, ex-presidente da Asareaj e experimente em assembléias. Calculou-se que 400 sócios se fariam presentes. Ao final, quase na última hora, com a colaboração da CPI (pagamento de serviços locais, como cozinheiras), da Apiwtxa (combustível), do Gabinete do governador do Acre (combustível), do gabinete do deputado estadual Edvaldo Magalhães (combustível), da Rainforest Concern (combustível, alimentação), Prefeitura (infra-estrutura), Exército e Polícia Federal (segurança) e a doação de dois bois (pelo sr. Evandro e outra pessoa), alcançaram-se os recursos necessários a realização do evento. Observe-se que todo este trabalho não contou com o interesse ou participação do candidato que concorria com Zé Augusto, que se concentrava em fazer sua campanha na Reserva com apoios que só ficaram mais claros durante a assembléia.

Na próxima postagem, começa a assembléia!

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Uma assembléia no tempo I

Há já algum tempo a Reserva Extrativista do Alto Juruá vem sofrendo com a progressiva desestruturação, ou melhor, descaracterização pela qual vem passando a associação local de moradores. Criada em 1990, a Associação dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá (Asareaj) já conheceu dias melhores.
Nos dez anos que se seguiram à sua criação, enfrentando as dificuldades naturais de quando se está dando os primeiros passos, a Asareaj foi responsável pela condução do processo de consolidação da Reserva. Lembremo-nos de que trata-se da primeira Reserva Extrativista do planeta, e que o decreto que em 1990 regulamentou esta figura jurídica não era muito detalhista sobre como fazer para implantá-la. A Asareaj, nos primeiros anos junto com a representação regional do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS, coordenada por Antonio Macedo), e também com apoios diversos (Ibama, Cedi, Unicamp, Associação Saúde Sem Limites, CVA, organizações indígenas, entre outros), enfrentou com coragem seu ineditismo e seguiu em frente. Cadastrou os moradores, fez um levantamento sócio-econômico, votou e aprovou seu Plano de Utilização. Impossível dizer aqui tudo que ocorreu naqueles dez primeiros anos de Reserva, mas citaria, por exemplo, as unidades de produção de couro vegetal implantadas; o amplo programa de pesquisa e monitoramento que foi iniciado, e ainda vigora; os agentes comunitários de saúde que foram capacitados, estando hoje vários deles contratados pelo Município de Marechal Thaumaturgo, que na época, diga-se de passagem, ainda nem fora criado; os professores voluntários que trabalhavam em escolas construídas pela Asareaj.

Seguindo os estatutos, assembléias periódicas eram realizadas e novas diretorias eleitas, destacando-se nomes como Chico Ginú (antigo delegado sindical, ex-coordenador regional do CNS e hoje no ICMBio coordenando as ações na Reserva Extrativista do Riozinho da Liberdade), Dolor Farias (ex-seringueiro, liderança na criação da Reserva, talentoso mecânico e ferreiro, hoje morando na sede do Município), Milton Gomes da Conceição (líder d’os Milton, desde a primeira hora engajados no esforço de criação da Reserva), Antonio de Paula (veterano seringueiro, agente de saúde, contabilista e eternamento ativo nas lutas sociais), e Orleir Fortunato (ex-seringueiro, tesoureiro de muitas diretorias da Asareaj até sua ascensão à presidência, em 1999). Haveria outros nomes a serem lembrados, mas concentro-me aqui nas pessoas que ocuparam o cargo de presidente da Asareaj, alguns deles por mais de um mandato.

A entrada no século XXI, ao contrário do que poderia se esperar, representou um retrocesso para a Asareaj. O Projeto RESEX (recursos da cooperação internacional para Reservas Extrativistas) inundara a Reserva com várias ações, mas várias delas, contudo, acabaram sendo capitaneadas com fins eleitoreiros, o que ficou bem claro na assembléia da Asareaj de 1999. Nesta época, um outro paradoxo: a ascensão do PT ao governo do estado, em 1998, acabou por introduzir o componente partidário na luta e organização dos moradores da Reserva, com o tempo desviando a Asareaj de suas funções primeiras, quais seja: a defesa da Reserva e do interesse de seus moradores seringueiros e agricultores. Todo essse período é difícil de ser descrito num parágrafo, pois foram complexos e densos os processos que tiveram lugar. Políticas governamentais (municipais, estaduais e federais) terminaram estimulando a formação de pequenas “vilas” na Reserva, com o consequente abandono do modelo de “colocações”; as atividades agropecuárias entraram em alta em detrimento do extrativismo gomífero; a Asareaj passou a admitir entre seus sócios e assessores pessoas oriundas da sociedade local de ex-patrões, comerciantes e fazendeiros; e o Ibama, nos últimos anos, esteve quase que totalmente ausente da Reserva. Cooperação internacional, política partidária, urbanização, agropecuária, dominação neopatronal, ausência do poder público: posso estar exagerando, mas de alguma forma esses elementos compuseram o contexto dos últimos dez anos de história da Asareaj e da Reserva.

Há dois anos, contudo, um fato novo, novo e dramático: em 2006 o presidente da Asareaj, Orleir Fortunato (já em terceiro mandato por meio de alterações casuístas nos estatutos) foi preso por porte de drogas no aeroposto de Cruzeiro do Sul. Ainda hoje Orleir está preso. A notícia caiu como uma bomba na Reserva, abatendo a moral dos moradores, o que com o tempo foi se refletindo na própria dilapidação do patrimônio e imagem da Associação. A foto acima deve ser vista como uma metáfora dramática desta situação, e digo que hesitei bastante antes de colocá-la aqui. Os motivos que levaram Orleir a transportar drogas são, para mim e outros, desconhecidos, mas não deixa de causar estranhamento sua trajetória de seringueiro-diretor de associação à traficante-“mula”. Como este percurso tornou-se possível? Quem eram suas companhias? Em que esferas circulava? O que tudo isso tem a ver com a Reserva? São perguntas sem resposta. Hoje, soube, não sei se é verdade, Orleir tornou-se evangélico e, para o meu espanto, ouvi dizer que ainda tem liderança na Reserva, em especial no rio Juruá, onde concentrou sua atuação nos últimos anos de mandato. Se isso é verdade, como terá sido esta legitimidade construída a ponto de superar uma acusação tão grave quanto a que está enfrentando na prisão?

Com a prisão de Orleir, assumiu o vice, o sr. Evandro, sem nenhuma experiência prévia a frente de qualquer associação. E assim as coisas foram seguindo, a Asareaj parecendo uma espécie de carta momentaneamente fora do baralho. Em meados deste ano o mandato da diretoria eleita em 2005 expirou, mas nenhum esforço, que eu saiba, foi feito no sentido de convocar uma assembléia e realizar eleições para diretoria. Contudo, já em julho do ano passado, por ocasião da inauguração do Centro de Formação Yorenka Ãtame, coordenado pela Apiwtxa, na sede de Marechal Thaumaturgo, um homem procurava conversar com antigos aliados da Reserva e buscar apoio para mudar aquela situação.

Nas próximas postagens vou contar um pouco dos frutos do esforço desta pessoa, o Zé Augusto, morador do rio Bagé. Em particular, a Assembléia Geral que foi finalmente realizada no último fim de semana na foz do rio Tejo e que elegeu uma nova diretoria para a Asareaj. É emocionante, aguardem.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Identidade da pele

O último dia do Simpósio e Colóquio (dia 17) que ocorreu na UFAC (ver postagem anterior) foi emocionante. Às 14 horas ocorreu uma mesa que contou com duas presenças ilustres, embora até então desconhecidas aqui: o professor Juracy Marques, da Universidade Estadual da Bahia, e Jô Brandão, maranhense de nascimento, liderança negra e feminina do Conselho Nacional Quilombola. O tema era “Movimentos Sociais e Identidades Negras”. Ainda estou mastigando as instigantes questões que foram levantadas por Juracy e Jô. Este tema – o da “identidade”, o da auto-definição – está no centro dos meus atuais interesses, estou lendo sobre e ministrando uma disciplina na UFAC com este nome.

– “O que é ser ‘negro’?”, perguntou Juracy, provocando: “cor da pele é suficiente?”. Ou seja, é “negro” quem tem a pele negra? Bom, aí entra-se numa seara bem interessante, de quem se considera e não se considera, e de quem é considerado ou não. Casos foram relatados, como o do feirante que quase agrediu Jô por ela se definir como “negra”, enquanto ele [feirante], cuja pele tinha a mesma cor, afirmava-se “moreno”, ou melhor, não se considerava “negro”. O caso das cotas também foi tratado: como dizer se um aluno candidato é ou não negro para se incluir no programa? É ele que diz que é? Ou diz-se se ele é ou não? Jô defendeu as cotas, argumentando que elas estabelecem o debate da desigualdade e que não se trata de privilégio, e sim “de nivelamento de oportunidade”. – Por que temos tanto medo da diferença?, indagou. Afinal, as cotas trazem a diferença e a desigualdade para a cena principal.

O Brasil é signatário da “Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tradicionais”, que estabelece que o critério relevante é a auto-definição, é esta autonomia de dizer-se ao invés de ser dito. Os artigos constitucionais que garantem os direitos indígenas incorporaram, depois de muita briga e da participação importante de antropólogos e sua associação (a ABA), a formulação de que ser índio é uma questão de auto-determinação. Contudo, com relação aos quilombolas, a determinação legal mais recente (Instrução normativa 49, deste ano) está sendo considerada um retrocesso, em especial porque outorga, de acordo com Jô, ao Estado a identificação de grupos como quilombolas ou não. Parece que agora, antes de ter qualquer direito assegurado, uma perícia antropológica tem que ser feita e concluir que, sim, trata-se de quilombolas, ou não, não é o caso. Não é mole não esta vida de quilombola, e do antropólogo “perito de identidade”, como diz o Eduardo Viveiros de Castro.

Juracy mostrou com sua exposição, recorrendo aos intelectuais ditos “da diáspora” (africanos, indianos, que saíram de seus países, foram estudar nos grandes centros colonizadores e passaram a refletir sobre a realidade e dos processos vigentes em seus países, ex-colônias), que a auto-definição de “negro” pode conviver com outras, como a das populações que, além de negras, são “pescadores artesanais” e não detém títulos válidos de propriedade do local onde vivem, ou seja, são “posseiros”. O “ser negro”, disse, é algo que se constrói em processos político-organizativos. Assim, se bem entendi, ser negro teria uma dimensão política inegável, mas não necessariamente seria excludente de outras formas de auto-identificação dado o caráter de rede das relações sociais nas quais as pessoas transitam (pescador artesanal-negro-posseiro).

Mas a Jô, senti, estava disposta a colocar o dedo na ferida e na sua fala a questão racial, ou étnica, veio para o centro do debate. “A questão é raça”, não dá pra fugir, argumentou, “o racismo é escancarado”. Ela deixou claro que para o movimento quilombola, ou o movimento negro, ser “negro” é uma questão de pele sim. A sociedade assim o coloca, e as leis também. Não se pode esquecer, lembrou Jô, que a história das populações negras no Brasil remete ao continente africano e também aos processos de incorporação (escravidão) e resistência (quilombos-território-política, terreiros-religião). Então, tem uma conexão aí entre raça, terra e religião, tudo isso numa arena política que exige bons guerreiros. Foi muito bonito o momento de abertura da fala da Jô, em que ela, antes de tudo, agradeceu aos seus ancestrais e convidou-nos a ficar de pé e, com ela, cantar para Oxalá, o dono do dia (sexta-feira). Aberto e consentido o trabalho, ela pôde então trazer sua contribuição forte. Não sei se entendi tudo, mas ficou-me gravada uma fala de um ponto de vista de quem está num campo político-racial.

Minhas idéias sobre identificação étnica andam por outras praias, mesmo porque debruçadas sobre populações indígenas. Mas fiquei pensando na diferença que há entre o que por vezes refletimos na academia e o que é dito pelos agentes políticos. Como fazer este diálogo em torno de temas tão candentes? Como argumentar, por exemplo, numa situação de perícia técnica indigenista, frente ao Estado e aos próprios atores indígenas interessados em legitimar seus pleitos, que a auto-identificação étnica envolve devires outros que a auto-identificação "sou índio” (algo que se cria quando tem o outro que é “branco”)?

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Digo porque vi

Desde ontem, dia 13, está acontecendo na UFAC um evento que vale à pena ser prestigiado. Fruto da incansável disposição do Gérson Albuquerque, que recentemente foi batizado de nosso James Dean da floresta num artigo do Elson Martins, o evento na verdade são dois e seus nomes pomposos: o II Simpósio Linguagens e Identidade da/na Amazônia Sul Ocidental e o I Coloquio Internacional "As Amazônias, as Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia". Esta pomposidade faz juz, modéstia a parte (pois sou uma das palestrantes convidadas), ao rol de pesquisadores e professores presentes de vários estados do Brasil e gente também da América Latina e África. Idéias novas, pelo que vi hoje, estão circulando, e procurei dar minha contribuição neste sentido. Tudo isso faz bem para o intelecto, o corpo e as emoções. A programação, pra quem quiser, está no site da UFAC (ver em "Eventos").

Mas o que quero contar aqui é algo que me chamou atenção no evento de hoje à tarde, uma palestra com o Prof. Dr. Boubacar Barry, do Senegal, um senhor negro e vestido à caráter, como a foto acima deixa entrever. Ele falou em francês, língua do país que colonizou o Senegal, e que convive, dentro do país, com o árabe trazido pelo islamismo e as línguas nativas. Ele nos disse que a África, mais do que uma revolução econômica, como nos fazem crer as análises correntes nos meios de comunição, precisa antes de uma "revolução intelectual", ou "cultural", que dê conta de criar uma linguagem capaz de tocar, por exemplo, os 60% da população do Senegal que não fala francês ou mesmo árabe (que se fala das esferas de poder e nas mesquitas, respectivamente). Multiplique esta situação pelos países africanos, e você tem uma diversidade cultural imensa e uma dificuldade de diálogo talvez do mesmo porte. Nosso palestrante falou de outras coisas, como a tradição oral e a figura dos "griôs", mestres das narrativas orais e guardiães das histórias nelas veiculadas, e como estas tradições se relacionaram ao longo da conquista colonial e depois da independência com a disciplina da História.

Mas gostaria aqui de antes chamar atenção para algo bem interessante que aconteceu, e o que poderia ser um incômodo fruto de uma incapacidade individual transformou-se numa situação cuja solução foi encontrada pelo coletivo dos presentes. Nosso palestrante falou em francês, com um tradutor a seu lado. Ao início tudo correu bem. A parte inicial da palestra, densa de relatos e tradições orais, já tinha sido traduzida para o português, e nosso tradutor leu o texto de forma pausada e tranquila. Aí entrou em cena o Dr. Boubacar, com seu francês melodioso e calmo, para dar tempo ao tradutor de fazer o seu trabalho. Logo problemas começaram a aparecer: para quem entendia um pouco de francês (como eu, viva!), era perceptível que algo estava se perdendo; para quem entendia bastante, a situação foi ficando insustentável e interferências e correções começaram a ser feitas da platéia. A coisa foi indo de um jeito que uma dessas pessoas foi por nós, público ali mais próximo, indicada como co-tradutora ad hoc da palestra. E assim seguimos, agora mais confiantes. Mas traduzir cansa, e nossa recém-nomeada tradutora não dispensou o tradutor-veterano, chamando-o para um trabalho conjunto. E assim fomos indo. A situação ficou um pouco mais complexa na hora do debate: eram dois microfones para quatro falantes: o palestrante, os dois tradutores e o público participante. Mas tudo arranjou-se, e até o Gérson ajudou nesta movimentação e arranjo.

O que achei interessante nisso tudo foi que, para ouvirmos o Dr. Boubacar, que veio de tão longe para conversar conosco, tivemos que trabalhar em equipe: o paletrante pacientemente assistindo a tudo que ocorria sem dar o menor sinal de alteração; todos os presentes redobrando a atenção para entender idéias que iam sendo traduzidas por mais de uma pessoal, o que implicava em correções frequentes; o tradutor-veterano assumindo que era leigo no assunto (não na língua) e redimensionando sua participação; a tradutora-nomeada se dispondo a sair de sua posição de público e conosco socializar seus conhecimentos de francês e também do assunto; e o rapaz que traduzia para uma moça da platéia tudo que era dito para a linguagem de sinais dos surdos e mudos - bom, este trabalhou bastante dada a quantidade de fatos inusitados que tiveram lugar, com suas idas, vindas e reparos. Saí antes de acabar, lamentando ter que o fazer: estava, de fato, tudo muito interessante.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Cambitos e Garranchos

Este é o nome da iniciativa de fabricação artesanal de móveis rústicos por Saturnino Brito, amigo já de algum tempo e morador da Fortaleza, no Município de Capixaba. A Fortaleza é onde vive seu Luiz Mendes e vários de seus familiares e agregados. Uma comunidade reunida em torno da liderança do patriarca e do Santo Daime. A Fortaleza, que fica dentro de um desses clássicos Projetos de Assentamento do Incra quase que inteiramente desmatado para criação de gado, abriga um Parque Ecológico criado pelos próprios moradores com cerca de 40 hectares. Lá, é proibido caçar e qualquer tipo de exploração predatória. Alguns salões naturais foram instituídos como local de meditação, passeio e cerimônias com o Santo Daime.

Na Forteleza, Saturnino, filho de seu Luiz, resolveu fabricar móveis a partir do seguinte conceito: aquilo que está desprezado na floresta será a matéria-prima com a qual trabalharei. Foi assim que árvores naturalmente derrubadas pelo vento e não-aproveitadas, madeiras parcialmente aproveitadas devido a brocas, raízes que também ameaçavam se perder foram todas transformadas em cadeiras, mesas, bancos, camas, sofás. Estudando cada forma que encontrava nos restos ou pedaços de árvores e raízes recolhidas, explorando suas singularidades, trabalhando duro e com dedicação, Saturnino chegou a um primeiro conjunto de móveis. Com apoio de amigos e parceiros, os móveis foram transportados para Rio Branco para serem expostos numa feira de artesanato e comidas típicas que se encerrou no último domingo no centro da capital acreana.

Estive lá neste último dia de exposição para conhecer o trabalho de Saturnino, e lamentei não ter avisado outros amigos que certamente teriam sabido apreciar a iniciativa – e quem sabe se animado a adquirir uma das peças. Encontrei com o Altino lá, aí na foto experimentando um dos sofás da coleção. Não resisti e saí de lá com uma mesinha de centro e uma cadeira, esta última comprada depois que sentei e vi o quanto era confortável. Madeira é realmente um material fascinante e muito confortável: sua dureza é de outra natureza. As peças lá expostas, todas de madeira reaproveitada como disse, incluíam cedro, cerejeira, quariquara e outras parentas notáveis.

No dia seguinte, Saturnino veio em casa entregar os móveis, e me deu a boa notícia: foi tudo vendido. Bom começo. Quem quiser conhecer o trabalho, aguarde um pouco que novos móveis serão ainda produzidos. Não há data já definida para a próxima exposição, mas quando souber, com certeza aviso. De toda forma, se alguém quiser mais informações pode encontrar Saturnino na Fortaleza, trabalhando duro tanto no roçado, no incremento da estrutura do lugar, que sempre recebe muitos visitantes, nos trabalhos espirituais e, agora, também na oficina da Cambitos e Garranchos!

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Viva a aniversariante!

No último dia 29 fiz aniversário. Estava na Yorenka Ãtame, nos finalmentes da Oficina de Agroflorestalismo que lá realizávamos. Foi um aniversário atípico, por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque datas natalícias não costumam ser comemoradas naqueles interiores como costumamos fazê-lo nas cidades. Não foram poucas as vezes em que, ao longo desses anos, conversava com alguém que de repente se lembrava que aquele dia era o do seu aniversário, ou mesmo que seu aniversário havia passado e nem se lembrara... Bolo, velinhas para soprar e “parabéns pra você”, coisas que adoro fazer no meu aniversário, não são muito comuns nos altos rios. Então passei sem. Felicitações sim, recebi várias depois que alguém me denunciou como a aniversariante (eu mesmo estava disposta a passar o dia no anonimato).

O segundo motivo da singularidade deste 29 de setembro foi a surpreendente companhia, durante quase todo o dia, da Soraya, que por várias vezes me parabenizava e me brindava com um presente: um beijo, um sorriso, um piscar de olhos que ela sabe fazer, e até mesmo um presente mesmo: uma bonequinha, de nome “Pretinha”, presente de sua mãe e que ela carinhosamente depositou em minhas mãos depois de procurá-la com determinação no meio de suas coisas. Também brincamos na varanda de tirar fotos enquanto ela corria com meu xale para lá e para cá, “voando” como uma águia, afirmou. Contamos estórias uma para outra, brincamos de rugir como felinos e rimos bastante.

A Soraya tem sete anos. É filha da Ramene, que está morando em São Paulo, e do Tupi, com quem ela mora em Rio Branco há mais de um ano. Disse para a sua mãe que ela [Soraya] é um “ser ramênico”: amorosa, risonha e leve. Adorei o meu presente de aniversário. Uma alegria, a Soraya. Que Deus a abençoe sempre.