Nesta semana, Mauro e Manuela estiveram no Acre, aqui em Rio Branco. Trata-se do casal de antropólogos Mauro Almeida e Manuela Carneiro da Cunha, que há mais de vinte anos realizam pesquisas no Acre e apoiam as lutas de suas populações por seus direitos territoriais, sociais, intelectuais, enfim, direitos a uma vida digna. Mauro, aliás, é acreano. Entre os anos de 1982 e 1983 viveu nos seringais do alto rio Tejo, cortou seringa, acompanhou o dia a dia dos seringueiros e dez anos depois defendeu sua tese de doutorado em Cambridge, infelizmente ainda não integralmente traduzida e publicada. Juntos, ele e Manuela organizaram a mais completa publicação existente até o momento sobre os conhecimentos e as técnicas desenvolvidas pelas populações locais do Alto Juruá, a “Enciclopédia da Floresta” (Cia. das Letras, SP, 2002). A Enciclopédia é resultado de um projeto que promoveu uma extensa e intensa parceria entre cientistas acadêmicos e moradores da floresta na região do Alto Juruá. Tive o privilégio de participar desta empreitada.
Na segunda-feira, dia 22, Manuela proferiu uma conferência num importante encontro promovido pela Embrapa sobre “etnociência”. Em sua fala, ela nos ensinou o que seria uma “ciência tradicional” e como nós, cientistas e representantes que somos da “ciência hegemônica”, deveríamos nos relacionar com a primeira: não a considerando um acervo pronto a que acessamos, e tampouco um conhecimento cujo valor de verdade será conferido por nossa ciência. A ciência tradicional é antes uma forma de produzir conhecimento, uma forma contínua e que pressupõe trocas de materiais e idéias entre os “cientistas tradicionais”. Ela depende ainda de condições (sociais, ambientais, legais) para que possa existir, tais como florestas e seu material genético preservados. É nesta perspectiva que questões como a dos direitos intelectuais deveriam ser tratadas, ou seja, ao invés de reproduzir um sistema de privatização para o conhecimento tradicional, como são as patentes, um outro regime deveria ser capaz de dar conta do dinamismo de sua forma de ser. Foi justamente pela inexistência de garantias dessa ordem que todo o material da “Enciclopédia da Floresta” (o botânico em especial) que poderia resultar em algum uso econômico até hoje não foi publicado.
Toda essa fascinante conversa teve continuidade nos dias que se seguiram. A foto acima ocorreu num descontraído bate-papo com Manuela e Mauro na Biblioteca da Floresta, um espaço cultural e do saber criado pelo governo do estado. No dia 24, Mauro proferiu sua palestra no encontro da Embrapa. Sua fala tocou num problema concreto: o que é um projeto de pesquisa ético quando se pretende acessar conhecimentos tradicionais associados a recursos genéticos? Ou, como garantir que princípios éticos possam se fazer presentes numa relação de pesquisa entre desiguais (academia e moradores da floresta)? A legislação atual ainda não é definitiva (é uma Medida Provisória), suas regras estão em pleno debate, mas de todo jeito não deixa de ser uma oportunidade, defendeu Mauro, de assumir que existem sim aspectos ético-morais em atividades científicas que envolvam colaboração de populações tradicionais. Nossa ciência hegemônica naturalmente resiste. Seus hábitos são muito arraigados, sua postura em geral inadequada, sua pretensão de verdade arrogante. E o fato é que é preciso tempo nas explicações e negociações com populações locais para que possam conscientemente assentir e colaborar com a pesquisa.
Boas reflexões nos trouxeram esses bons amigos. Que seu retorno seja breve!
Um comentário:
Ciência tradicional não seria aquilo que a ciência oficial denomina "senso-comum"? nesse caso, devidamente filtrado selecionando o que realmente funciona?
Princípios éticos de parte a parte é questão de bom senso, não?
Temos sim, pessoas do povo e gente das ciências, de encontrar formas de comunicar saberes que respeitem o diferente, mesmo quando em tudo formos iguais, exceto nos modos de expressar essa igualdade.
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