Há tempos estou para escrever algo mais extenso sobre os Kuntanawa (ou Kontanawa, como até há pouco escrevia-se, sendo a correção provavelmente devido à palavra “kunta”, o coco da jarina). Os Kuntanawa desde 2003 estão empenhados, com apoio público do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj), em ser reconhecidos enquanto tais e conquistar um território próprio. Um dos grandes desafios que estão encontrando é que a área que querem para si está inteiramente superposta a da Reserva Extrativista do Alto Juruá, da qual inclusive são um dos principais responsáveis pela criação, num tempo em que sua porção indígena convivia de maneira mais harmoniosa com a cultura de seringal na qual foram socializados.
Os Kuntanawa não são um caso isolado na Amazônia, e nem muito menos no Acre, mesmo na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Nesta última, os Arara do Amônea são pioneiros nessa busca de reconhecimento e direitos territoriais, já avançaram bastante no processo, já existe um relatório de identificação elaborado, mas o caso se arrasta nas burocracias e políticas estatais. Dois temas que chamam atenção nos ressurgimentos étnicos em curso no Alto Juruá.
Um é a própria questão da identidade étnica. Povos indígenas julgados extintos ressurgem a partir de seus descendentes misturados com “brancos”; ressurgem não em aldeias, mas em colocações seringueiras ou mesmo lotes de assentamento. O senso comum e as forças políticas que se opõem a este tipo de processo, perguntam: índios? Como assim? Até outro dia não eram brancos? Pra ser índio não tem que viver de outro modo? Se vestir (ou despir) tal como os (verdadeiros) índios o fazem? Cadê a língua? Os rituais? Todas essas perguntas, notem bem, não são na verdade perguntas, são antes respostas, e respostas nada inocentes – são respostas políticas a uma questão que é também política: o que é ser índio? Ou quem é índio?
Não pretendo aqui me estender sobre isso, e remeto a uma entrevista inspiradora e esclarecedora que o Instituto Socioambiental (ISA) fez com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. O que digo a seguir tem lá a sua fonte. Se há uma questão que incomoda Viveiros de Castro é justamente esta: ter que dar uma de “perito de identidade”, como ele diz, e dizer quem é ou não índio. Dizer o que os outros são ou não. Meio onipotente isso, não? Insinua-se uma questão de poder aí, de interesses e pressões.
Viveiros de Castro mostra que desde os anos 70, a definição do que seria “índio” conheceu diferentes parâmetros de legitimação, mas adentramos os anos 90 com um aparato teórico e legal que amparam a afirmação de que é índio quem se considera e é considerado como tal por seu grupo. Ora, se o sujeito – amparado por uma coletividade, seu grupo – está dizendo que é índio, quem é o antropólogo para dizer que não? E se este sujeito apresenta vinculações ancestrais com povos indígenas, tal como o grosso da população brasileira, não fica mais absurda ainda a pergunta? Viveiros de Castro chega a interessante sugestão, ou tese, de que neste nosso país somos todos índios, exceto aqueles que dizem que não o são. Inverte tudo.
Há muito a antropologia já esclareceu que, mais do que signos externos, a indianidade depende de um sentimento de pertencimento. Dito de outra forma: não é cocar, urucum, nudez e outros adereços que definem se um grupo é ou não indígena. Como diz Viveiros de Castro, mais do que um modo de parecer, ser índio é “um modo de ser”, e como tal não é fixo, encerra movimento, mudança, um devir. É quase ridículo achar que vamos hoje encontrar povos indígenas, em especial aqueles que foram cruelmente perseguidos nas “correrias”, tal como se encontravam naquele justo momento. Isso não seria jamais possível. Muita coisa mudou, tempo passou, a roda da história girou... Mas sob certas circunstâncias, a fênix renasce. E o faz amparada na história, mas também por ela renovada. Para Viveiros de Castro, os Kuntanawa, ou os Milton, todo este tempo estariam devindo a sua indianidade. E eis que os encontramos em 2007, em plena luta por reconhecimento e direitos territoriais.
Mas há uma outra dimensão, política também, além de geográfica, a da superposição territorial. Na próxima postagem entro neste assunto...
2 comentários:
Seria ser para ter? Tem branco que quer ser negro para ter direito a vaga em cotas nas universidades. Todavia, seria hipocrisia negar o direito de ter algo por ser algo (ter terra por ser índio, por ex.)
Mariana só para lhe lembrar que kunta e kuta, em várias línguas Pano (Kaxinawá, Yawanawá etc) significa cocão e não "coco da jarina", como você escreveu; então Kuntanawa, ou Kontanawa, como eles gostam de falar e escrever, significa "gente do cocão"; e como você também citou e se referiu ao antropólogo Eduardo Viveiro de Castro, tem outra definição dele de índio que é um primor: "índio é quem se garante". Bem, escrevi isso só pra lhe convidar a escrever o próximo Papo de Índio sobre os Kontanawa. Você topa? É só juntar tudo que você já escreveu no seu blog e publicar no Papo. Que tal? Suas inquietações são muito interessantes e deveriam ser divulgadas em todos os meios de comunicação. Assim como você divulgou o Papo da nossa amiga Eliza no seu blog, poderia divulgar o que você já escreveu sobre os Kuntanawa no Papo. Aguardo sinais de fumaça. Um beijo carinhoso do seu "quase" compadre, Txai Terri.
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