domingo, 9 de setembro de 2007

Seu Milton e dona Mariana

O casal acima é o seu Milton Gomes da Conceição e a dona Mariana Feitosa do Nascimento. Vivem no alto rio Tejo, um pouco abaixo da Restauração. Vou visitá-los agora em setembro na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Somos velhos conhecidos, desde 1991 e mais intensamente a partir de 1993, quando morei em Cruzeiro do Sul. É, são uns 15 anos de conhecimento mútuo. Uma longa história. Parte dela está registrada num livro que publiquei sobre a família em 2004, intitulado “Os Milton. Cem anos de história nos seringais”. Lá, junto com seu Milton, dona Mariana e filhos e filhas, está narrada a história de constituição desta família ao longo do século XX, desde a chegada dos primeiros nordestinos na região e os conflitos com os povos indígenas nativos, até o fim do regime dos patrões, nos anos 80, e a criação da Reserva.

Ambos são naturais da região: seu Milton é nascido no vizinho rio Jordão, hoje a Terra Indígena Kaxinawá do rio Jordão, e dona Mariana nas proximidades da Restauração, embora tenha passado toda a sua mocidade também no rio Jordão, onde conheceu seu Milton. Em 1955, já casados mudaram-se para o rio Tejo, numa localidade bem acima da Restauração. Desde então residem na região, onde tiveram seus filhos, os criaram – todos casados e morando nas vizinhanças – e agora, aposentados, olham pelo futuro dos netos e bisnetos. Toda a família (pais, filhos e filhas, netos e netas, bisnetos e bisnetos, mais afins e alguns colaterais, como primos de vários graus) soma hoje quase 400 pessoas.

Mas, por que “os Milton” no título do livro? Este é um costume no seringal e tantas áreas do interior: o nome do patriarca (ou matriarca) vira um nome de família, de identificação, mais pelos de fora do que pelos próprios. Porém, hoje, “os Milton” estão num outro momento e movimento, e sua forma de reconhecimento está inclusive mudando. Hoje preferem ser chamados de “os Kontanawa”.

Seu Milton e dona Mariana são emblemáticos da história do Acre: ambos são filhos de índios capturados em “correrias” e que vieram a se unir a nordestinos recém-chegados – uma síntese do que é a população acreana, embora o lado indígena costume ser negado pela maioria... Pois bem, incorporados à empresa seringalista os ascendentes indígenas da família viveram à moda seringueira esses anos todos. Bom, o viver seringueiro tem muita herança indígena, é um viver na floresta, então há conhecimentos, alimentos, tecnologias que foram aprendidas com as populações nativas. Mas um seringueiro, em geral, não gosta de ser chamado de “caboclo” (no Acre sinônimo de índio). É de conhecimento público, contudo, que a família de seu Milton e dona Mariana sempre foi conhecida como “os caboclos do Milton”, este casado com “a cabocla Mariana”.

A história anda, o mundo gira, e “os Milton” começaram a perceber que estava na hora de reavivar a porção indígena de seu modo de ser. Este processo começou mais intencional e intensamente por volta de 2003, e agora encontra-se a todo vapor. É uma história comprida e cheia de novos personagens – em particular a geração mais nova da família – e que não cabe explorar aqui. De toda forma, toda essa reviravolta na vida da família é um dos motivos da minha viagem: quero observar mais de perto, conversar, documentar, melhor compreender os meus amigos.

Eu, de antropóloga rural, digamos, estou me tornando etnóloga; meu livro, um livro de etnologia. E depois dizem que o antropólogo tem que tomar cuidado para não interferir na vida dos seus pesquisados... minha experiência é que esta é uma via de mão dupla.

Em tempo: o livro está esgotado desde o ano passado, mas uma nova edição do mesmo acaba de ter seu projeto aprovado na Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Então, ano de que vem, uma nova edição de um livro que já virou história...

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Arrumando as malas


Estou arrumando as malas para viajar para o Alto Juruá, para a Reserva Extrativista que existe lá. Vou meio que de férias, visitar grandes amigos que moram lá, dar uma volta na floresta, navegar no rio Tejo, dormir na rede, ver o céu estrelado e também como anda a vida por lá. Seria muito bom poder enviar notícias quase diárias, um boletim da viagem. Mas não dá, lá ainda não tem internet, o que não é de todo ruim (pelo menos na minha opinião). Tenho mais uns dias para contar algo de lá antes de "ganhar a mata" e reaparecer no início de outubro, lá pelo dia de São Francisco.

O mapa acima localiza o Acre no Brasil, e a Reserva no Acre. Fica no muncípio de Marechal Thaumaturgo, onde está o Murilo (ver postagem "Pequena grande vitória") e o Benki (postagem "O guardião"). É a primeira unidade de conservação desta natureza criada no Brasil e no mundo, feito que se deu no dia 23 de janeiro de 1990. Reservas Extrativistas? Bom, trata-se de uma proposta de reforma agrária adequada ao estilo de vida e forma de ocupação existente em áreas extrativistas, que não trabalham com aquela lógica do lote, e sim com extensas áreas de floresta onde o que na verdade importa é o patrimônio natural (também chamado de recursos naturais), e não a terra em si. Os formuladores originais da proposta foram os seringueiros reunidos no Conselho Nacional dos Seringueiros, lá pelos idos dos anos 80.
Muita coisa mudou desde lá, mas o desafio das Reservas Extrativistas permanece o mesmo: reunir num mesmo espaço seres humanos e ambientes naturais que tem valor de conservação. Um belo desafio este: viver na e da natureza sem destruí-la. Parece que a nossa civilização tem sérios problemas neste sentido.

Pois bem, os seringueiros se atreveram a dizer que conseguem, ou que pelo menos que queriam tentar. A luta não tem sido fácil. No Alto Juruá, muita pesquisa já foi feita neste tema, em especial porque a área é altamente biodiversa! Quem quiser conhecer melhor, consulte a "Enciclopédia da Floresta", publicada pela Cia. das Letras em 2002 - vale super à pena. As Reservas também colocaram o desafio da gestão, pois os mesmos seringueiros diziam ainda que queriam eles mesmos governar as áreas criadas. Admiro os seringueiros: povo trabalhador e corajoso. De novo, a luta não tem sido fácil. A reação imediata é o descrédito: "como assim? Uma unidade de conservação gerida por seus moradores, não só extrativistas, mas também caçadores e agricultores!? O que vai acontecer com a fauna e a floresta? Isso não vai dar certo..."

Será mesmo que não? Esta pergunta foi objeto de um grande projeto de pesquisa nos anos 90 (a "Enciclopédia" é um dos produtos deste projeto), e pra resumir o resultado é o seguinte: sim, os moradores podem eles mesmos manejar unidades de conservação tais como as Reservas desde que certas condições se façam presentes, tais como organizações locais fortes, políticas públicas que fortaleçam o agroextrativismo, comunição interna eficaz, escolas e atendimento médico de qualidade, entre outras. Tudo isso tem sido uma batalha, com derrotas e vitórias. Mas acho que tem uma questão de fundo aí também: o que seria governar a área à maneira seringueira?

Não tenho resposta para esta pergunta, mas ao longo desses anos tenho me questionado se nas Reservas não estamos (pois de alguma forma também me sinto parte disso, talvez uma parte mais crítica, mas uma parte mesmo assim) implantando mecanismos de gestão do "mundo dos brancos". Ou seja, em muitos casos atropelando processos locais, impondo modelos, importando projetos grandiosos e endinheirados sem avaliar com mais vagar seus impactos no modo de vida e cultura locais. Valorizamos tanto os conhecimentos ditos tradicionais, mas parece na hora "h" os técnico-científicos é que acabam se impondo (tem aí uma pretensão de verdade).

Alguns dirão: o tempo do mundo não pode esperar, se não fizermos as coisas assim vamos perder os prazos de implantação da Reserva. Sei lá, cada vez tenho menos fé neste tipo de argumento. Na minha visão, a cada vez que corremos e não deixamos o "nativo" dizer o que pensa ou quer, perdemos oportunidades: algo novo, que possa nos arejar, deixa de vir à tona, e a autonomia (ou auto-determinação) dança. À propósito, há na proposta de Reservas Extrativistas uma clara inspiração indígena. Ah, este assunto é longo, teria mais coisas a dizer, como a própria legitimidade de tudo que é feito em nome da "implantação da Reserva".

Lá no Alto Juruá, hoje em dia, a situação não está fácil, muita coisa que foi tentada ao longo desses quase 20 anos faliu. Mas "muita coisa" não quer dizer "tudo". Quero falar de algo que considero uma experiência bem sucedida: o projeto de pesquisa e monitoramento colaborativos, uma parceria entre cientistas e moradores. Mas isso fica para logo mais.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Revirando "índio"...

Encontrei esta foto de um Mastanahua no blog do Altino, numa postagem sobre uma campanha da Survival em favor dos povos isolados que ainda existem no nosso planeta. Os Mastanahua, no rio Curanja (Peru), foram recentemente contatados. Acabam de virar "índios".

Gostei da foto, me impressionou. Pessoas que vem de longe, de distâncias outras que as físicas, pois estas já quase não existem. Estamos agora entrando um no universo do outro. Mas a situação é desigual, nós somos a sociedade envolvente. Para nós trata-se de "índios" até há pouco isolados, agora passíveis de melhor classificação, entendimento, políticas. Para esses povos, o que somos nós?

Segundo a Survival, há cerca de 100 povos nos três continentes do planeta que recusam o contato conosco e querem viver suas próprias vidas - que sejam longas!

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Livro de Jó - quarta leitura

No terceiro ciclo de discursos, cuja beleza justificam sua leitura, bem como de todo o Livro, Jó e seus amigos continuam seu embate, mas é o primeiro quem mais fala – sempre protestando sua inocência frente as calamidades e sofrimentos que se abateram sobre ele. Jura que não tem culpa para tal punição, lista uma série de pecados ou atitudes indignas, e nega que tenha assumido qualquer uma delas. E encerra com um desafio: “Oxalá houvesse quem me ouvisse! Eis minha assinatura! Que me responda o poderoso!”. Mal sabia ele...

Neste momento temos a intervenção de um jovem, Eliú, que aparece meio que do nada, faz uma fala bem incisiva criticando Jó e depois desaparece sem deixar maiores indicações sobre si. Quem será, ou o que significa este personagem? Ele mostra-se indignado com o orgulho que Jó demonstra ao se dirigir ao Senhor. “Como te atreves a acusá-lo, por ele não prestar contas de nenhum de seus atos?”. Eliú faz uma longa fala, na qual valeria a pena se deter em várias passagens. Escolhi algumas. Ele diz a Jó e aos demais que tanto a maldade quanto a justiça que cometem só afeta a seres mortais como eles, e não a Deus. O certo e o errado (pecado) encerram neste mundo mortal suas causas e consequências – parece ser isso que diz. (Tateio nas escrituras) As desgraças e misérias que se abatem sobre os homens por eles são produzidas, mas grandioso é este momento pois Deus “salva o aflito por sua aflição, e abre-lhe os ouvidos com a tribulação”.

Fiquei com a impressão de que Eliú desloca os mistérios de Deus, suas realizações, para um outro plano, superior, o da natureza: na chuva, nas nuvens, nos trovões, na neve, no furacão... “Ouvi isto, Jó, pára, e considera as maravilhas de Deus!”

E eis que o Senhor entra em cena, e fala com Jó, previnindo-o: “Cinge-te os rins como um valente: vou interrogar-te e tu me responderás”. (Chamou-me atenção esta passagem: proteger os rins. Na medicina chinesa, os rins são a porta da vida; uma acumputurista amiga diz que são a nossa “bateria”, como a do carro: se não está bem, o carro nem liga... No Novo Testamento, nos evangelhos de João e Mateus aparece a menção ao cinto de couro na cintura, ou em volta dos rins, que São João usava. E finalmente, num livro belo, belo, “O Livro de Mirdad”, logo no início aparece um pastor, nu e com seus rins protegidos. Achei mais do que coincidência tudo isso, embora não saiba agora desenvolver o assunto. Rins, vida, espiritualidade, pastor de ovelhas...)

Como reproduzir as falas de Deus? Nem me atrevo. Mas o fato é que Ele chama Jó pelo discernimento. “Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra? Dize-mo, se é que sabes tanto!”. E fala então, pareceu-me, da gênesis do mundo, da criação mesmo e de todas as forças que naquele momento foram domadas, contidas, organizadas. É um discurso grandioso, digno de Deus... São realizações inacreditáveis, e estão aí hoje para todos nós vermos: o mar, as estrelas, os animais, o universo, enfim. “Sinto-me pequeno”, diz Jó, “que poderei responder-te?”.

Nisso tudo, onde ficam nossos pecados e dramas pessoais? Talvez no nosso mundo mortal mesmo. Não é sobre eles que Deus está firmado, seu fundamento é mais sólido e seguro. Mas de alguma forma Ele está presente no dia a dia das nossas tribulações – parece que elas seriam como que uma trombeta que toca, acordando-nos para um outro plano que não este aqui, meio rasteiro, ilusório. Não sei se é isso, mas outro dia, conversando com o Toinho Alves (que tem um blog maravilhoso, “O espírito da coisa”), falamos do ressentimento e de como este re-sentir deposita no nosso interior sementes de desarmonia e infelicidade, principalmente para nós próprios. Jó ressentiu-se com o que passava consigo, e aí caiu na sua própria armadilha; das tribulações veio Deus socorrer-lhe, tirando-o da pequenez do seu remoer-se: “Paciência, Jó”.

sábado, 1 de setembro de 2007

Saudades de Agulhas


Este é o pico das Agulhas Negras num final de dia, sob a lua nascente. Todo o maciço rochoso é vincado por "agulhas"; é uma pedra cinza, e a sombra dos vincos é escura, negra. Agulhas negras. É majestoso. Fica na parte superior do Parque Nacional de Itatiaia, o mais antigo do Brasil e que na semana passada estava pegando fogo...

É um lugar lindo, de muita força, mineral. Sua vegetação é de lugar alto, clima frio e seco, então não é muito "folhuda". As cores são pastéis em tons de verde, marrom e amarelo. Há flores também, e tem uma planta lá que, juro, parece do fundo do mar! Lá mora também um sapinho, acho que é endêmico da região, que costumamos (uns amigos e eu, admiradores meio fanáticos do lugar) chamar de "flamenguinho": ele é preto da barriga vermelha, um micro-sapinho que você encontra nas caminhadas e se admira de ver aquele ser morando por lá.


As formações rochosas tem nomes sugestivos: acima, à direita está um pedaço do pico das Agulhas, e logo ao lado, pequena na foto, uma pedra meio pontuda, é a Asa do Hermes; a trilha onde estou, logo abaixo, vai rumo a Pedra do Altar, da onde se vê o vale do Airuoca, com uma super cachoeira, e os Ovos da Galinha. Em oposição ao pico das Agulhas, tem uma formação rochosa chamada Prateleiras, com uma vista alucinante.


As águas nesta parte do Parque são frias (mesmo!), deliciosas de beber e banhar. Bom, no inverno tomar banho torna-se quase uma missão impossível... parece que tem faquinhas espetando em você de tão fria a água! Altas caminhadas, escaladas, visuais. De lá, dá pra ir até Mauá. A quem não conhece, recomendo (tem uma burocraciazinha pra entrar, mas é possível). A quem já conhece, hum, pra matar as saudades!