segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Salve Lábrea!

O tema das Reservas Extrativistas parece estar de novo em pauta. Pelo menos é o que parece pela "Carta de Lábrea: o chamado da floresta do sul do Amazonas e norte de Rondônia". Gostei de ler e mais ainda de saber que os moradores de unidades de conservação tais como as Resex estão buscando formas de se fazer ouvir quanto à situação de gestão de seus territórios.

O documento informa que no mês de novembro, na cidade amazonense de Lábrea, ocorreu um encontro entre lideranças comunitárias, muitas delas membros dos Conselhos Deliberativos de 11 unidades de conservação de uso sustentável (Resex, Flonas, RDS e Estações Ecológicas), organizadas estas em 15 associações de moradores. O núcleo central das discussões expressas na Carta diz respeito à "gestão participativa". 

Para seus signatários, a gestão participativa ocorre quando todas as decisões relativas as unidades de conservação de uso sustentável (ou seja, aquelas que contemplam legalmente a presença humana em seu interior) são tomadas a partir de uma consulta aos seus moradores. Em toda a Carta este aparece como o argumento irredutível.

"Infelizmente", avaliam os signatários da Carta, "isso não está funcionando como deveria porque, na maioria das vezes, o ICMBio decide tudo, atropelando os conselhos, sem levar em consideração a vontade das comunidades." O orgão gestor das unidades é acusado de "abuso de autoridade, intimidação, desrespeito cultural das populações", marcando sua atuação por ações fiscalizatórias. A lentidão na elaboração dos planos de manejo das unidades, a falta de transparência na prestação de contas e planejamento orçamentário, excesso de burocratização dos procedimentos, falta de recursos para que os conselheiros possam efetivamente realizar o seu trabalho, entre outros, são apontados como problemas relativos a não existência de uma "gestão participativa". Por outro lado, a Carta não põe só pimenta no olho alheio, como se diz, e avalia também o que é um bom, ou boa, conselheiro, ou conselheira: aquele, ou aquela, que "dá bons exemplos para que os comunitários não façam coisas erradas, que é bem esclarecido(a) nas questões de tomada de decisão, bem participativo(a) nas reuniões do conselho e em seu setor de trabalho, cumprindo portanto com seu objetivo de porta voz do povo ribeirinho".

Fiquei "de cara" lendo a carta. De alguma forma ela expressava preocupações que já tinha ouvido de alguns pesquisadores (como eu mesma) logo após a promulgação do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), em 2000: em síntese, eram criadas novas condições para a criação e gestão das unidades de conservação de uso sustentável que ameaçavam a autonomia dos moradores e suas instâncias de representação. O poder mudava de mãos, contrariando o espírito no qual as Resex, por exemplo, foram criadas: fruto da luta dos seringueiros, uma área onde estariam "em casa". E quem manda na sua casa, como se sabe, é o morador. Claro, leis teriam que ser criadas, ou legitimadas, como em geral foi o caso dos Planos de Utilização, que registravam, agora com força de lei oficial, usos e costumes tradicionais. Claro também que tudo isso, para funcionar, supunha uma série de condições. No Alto Juruá tivemos oportunidade de checar tudo isso em ações de pesquisa e extensão ao longo dos anos de 1990, como também observar os efeitos dramáticos da parceria entre associações locais e o poder público (em todas as suas esferas) num contexto de abundância de recursos da cooperação internacional (Projeto Resex).

Claro que associações, orgãos gestores e instituições parceiras não são iguais em toda parte, e não se trata agora de sair crucificando potenciais culpados indistintamente. Não há culpados nem inocentes, mas uma questão - a da gestão desses territórios - a ser enfrentada. E isso tudo me reportou novamente a área que melhor conheço - a Reserva Extrativista do Alto Juruá - e sobre a qual gostaria de contar algumas coisas numa próxima postagem. Esta, por hora, vem saudar Lábrea!

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

SOS Res-Pública


A Universidade Federal de Rondônia, seus alunos, técnicos e professores estão enfrentando uma situação surreal e que não tem conseguido furar a blindagem imposta para que informações sobre o que está acontecendo cheguem a conhecimento público. Como nos disse hoje o professor e antropólogo Estevão Fernandes em visita a capital acreana para assistir a um evento científico, a questão da greve em curso é um assunto interno, universitário, da comunidade com o reitor. O que causa apreensão e insegurança, declarou, são antes denúncias de violação de direitos humanos, de improbidade administrativa e tráfico de influências que tem sido sistematicamente ignoradas, seja pela imprensa, seja por orgãos públicos competentes. Ao que tudo indica, trata-se de uma apropriação e rapinagem da coisa pública por grupos políticos instalados em posições de poder no estado. 

Como furar a barreira? O email abaixo, repleto de links que dão suporte ao que está dito, é uma tentativa de fazer isso. Por favor, repassem, divulguem, que sabe encontramos uma brecha. Sempre tem uma brecha.

"Caros amigos e colegas,
 
            Não, este não é mais um daqueles malditos spams que são enviados para listas intermináveis. É, sim, um pedido de socorro...
           Estamos nós, antropólogos, tão acostumados a ler ou escrever sobre absurdos na Amazônia em assuntos relacionados a povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, entre outros, que o conteúdo deste email parecerá, aos que não estão acostumados com a realidade amazônica, surreal.

No Estado de Rondônia, hoje, alunos estão sendo ameaçados, professores universitários presos, deputados agredidos pela polícia federal e jornalistas coagidos por essa mesma polícia

             A seguir alguns links para situá-los: [clique aqui, aqui e aqui]
             Resumidamente, em meados de setembro deste ano, professores e alunos da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) entraram em greve, não por melhorias salariais, mas por melhores condições de trabalho e estudo.
 Vão aí, a título de ilustração, mais dois links com fotos do estado de nosso campus em Porto Velho (foto 1 e foto 2) e um terceiro link, com um laudo técnico do corpo de bombeiros tornado público nesta semana:
Em resposta a pauta grevista, a administração da Universidade disse que as reivindicações por melhorias não fariam sentido, já que a Universidade, por mais que apresentasse problemas, estava bem, obrigado.
Aos poucos, o movimento dos alunos se transformou em um movimento para afastamento da administração atual, por entender que havia uma série de denúncias (em licitações, obras, recursos, fundação de apoio, concursos públicos, etc.) que precisavam ser tiradas a limpo. Ato contínuo, o movimento grevista montou um dossiê de 1.500 páginas onde essas denúncias eram sistematizadas e foi a Brasilia, encaminha-las ao MEC e a Casa Civil, da Presidência da República.
Na Casa Civil, com todas as letras, ouviram de um assessor que uma vez que a administração atual da Universidade contava com o apoio de um político da executiva nacional do PMDB, base aliada do Governo Federal no congresso, nada haveria a ser feito.
Há alguns dias a Polícia Federal, em uma tentativa desastrada (e desastrosa) de descoupação do prédio da Reitoria, ocupada por alunos da instituição há quase um mês, acabou agredindo um Deputado Federal que lá estava, tentando negociar (Deputado Mauro Nazif, PSB-RO) e prendendo um professor, que nada fazia a não ser observar a cena.
Abaixo alguns vídeos mostrando o momento da prisão do Prof. Valdir Aparecido, do Departamento de História (Campus de Porto Velho), bem como a agressão ao parlamentar:
Já o link abaixo contém uma foto do mesmo momento da prisão onde se vê, de branco, ao centro, o prof. Valdir sendo levado por dois agentes a paisana (um moreno, a esquerda, com uma pistola na mão e outro, a direita, de camisa vermelha, com um cassetete, que daí a alguns segundos seria utilizado para agredir o Deputado Nazif, de camisa azul clara, no alto da imagem, à direita). De laranja, no canto esquerdo da foto, um rapaz que se identificou como agente da PF, carregando uma câmera subtraída de um dos professores que teria registrado parte da confusão):
Naquela mesma noite o Prof. Valdir foi encaminhado a um presídio comum, chamado “Urso Panda”, onde passou a noite em uma cela.
Alguns dias após o ocorrido, um jornalista local foi coagido por Policiais Federais, por publicar notícias apoiando a greve na Universidade.
 Esta é, basicamente, a situação por aqui: agressão, medo, coersão e ameaças, fazendo uso da máquina pública e de agentes que deveriam proteger a população. O que nos parece, aqui em Porto Velho, é que tanto essas ações truculentas quanto a conivência do Governo Federal e a invisibilidade da questão na imprensa nacional se deve, sobretudo, ao fato de nosso reitor ser aliado político e amigo pessoal de membros da direção do maior partido da base aliada do Governo Federal.
Longe de mim acusar que quer que seja. Afinal, é bem possível que todos os implicados nessa história sejam absolutamente inocentes e/ou tenham agido de boa fé. Entretanto, a única forma de garantirmos transparência no processo de investigação nos fatos aqui relatados divulgando esses acontecimentos junto aos nossos contatos em OnGs, Governo, imprensa e associações científicas.
Há informações atualizadas sobre esses eventos no site mantido pelo comando de greve da Universidade, do qual, diga-se, não sou parte.
Aos que me conhecem, sabem que não faço o perfil de politiqueiro ou sindicalista e, mais que isso, jamais entulharia as caixas postais de vocês se não fosse estritamente necessário, mas o fato é que meus colegas de Universidade, alunos, jornalistas e simpatizantes estão, hoje, com medo de morrer. Precisamos de ajuda por aqui, urgente!
Espero contar com a compreensão e ajuda de todos na divulgação do que tem acontecido por aqui. Qualquer coisa, sintam-se a vontade para me escrever a qualquer momento.

Um cordial abraço,



Prof. Estêvão Rafael Fernandes
Chefe do Departamento de C. Sociais
Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
Coordenador do Observatório de Direitos Humanos de Rondônia (CENHPRE/UNIR)
Porto Velho, RO, Brasil

Engasgados...

Acho que é assim que boa parte de nós, que moramos na Amazônia ou a ela nos dedicamos - entendida aqui como seus moradores todos, humanos e não-humanos - estamos nos sentindo nesses últimos tempos. Engasgados, e também revoltados, sem saber muito bem como fazer para parar a onda de insanidade e perversidade que tomou conta dos nossos poderes públicos, notadamente na esfera federal, mas não só. Belo Monte, Código Florestal, mineração em Terras Indígenas, identificação e demarcação de territórios étnicos, a inacreditável articulação da bancada ruralista frente ao entreguismo dos setores "ambientalistas" do governo, certamente com o aval da presidenta (mandona do jeito que ela é), o tranquilo ignorar do Brasil à convocação da OEA, a "abertura de pernas" ao licenciamento das grandes obras - é muita pancada de uma só vez. E aqui na província, afinada com o movimento mais geral do "desenvolvimento", o milho trangênico já sendo plantado e a Monsanto parece que vai mesmo salvar a nossa agricultura tão pobrinha...

É muita falta de criatividade e de ousadia, e muita subordinação e serventia. Belo exemplo o nosso para os nossos vizinhos latino-americanos e africanos. E o pior é que parece que queremos ser os tais do hemisfério sul, reacionários endinherados e "desenvolvidos", comendo veneno, sendo cruéis, alegremente vendendo nosso bem mais precioso - nós mesmos - ao Capital.

Repasso link que nosso colega Marcos Matos pescou na internet, excelente artigo para os tempos que correm.




quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Comentário em defesa da Carta do Acre

Michael F. Schimidlehner

Caros integrantes da rede [amazoniaindigena],

Venho acrescentar algumas observações acerca da nossa Carta do Acre. Sei que este assunto não se insere exatamente nos temas pautados por esta rede. Mas como ele já surgiu, podemos abrir um parênteses para ele.

Certamente o governo da floresta trouxe uma mudança inédita e fundamental no Acre. Foi uma mudança da noite para o dia. Não só pôs um fim num regime de terror, acabando com o crime organizado e esquadrão da morte, mas sobretudo introduziu uma mudança de valores, preconizando cidadania e socioambientalismo, ou como foi chamado, a florestania. Neste primeiro momento, a diferenciação bipolar, que os governantes da Frente Popular do Acre costumam fazer entre aqueles que “amam o Acre”, e os que querem destruí-lo fazia muito sentido e foi aprovada pela grande maioria da população.

Entretanto, não podemos negar que com o passar do tempo, este governo também teve que seguir as regras que definem do jogo da governabilidade, fazendo compromissos e alianças com forças anteriormente consideradas inimigas, adotar um curso mais pragmático e parcialmente abrir mão dos valores que havia defendido originalmente.

Ao mesmo tempo, houve tendências autoritárias neste governo e o discurso de polarização foi mantido, tornando-se gradativamente um discurso de exclusão e censura. Desta forma, a criação de um espaço de autocrítica sincera da frente popular foi por ela mesma impedido.  Quem expressava um pensamento mais crítico, corria risco de ser taxado como inimigo do Acre.

Não quero me alongar neste ponto sobre o histórico da frente popular no Acre. Para quem se interessa, posso recomendar um artigo bastante esclarecedor que foi publicado no blog do Altino Machado

Referente às pessoas e instituições que  assinaram a carta, posso dizer o seguinte: Certamente não odeiam o Acre, nem seu atual governo. No seminário participaram ativamente antigos companheiros de Chico Mendes que, juntos com ele, nas decadas 70 e 80 ariscaram suas vidas em defesa dos povos da floresta. Muitas das críticas – especificamente as críticas acerca do governo - foram feitas por eles. A carta é, na sua maior parte, um resumo dos comentários que os participantes acrianos e acrianas fizeram, após terem ouvido as apresentações sobre REDD e BNDS. O documento foi lido várias vezes. Não podemos julgar que as ONGs e Sindicatos Rurais assinaram a carta por ingenuidade. Foi um evento altamente participativo e um momento de forte confraternização. A carta representa sim, o pensamento de uma parcela do movimento do Acre. O fato de a atuação de algumas destas organizações hoje talvez não ser tão pró-ativa atribui-se também ao esvaziamento que o movimento socioambiental sofreu a partir do momento que a frente popular assumiu o governo sob a bandeira do socioambientalismo.

Sinto que o problema da carta é que ela entra num momento – nas vésperas das eleições 2012 – quando os partidos políticos começam se armar para a disputa e as forças da direita e as oligarquias do agronegócio iniciam seus ataques. Poder-se-ia argumentar que num momento em que há perigo do governo da frente popular poder ser derrubado e substituído por um governo muito pior da direita, deveríamos nos reter com críticas demais radicais e nos declarar, apesar de seus defeitos,  solidários com este governo. Opor o governo seria neste momento imprudente para quem é compromissado com o socioambientalismo. Mas eu acho que não é bem assim. Nós, como não-governamentais não podemos deixar nos forçar de “escolher o lado” entre partidos ou governos mais ou menos maus. Os movimentos sociais, quando perdem sua independência do governo, estancam, deixam de ser movimentos e passam a fazer parte de um jogo de hegemonia.

Também costuma-se argumentar que críticas sempre devem ser construtivas, ou seja, não se deve apenas questionar, mas também se responsabilizar, no sentido de ofertar soluções alternativas.  Entretanto, em certos momentos faz-se necessário  - mesmo sem ter uma solução alternativa - simplesmente questionar certas noções, principalmente quando estas noções vem sendo introduzidas de forma forçada, de cima para baixo. E isso também é o caso nas concepções de REDD e ABS (repartição de benefícios). Estes mecanismos mercadológicos foram concebidos pelos governos no âmbito da ONU sob pressão de interesses comerciais e agora vem sendo apresentados como se fossem soluções sem alternativa. As consultas com as comunidades indígenas e locais, como os governos promovem tendem a reduzir a problemática a questões técnicas e pragmáticas, pressupondo que a príncipio se trata de uma solução. 

Ainda tem muito pouca discussão com as comunidades sobre os pontos questionáveis, tanto no que se refere as consequências práticas (quais reais impactos e dependências estes acordos podem trazer para as comunidades em longo prazo), quanto as questões da ideologia por trás destes mecanismos (no caso do REDD poder continuar poluir, compensando em outro lugar, no caso do ABS poder continuar patentear os recursos e conhecimentos dos povos da floresta, pagando-os) . Faz-se necessário promover não apenas consultas e capacitações, mas também contribuir com autodeterminação e empoderamento destes povos e comunidades para que eles possam desenvolver sua própria forma de gestão e política da biodiversidade. Da mesma forma, é necessário que as argumentações contra a implementação destes mecanismos possam se articular livremente, contrapondo o discurso dominante e servindo de informação alternativa para as comunidades na sua tomada de decisão.

Neste sentido a Carta do Acre traz uma crítica radical, lembrando que a origem da palavra “radical” é de “ir até a raiz”. O que pode parecer a primeira vista uma série de assuntos diferentes – REDD, BNDES, extração de madeira, desvirtualização da imagem de Chico Mendes – encontra na sua raíz o mesmo problema, que é a mercantilização da natureza e a penetração dos espaços físicos e simbólicos da nossa vida pelo  interesse comercial.

No mundo inteiro, movimentos sociais e ambientais vem se alertando sobre esta problemática. A Carta do Acre tem que ser levada a sério. Ela é uma importante contribuição com a discussão mais livre e mais radicalmente crítica.

Um grande abraco,
Michael
Amazonlink.org

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Esse tal de manejo

No dia 11 de outubro passado uma carta divulgada após um encontro que discutiu as estratégias do "capitalismo verde" (como vêm sendo caracterizadas as boas intenções do capitalismo com relação a natureza, e todo mundo sabe que de boas intenções, pois é, o inferno está cheio) deu início a uma série de emails, manifestos, postagens, matérias de jornal  defendendo e atacando o referido documento. Trata-se da Carta do Acre, facilmente encontrável em qualquer busca no Google (por exemplo, aqui). Uma constelação variada de instituições (acadêmicas, ambientalistas, sindicais, núcleos, redes etc) assinam a mesma. O debate esquentou logo. As reações a ela podem ser, algumas delas, acessadas no site da CPI, do Página 20 e num blog.  O tema que pegou fogo foi o manejo florestal madeireiro, questionado em sua real sustentabilidade.

Objeto de discussão internacional há já algum tempo, o conceito de "desenvolvimento sustentável" aqui no Acre (mas não só, é claro) é usado "a torto e a direito", pela esquerda e pela direita. Recentemente ouvi numa brilhante palestra de um intelectual acreano esclarecendo que o que está em jogo é um desenvolvimento sustentável sim, o do capitalismo, ou seja, as estratégias de sustentar e garantir a continuidade (e incremento) da ordem capitalista que nos domina. E aí chama atenção a dificuldade que temos aqui no Acre em fazer essa discussão, logo aqui onde, com o "governo da floresta", lá nos seus primórdios, pretendíamos um outro desenvolvimento, uma espécie de ecodesenvolvimento. E aí, estamos vencendo a parada? Conseguimos nos manter íntegros nesta caminhada? Ou o barco está adernando, o mercado é mais forte e, por mais que lutemos, corremos o risco de naufragar em nossas propostas? Ou grupos menos interessados na conversa ambiental e na diversidade sociocultural estão no poder? A florestania, em sua concepção original filosófica, foi finalmente de todo descartada? 

Tema pra conversa é o que não falta. Talvez o que falte seja liberdade para pensar sobre o que não costumamos pensar, sem saber onde vai dar... A questão do manejo é complexa, e digo isso sem ser especialista no tema, embora conhecedora dos grupos tradicionais que vem sendo envolvidos nele. O capitalismo taí, na nossa cola, como fazer para mantermos a floresta? E aí o manejo aparece como solução irrecusável. Mas talvez o problema seja justamente o capitalismo, como estão gritando os manifestantes de Wall Street. Aceitamos o manejo pra viver menos mal sob o capitalismo? Já ouvi isso de alunos e amigos da engenharia florestal.

Desconfio desta formula, mesmo porque, para além do manejo, estamos mesmo queimando a floresta, está mais quente, as "mudanças climáticas" estão aí, é só conversar com seringueiros de Feijó pra saber que há deles que, quando vão cortar seringa, precisam levar uma garrafinha de água pra estrada pois os igarapés (aqueles de água friinha, que mesmo no verão estavam lá) agora secam. O manejo florestal não é algo técnico strictu sensu, embora envolva conhecimentos técnicos (que inclusive não deveriam ser inteiramente credidatos à ciência, como se os povos da floresta não a manejassem sem nós). Então não estamos tratando de algo neutro, o manejo tem também sua ideologia, implica uma ontologia sobre o que é a floresta, o que ali vive, como vive, o que fazer etc.

Talvez ele seja bom para as madeireiras (embora elas se queixem que os custos subiram muito), para os trabalhadores nelas empregados, para o governo. Talvez. Mas eu estaria interessada mesmo é no que percebem os diferentes seres que vivem na floresta de fato: índios, seringueiros, agricultores, castanheiros, onças, pacas, antas, macacos, tatus, nambus, surubins, mandins & cia. Nessa discussão, sinto falta de argumentos de um tipo de pesquisa, a antropológica, a etnografia, o nome que queiram dar, o importante é autonomia e qualidade. Pesquisa apoiada em trabalho de campo, daquele de ir lá morar um tempo, conversar com as pessoas, acompanhar in loco a vida na floresta, levar a sério o que os moradores da mata estão dizendo e avaliando, o que dizem sobre sua relação com a mata e os seres não-humanos, que mudanças percebem, como estão sendo afetados pelos empreendimentos madeireiros empresariais e também pelos comunitários, se estão felizes e satisfeitos, não só com dinheiro no bolso, mas com a vida mesmo. Esta conversa mais qualificada, ainda não vi acontecer.

sábado, 8 de outubro de 2011

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Curuba não se trata coçando

POR JOSÉ CARLOS DOS REIS MEIRELLES
Direto da Frente de Proteção Etnoambiental Xinane, na fronteira Brasil-Peru

Companheiros,

ontem eu estava meio "mordido de caititu" e espoletei. Com razão, creio.

Hoje, sendo mais frio e menos emotivo (se é que é possível pra mim não sê-lo em falar dos parentes brabos), a situação aqui ainda não está resolvida, existem muitas dúvidas a serem esclarecidas.

Afinal o que esse povo e o português preso faziam por aqui?

Creio que existem ainda pessoas desse grupo escondidos aqui por perto, esperando a poeira baixar.

Sendo otimista e achando que o Exército com seu Batalhão de Selva resolva sair do quartel e, em vez de passar o dia aparando a grama dos jardins do quartel, resolva repuxar cipó aqui nas matas pra ver se encontra, ou espanta de vez esses traficantes. Mas isso é como tratar curuba coçando-a, ou carregar água em paneiro.

O problema aqui é bem maior, extrapola os limites internacionais do Brasil e a própria competência da Funai. Não estou dizendo que isso é exclusivo do Peru. Temos, dentro de nosso território, todo tipo de agressão a índios isolados ou não. Mas nas faixas de fronteira (e este é um caso emblemático) as desgraças podem vir daqui ou de lá. Agora é do Peru.

Como proteger os isolados, que usam tanto o território brasileiro como o peruano, transitam em suas terras pra lá e pra cá desta linha imaginária que traçamos, para dividir os dois países - o paralelo 10º Sul? Ou os dois países tratam desse assunto conjuntamente, colocando nas agendas binacionais os índios, isolados ou não, protegendo suas vidas e territórios, ou teremos uma fronteira de brancos e índios, todos atolados até o pescoço na exploração ilegal de madeira, no tráfego de cocaína, ou sei lá mais em que atividade ilegal.

Estes vastos territórios, que à vista grossa parecem terra de ninguém têm dono: os índios.

Desde 2006 venho alertando para a movimentação de madeireiros nas cabeceiras do Rio Envira, no Peru, e o perigo para os isolados. E a exploração lá se dá em uma reserva para isolados, Murunahua.

Tive a oportunidade de, junto com o presidente da Funai, Márcio Meira, visitarmos a embaixada do Peru em Brasília, alertando o embaixador das consequências da exploração ilegal de madeira na reserva Murunaua.

Também estivemos juntos em Pucalpa, tratando do mesmo assunto com ONGs e representantes do governo peruano. Pregamos no deserto, tipo São João Batista. E pelo andar da carruagem,
começaremos e comer gafanhotos.

Não sou mais funcionário da Funai. Trabalho no governo do Acre, a convite do governador Tião Viana, que, diga-se de passagem, tem dado todo apoio possível para sairmos da crise em que nos encontramos. Estou aqui na Base do Xinane dando minha modesta colaboração a todos que aqui estão, pela longa vivência de 22 anos que residi aqui nas cabeceiras do Envira, nesta mesma base.

Quero deixar claro também que não fizemos as operações como o esperado, não por culpa das pessoas que aqui estiveram, da PF e do BOPE. Todos eles têm vontade de ganhar a mata com nossos mateiros e resolver a questão. Assim também o pessoal da Força Nacional que aqui se encontra.

O que precisam é de ordem expressa de seus comandos. Fica o registro para sanar os maus entendidos.

Finalizando faço um apelo às autoridades maiores de meu país: ganhem um pouco de tempo e pensem na responsabilidade que é ter em suas mãos o destino de povos que vivem autônomos nestas matas. Assustados, talvez assassinados (como se isso fosse novidade para eles) e sem o menor conhecimento que nem futuro poderão ter, se o Estado Brasileiro decidir que o que acontece aqui é uma crise momentânea.

Lembrem-se da sabedoria das matas: curuba não se trata coçando. Ela vai aumentar, piorar e apostemar.

Seres humanos não merecem esse tipo de tratamento.

Um grande abraço a todos.

José Carlos dos Reis Meirelles é sertanista

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Fronteira ainda em alerta - divulgue!

Senhores,

Em toda a minha vida profissional de 40 anos de trabalho com os índios, isolados ou não, sempre soube a hora de calar, de respeitar hierarquia.

Soube tambem protestar a meu modo, quando necesário, a meu modo, jeito e responsabilidade. Pois agora é a hora de gritar, e alto! Embora isso signifique, como já aconteceu quando fui demitido da FUNAI, na criação da SBI que protestava contra o regime militar da época, a favor dos índios.

Lá vou eu, depois de velho, de novo.


A Frente Envira, como todos sabem foi tomada por uma força paramilitar estrangeira, composta de traficantes e provavelmente acompanhados de índios
recém contatados do Peru.
A PF veio à nossa base, pensava eu, de acordo com plano que junto com ela fizemos em Rio Branco, de duas equipes, uma acima da base e outra abaixo, pousadas de helicóptero a distancia não audível dos invasores da base, que viriam por terra, na esperança de prende-los. O plano não foi executado. Sobrevoaram a base antes disso de helicóptero, espantaram os caras. Uma equipe pousou na Aldeia Simpatia e subiu o rio. Foi resgatada antes de chegar na base. Outra pousou na base.

Nossos mateiros seguiram um rastro e entregaram o Sr. Fadista, portugues que anteriormente foi preso aqui mesmo e deportado para o Peru, apesar se ser procurado
por tráfico internacional de drogas, inclusive no Brasil. Voltou e foi preso de novo.

Satisfeita a PF abandonou a base, como se a missão estivesse toda realizada.


Uma pequena equipe, Sr. Carlos Travassos, coordenador da CGIIRC/FUNAI, Artur Meirelles coordenador da Frente, Francisco de Assis ( Chicão, mateiro), Francisco Alves de Castro ( Marreta, mateiro) e José Carlos Meirelles ( Gov. do Estado do Acre), por decisão unânime, resolveram vir para a base, que era de novo abandonada.


A PF lacrou a Base. No outro dia que chegamos estava tudo arrombado de novo. Os peruanos continuavam aqui. Vimos vestígios de menos de 15 minutos!!!


Veio o Bope de Rio Branco. Foram feitas pequenas incursões. Encontramos acampamentos, mochila dos peruanos com pedaço de flecha dos isolados dentro!!!


O Bope vai e vem a Força Nacional. Sem ordem de se afastar a 500 metros da Base.


Nestes dias de Força Nacional, sempre se escuta tiros em locais próximos à base, à noite, com características de arma de bala e não de cartucho.


Esta noite mesmo, foram ouvidos tres disparos, de um lado e de outro do rio.


A Força Nacional está esperando o Exército, que deveria aqui chegar no dia seguinte à invasão da Base, a quase UM MES atrás!!!!


E ninguem ainda se dispos a bater realmente estas matas e desvendar o que realmente estas pessoas, que CONTINUAM AQUI, fazem e querem.


Não temos acesso ao depoimento do portugues. Parece que é PROPRIEDADE DA PF!!!!


Há tempos, desde 2007, temos alertado sobre a exploração ilegal de madeira, do outro lado da fronteira, em reserva de isolados no Peru, a reserva Murunaua.


Agora, tudo leva crer que além de madeireiros, temos traficantes de drogas! E pelo andar da carruagem, como se diz aqui pelas matas, parece que estão
botando roçados. Ou seja, não tem a mínima intenção de ir embora. Afinal, ninguem os perturba!!!

Nós da FUNAI, do governo do Acre e os mateiros ( que aliás ganharam um presente da FUNAI, foram dispensados) estamos aqui por opção.
O risco é por nossa conta, somos pagos ou não prá isso.

OS ÍNDIOS ISOLADOS DA REGIÃO, VERDADEIROS DONOS DESSE PEDAÇO DE AMAZÔNIA, NÃO TEM NADA COM ISSO!!!


E SERÃO ELES, COM CERTEZA, MAIS UMA VEZ QUE PAGARÃO O MAIOR PREÇO PELA INVASÃO DE SUAS TERRAS, POR UM
GRUPO DE TRAFICANTES E SABE-SE LÁ MAIS QUE PERSONAGENS.

Não dá mais prá esperar calado!


Não vou mandar abraço prá ninguém, meu coração tá apertado. Quando sinto essa sensação, dificilmente erro.

José Carlos Meirelles

sábado, 6 de agosto de 2011

Na fronteira, bravos brasileiros resistem - você sabia?

A notícia é grave.

Na fronteira do Brasil com o Peru, lá no Envira, uma situação bizarra, dramática e revoltante está ocorrendo agora. A Terra Indígena demarcada para os índios isolados foi invadida por mercenários peruanos fortemente armados e no posto avançado da Funai que lá existe, cinco brasileiros estão sitiados: dois sertanistas (José Carlos e Arhur Meirelles, pai e filho), o coordenador da diretoria de índios isolados da Funai em Brasília (Carlos Travassos) e dois mateiros (de apelidos Marreta e Chicão). Todas estas pessoas são absolutamente comprometidas com a proteção dos índios isolados contra um contato prematuro e não desejado por eles. Estão trabalhando nisso há muito, este é o trabalho de suas vidas.

Para saber melhor sobre os acontecimentos, clique aqui e aqui. Um desdobramento de hoje aqui no Acre está aqui. Mas mais agora a noite, por telefone da cidade de Tarauacá, onde está a corajosa documentarista Maria Emília Coelho, tivemos a notícia alarmante de que numa das mochilas que a equipe da Funai achou nas proximidades da base estavam flechas de índios isolados... O que isso pode estar significando? Uma matança desses povos?

Que fazer, que fazer? Divulgar, dar a conhecer, é o que me ocorre. Gostaria de ter canais mais influentes, mas talvez algum leitor tenha.

Por hora, deixo vocês com os emails do Meirelles que chegaram de lá do alto rio Envira nesses dois últimos dias.

Dia 5 de agosto

“A todos companheiros de luta e família,

Como o tempo é curto e é muita gente, me desculpem misturar familiares e trabalho.

Como todos sabem a nossa base do Xinane foi invadida por um grupo paramilitar peruano, onde foi preso por uma operação da polícia federal, um único integrante. O famoso Joaquim Fadista, que já tinha sido pego aqui por nosso pessoal, foi extraditado e voltou. Com um grupo de pessoas cuja quantidade não sabemos.

A operação foi muito rápida e hoje todo mundo foi embora. Nossa base ficou só de novo.

Já que ninguém deste Estado brasileiro se dispõe a ficar aqui, tomamos a decisão, Carlos Travassos, coordenador dos isolados, Artur coordenador da frente, Eu, e dois mateiros nossos, Marreta e Chicão, de vir prá cá.

Fomos deixados pelo helicóptero da operação.

Os caras ainda estão por aqui. Correram quando o helicóptero chegou. Rasto fresco e cortado de hoje. Se o povo da PF ou exercito estivesse aqui a gente pegava todo mundo.

Mas parece que as coisas não são bem assim. Talvez se esse grupo tivesse invadido algum canteiro de obra o PAC, metade do exército já estaria lá.

Mas como é uma basezinha da Funai, área de índios isolados…

O fato é que aqui ficaremos até que alguém ache que uma invasão do território brasileiro por um grupo paramilitar peruano, é algo que mereça atenção.

Somos irresponsáveis. Talvez. Mas antes de tudo existe um compromisso maior com os índios isolados e os contatados nossos vizinhos Ashaninka.

Não temos resposta pra tudo isso. Mas estamos bem perto das perguntas.

Permaneceremos aqui. E nem venham nos buscar para abandonar a base de novo e nem venham aqui passar dois dias.

Se vierem venham pra resolver o problema.

Caso contrário, a gente mesmo vê o que faz.

Um abraço a todos”


Dia 6 de agosto

“A todos,

Vocês já sabem das notícias. Vão as últimas.

Desculpem por mandar pra todo mundo, mas o tempo pra ficar no notebook aqui tá curto. Um olho na tela e outro nos peruanos não dá.

Seguinte:

1 - Pela quantidade de vestígios aqui ao redor, temos certeza que os caras se dividiram em grupos de 5 ou 6 e estão fazendo uma verdadeira varredura aqui ao redor da base.

2 - Os isolados não andaram aqui não. As coisas que desapareceram daqui indicam que não foram eles.

3 - Cremos também que junto desses peruanos existam índios sim, contatados de lá.

4 - A gente conhece apito de índio remedando bicho. Parece que tem uma reunião de nambú azul aqui por perto.

5 - Se esses caras estão procurando alguma coisa, ainda não acharam.

6 - Todo mundo que está aqui ( nós cinco gatos pingados) é manso na mata, como eles.

7 - O nome de nosso dois mateiros: Francisco Alves da Silva Castro o Marreta. Francisco de Assis Martins de Oliveira - O Chicão.

8 - O dia que a Funai descobrir que um homem como eles, valem por 20 indigenistas e 20 sertanistas, talvez resolva contratá-los, sem concurso público, pois são analfabetos, mas os maiores doutores da mata que conheço, talvez a segurança dos índios isolados possa ser melhor conduzida.

Permaneceremos aqui, dê o que dê, até que o Estado Brasileiro decida RESOLVER DE VEZ esse absurdo!!!! Não pra proteção nossa.

PARA PROTEÇÃO DOS ÍNDIOS!!!!!!

Quem não tiver atualizado, por favor procure sites e tal que já tá no mundo.

Quem puder reclamar, pressionar etc., será bem vindo. Os isolado agradecem.

Um grande abraço a todos da nossa equipe de ” irresponsáveis”, como estamos sendo chamados.

Pensem bem: Quem é o irresponsável mesmo.

Meirelles”

domingo, 10 de julho de 2011

Uma comunidade tradicional

Como muitas outras existentes na Amazônia, perto de nós aqui no Acre, mais precisamente na capital, existe uma comunidade nativa que pode ser dita tradicional vivendo em uma área que foi, nos tempos áureos da borracha, um seringal. Está ali há mais de 50 anos estabelecida, muitas de suas famílias já em quarta geração. Suas relações de parentesco mais parecem redes emaranhadas por laços de filiação, matrimônio e compadrio, mesmo levando em conta que nos últimos 20 anos novos moradores, vindos de outros cantos, tenham a ela se juntado. Levam uma vida honesta, a maior parte dos moradores trabalhadores artesanais, ou seja, vivendo de ofícios manuais diversos, como a construção de casas (pedreiros, eletricistas, mestres de obra, carpinteiros), consertos diversos, agricultura, serviços domésticos. Muitos também aposentados, e outros tantos, os mais jovens, estudantes.

Vieram para ali para estar perto do seu líder, um agricultor, homem negro e muito respeitável, maranhense de nascimento que migrou para o Acre no início do século XX. Mestre Irineu, ou simplesmente "padrinho", como o chamam até hoje, mesmo depois de sua passagem para a vida espiritual em 1971, implantou, a partir dos anos 30, uma santa doutrina espírita-cristã que faz uso de uma bebida milenar e sagrada, conhecida na Amazônia latinoamericana por ayahuasca. Sob orientação espiritual da Rainha da Floresta, padroeira da doutrina recebida, a ayahuasca tornou-se Daime, e rituais que acompanham sua ingestão foram por Mestre Irineu recebidos, com seus procedimentos, suas fardas, músicas, cânticos e bailados. Dias certos para as sessões foram firmados, como as Concentrações quinzenais, os Hinários oficiais, os aniversários, as missas e também enterros dos irmãos e irmãs da doutrina, dispondo a comunidade de um cemitério próprio.

Em 1971 Mestre Irineu partiu do mundo Terra. Seu túmulo foi erguido na forma de uma capela do outro lado da rua, em frente ao local de sua residência, onde hoje estão sua viúva, a madrinha Peregrina, e seguidores da doutrina. Na verdade, em todo o entorno da igreja - conhecida também como "sede", mas cujo nome oficial é Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo - , do túmulo - hoje uma capela reformada em 2010 - e adjacências, que incluem mais quatro centros originários, embora autônomos, da "sede", estão espalhadas famílias de seguidores da doutrina do Santo Daime. Os rituais continuam a ocorrer tal como determina o calendário tradicional, e a irmandade aos poucos cresce com a adesão de novos chegantes, vindos de outras igrejas, outros estados e até outros países.

Uma estrada asfaltada, que já foi um varadouro, depois um ramal, liga a comunidade ao centro da cidade e demais bairros. É ali também que está o ponto final do ônibus Irineu Serra, nome do bairro - vila Irineu Serra. Há poucos anos, a comunidade e o maciço florestal que ainda se encontra ali, tudo isso herança deixada pelo saudoso padrinho, foram transformadas na Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra, homenageando o Mestre e buscando garantir a proteção do local frente a expansão urbana da capital acreana. Embora efetivamente de gestão ainda bastante precária, a APA tem sido um instrumento para impedir, por exemplo, que um expressivo conjunto de casas populares fosse dentro da área construído, o que com certeza traria impactos tanto sociais quanto ambientais.

Mas a comunidade, em especial nos meses de verão, vem sentido os efeitos da cidade e do crescimento econômico. Caminhões de tora passam por lá em horas diversas do dia, e quando o fazem de madrugada costumam andar em alta velocidade. Carros de moradores de fora transitam também em alta velocidade a caminho do aeroporto, já que onde o asfalto termina (em frente as casas dos últimos moradores da comunidade) tem seguimento um ramal de terra que liga a vila ao bairro Custódio Freire e a BR 364. Há ainda visitas indesejáveis, como presos em fuga da penal, ou mesmo cadáveres que já foram neste final de pista "desovados", causando temor e grande preocupação as famílias. Além disso, a APA tem sido sistematicamente objeto de despejo de lixo por particulares.

Os moradores da comunidade reclamam dessas intervenções externas, inadequadas e violentas, em seu território de uso e ocupação tradicional, hoje formalmente recoberto pela figura jurídica de uma unidade de conservação (a APA). Também se queixam do estado vergonhoso em que a escola local se encontra, bem como a falta de calçadas e quebra-molas para que os moradores e os alunos andem com segurança na vila, já que de fato, no dia a dia, a vida local implica num trânsito constante de um lado a outro da estrada. A iluminação insuficiente é outra queixa dos moradores, que deixa alguns locais do bairro em uma escuridão que pode ser perigosa já que, como se disse, o bairro é frequentado por pessoas outras que não apenas os moradores e veículos ali transitam em velocidade e/ou em direção a outros destinos.

Poranto, como muitas outras comunidades tradicionais, a da vila Irineu Serra tem claramente um modo de vida e de relação com o ambiente singulares. E como tantas outras também, enfrenta desafios decorrentes da expansão da zona urbana em sua direção. E hoje, um portentoso desafio aponta no horizonte: a implantação de uma rodovia de quatro pistas, parte do anel viário projetado para a cidade de Rio Branco.

Foi este o tema de uma reunião ocorrida no sábado, dia 9, na Sede, com a presença de moradores da comunidade, do bairro como um todo e frequentadores e amigos dos centros que fazem uso do Daime. Contando com a presença de equipe do Deracre, foi exposto para os presentes o Projeto de Urbanização e Pavimentação da Estrada Custódio Freire/Irineu Serra, tendo sido afirmado diversas vezes que o mesmo dependeria da concordância da comunidade.

Estive presente na reunião. Não resta dúvidas que há que se reconhecer a boa vontade do governo, não só enviando seus técnicos mas formalmente concedendo poder de decisão à comunidade. Mas como é mesmo isso? Afinal, todo Projeto é parte de um planejamento de maior envergadura, já que diz respeito a toda a cidade de Rio Branco, e que o trecho que atinge diretamente a comunidade é uma parcela, e não todo o Projeto.

O que significaria uma oposição frontal da comunidade ao Projeto? Há realmente espaço para isso? Minha impressão é de que teremos que nos mover dentro de um contexto onde o Projeto é um elemento que dificilmente poderá ser descartado. O que não significa que não possa ser deslocado. E que não tenhamos que ter coragem para construir nossa proposta e afirmá-la onde for preciso.

Trata-se, por um lado, de pensar em alternativas, em especial ao traçado da rodovia. Sua passagem por dentro da comunidade é temerosa e indesejável. As consequências são graves, como alertou o dirigente da Barquinha, Francisco Hipólito, narrando o que ocorreu com a casa e comunidade que lidera a partir do momento em que se viram cercados pela expansão urbana. Hoje seus rituais enfrentam dramas como reclamações de vizinhos contra o som dos cânticos e os fogos de artifício, comprometendo a liberdade de manifestação daquela doutrina. Não pude evitar a comparação, por exemplo, com os índios Katukina em Cruzeiro do Sul, que foram "atropelados" pela BR364 com seus planos mirabolantes de mitigação e que não conseguiram evitar uma desestruturação local pela ameaça que está significando à práticas tradicionais, como as caçadas, além de presenças estranhas e não-convidadas nas aldeias. O que ocorrerá se os rituais de Concentração, que requerem silêncio, tiverem que ser realizados às margens de uma rodovia do anel viário? Mesmo com placas, quebra-molas etc etc, o trânsito de automotores será significativo. Não há plano de mitigação, ou compensação, que compense o silêncio, o ar puro e a tranquilidade, como foi lembrado na reunião.

Mas, como já disse, a comunidade enfrenta problemas que requerem soluções. Moradores mais diretamente atingidos pela violência e despejos de lixo podem estar vendo na proposta apresentada na reunião uma possibilidade de solução para o que os aflinge há já bastante tempo. Mas não me parece adequado pensarmos topicamente. A solução requer um pensamento mais estratégico. E mobilização comunitária. Sem nos reunirmos, ouvirmos a todos, nos pensarmos como um coletivo, talvez todo este momento venha a ser em vão.

Por outro lado, penso que temos base legal para nos amparar, afinal somos uma comunidade tradicional, culturalmente diferenciada, e grupos desta natureza estão contemplados legalmente, mesmo por tratados internacionais, como é o caso da Convenção 169, da OIT, e pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, estabelecida pelo governo brasileiro em 2007 (ver aqui para mais informações). O artigo 3o desta Política, por exemplo, define povos e comunidades tradicionais como "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição". Parece com nós, não?

sábado, 2 de julho de 2011

Crime hediondo


Você sabe por que a floresta está esbranquiçada na foto acima? Uso de veneno. Ao que parece uma nova técnica de desmatamento. Além de desfolhar e secar as árvores, o veneno, que é lançado com uso de aviões, ainda contamina o solo, os lençóis freáticos, os animais e, claro, as pessoas.

"A floresta vira um grande paliteiro, facilitando o desmatamento. É o mesmo processo usado pelo Exército norte-americano para encontrar os vietnamitas na Guerra do Vietnã", disse o superintendente do Ibama no Amazonas, Mário Lúcio Reis.

Credo!

A área atingida, de cerca de 180 campos de futebol, pertence à União e está localizada ao sul do município de Canutama (AM), entre o Parque Nacional de Mapinguari e a terra indígena Jacareúba/Katawixi, que ainda não foi demarcada.

Nem sei mais o que dizer... Para ler mais, vejo o site do Greenpeace.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Viva São João!

Hoje é dia de São João
Viva o menino pastor
da palavra forte, pois que Verdadeira
Da pureza no coração
Profeta da vinda do Cristo, seu primo Jesus

Ontem, dentro do Solstício de Inverno,
varando a noite cantando e bailando O Cruzeiro,
festejamos São João no Alto Santo
Inesquecível festa,
noite de alegria na escola do Mestre e da Rainha

Aproveito o ensejo pra também homenagear o Marcelo,
amigo caro e raro,
que hoje aniversaria, mais um solstício de vida.

Viva o aniversariante!
Viva São João!
Viva o dono do hinário!
Viva a nossa madrinha!

domingo, 19 de junho de 2011

Visitas

Esta apareceu no mês de maio passado. Neste dia estávamos Enaiê, Thiago, Wilian e eu, almoçando e trabalhando nos projetos de iniciação científica dos três. Os cachorros deram o alerta: a preguiça, que sabia estar nas imediações já há algumas semanas, estava numa pequena árvore perto do canil. Depressa prendi os cachorros, que queriam mesmo era pegar a bichinha e dá-lhe uma pisa! Que fazer, que fazer? Por mim, ela ficaria hospedada aqui em casa mesmo, nas árvores que têm aqui, comendo folhas novas, como a vi fazendo alguns dias antes.

Mas não dava, ficando aqui era risco de vida na certa. Vamos ligar para os bombeiros. Eles já tinham estado aqui uns dias antes, quando um enxame de abelhas (daquelas com ferrão) ameaçou se instalar aqui em casa. É, tem as visitas não bem-vindas também. Vieram os bombeiros, pois, super-rápidos, corteses e eficientes. Diagnóstico: aguarde pra ver se elas vão mesmo ficar ou se estão só de passagem. Estavam de passagem. Mas agora tínhamos outra emergência: preguiça querendo casa versus cachorros donos da casa. Chama os bombeiros de novo. Enquanto eles não chegavam, curtimos e tiramos fotos da preguiça, e até um filminho foi feito, com o Thiago, todo feliz, fazendo carinho nela!

De novo, rápidos, gentis e eficientes vieram os homens de vermelho, naquele mega-batcarro vermelho, aquele de bombeiro mesmo. Deram um jeito de pegar a preguiça, sempre sob nossa vigilância: "cuidado, não vai machucar ela!", "o braço dela, cuidado, tá puxando muito!", "tadinha, leva com carinho" etc etc. Aproveitando a deixa, apresentei queixa contra umas cabas (aquelas vespas amarelinhas) que fizeram sua casa numa das portas da minha casa, e toda vez que eu a abria [a porta] elas vinham para fora da casinha delas e ficavam ostensivamente apontando seus ferrões contra mim... Um dos bombeiros foi lá e colocou todas, com casa e tudo, num saquinho, mas teve que ouvir minhas recomendações: "não vai matar elas, solta lá fora!". Acho que ele obedeceu, pois alguns dias depois elas voltaram para o mesmo lugar... A preguiça não sei muito bem seu destino: ou as matas do Parque Zoobotânico ou o Parque Chico Mendes, assim disseram os bombeiros.

Agora, fala sério, e esta visita que apareceu inesperadamente, mas logo desapareceu e não deu mais notícias:

A verdade é que gosto muito dos animais, de verdade. Tenho uma amiga, a dona Adelaide, que tem um cachorro (na verdade do filho dela) chamado Zulu. É um vira-latinha todo magrinho e atlético, desses que é artista de circo e dá pulos e mais pulos. Pois é, sempre que eu ia na casa de dona Adelaide, o Zulu vinha para o portão e ficava pulando e latindo, todo metido a valente. Aos poucos, com o tempo fui sacando o jeito dele, e passei a deixar minha mão na grade do portão, e toda vez que ele pulava, dava uma lambidinha. Entendi: ele estava "pedindo a benção". E assim é até hoje. Gente, tudo é uma questão de comunicação!

Outro cachorro que foi um ritual de aproximação foi o Jambo, que mora em Cruzeiro do Sul, com o meu amigo Jefferson. É um rottweiller, com aquela cara de mau, grandão, forte pra burro. Eu olhava assim pra ele e ficavam com aquele medo: "será que ele tá bravo ou é assim mesmo?". Descobri depois, quando por dois dias fiquei cuidando dele, que ele é um doce. Quando fui embora, até beijo de despedida ganhei!

sexta-feira, 17 de junho de 2011

II Festival Cultural Corredor Pano

Nos dias 15 a 20 de julho próximos, na aldeia Kuntamanã, o povo Kuntanawa estará promovendo a segunda edição do Festival Cultural Corredor Pano. Ano passado pude participar do primeiro Festival realizado, e também relatar o que vi, ouvi e vivi lá. As fotos aqui desta postagem são daquele Festival. Ainda não sei se poderei estar lá na aldeia Kuntamanã este ano, mas farei o possível e convido os leitores a também fazerem este movimento.

A programação é intensa, como pode ser visto a seguir:

Dia 15

07:00 – 08:00 Café da manhã

08:00 – 12:00 Cerimônia de apresentação das delegações indígenas, com celebração e banhos de medicinas sagradas da floresta amazônica, para proteção e integração com a natureza;

12:00 – 14:00 Almoço

14:00 – 17:00 Passeio por trilhas na floresta para integração e conscientização da natureza

18:00 – 20:00 Jantar

20:00 Cerimônia de Integração dirigida pelos líderes espirituais dos povos Pano, com orientações sobre o uso correto das medicinas sagradas e seus conhecimentos ancestrais

Dia 16

07:00 – 08:00 Café da manhã

08:00 - Sessão de Pinturas corporais tradicionais – kene com jenipapo e urucum, ministrada pelos povos indígenas, com objetivo de mostrar a importância e significado das pinturas, promovendo assim a troca de experiências entre os povos

10:00 - 11:00 Abertura oficial do festival no terreiro com mariri e apresentação de cantos

12:00 - 14:00 – Almoço

14:00 – 16:00 Rodada de conversas dos Povos indígenas e delegações não-indígenas para afirmação de apoio pela proteção do meio ambiente e fortalecimento cultural, e pela integração efetiva entre os povos indígenas e não-indígenas

16:00-17:00 Debater a proposta Rio + 20 em 2012 no Rio de Janeiro para inclusão dos povos indígenas com seus conceitos de relações harmônicas com a natureza e a proteção da biodiversidade

18:00- 20:00 Jantar

21:00 - Exibição de filme e documentário que abordam a questão ambiental e cultural

Dia 17

07:00 – 08:00 café da manhã

8:00 – Manhã do meio ambiente com visita nas áreas de reflorestamento da comunidade com árvores frutíferas, nativas e exóticas e madeiras de lei

12:00 - 14:00 Almoço;

14:00 - 16:00 Brincadeiras tradicionais no terreiro

16:00 - 18:00 Celebração espiritual e ensinamentos das anciãs da etnia Pano com representantes do Conselho das 13 Avós

18:00 - 20:00 Jantar

20:00 Apresentação dos artistas indígenas

Dia 18

07:00 - 08:00 Café da manhã

09:00 - 14:00 Pescaria tradicional dos povos indígenas e almoço na beira do lago

15:00 - 17:00 Ritual da Samahuma com os pajés

18:00 - 20:00 Jantar

20:30 - Ritual com Medicinas Sagradas

Dia 19

07:00- 08:00 Café da Manhã

08:00-10:00 Dança do Mariri e brincadeiras e jogos tradicionais

11:00 – Comidas tradicionais: Caiçuma (bebida feita com banana e/ou macaxeira fermentadas), peixe moqueado na palha da bananeira, assado na brasa e na caldeira com leite de coco da mata; beijus com coco, tapioca, banana assada e cozida; macaxeira assada e cozida no leite de coco da mata; frutas da região, palmito e outros

14:00 -16:00 Rodada de conversa dos Povos indígenas, não-indígenas e organizações governamentais e não governamentais:

Para afirmação de apoio pela proteção do meio ambiente, fortalecimento da cultura e afirmação da integração efetiva entre índios e não índios;

Avaliação das rodadas de conversa e do Festival;

• Leitura do Documento final que será enviado aos órgãos governamentais sobre o Festival Cultural Corredor Pano;

17:00 h Cerimônia de despedida

18:00 – 20:00 Jantar

20:00 Noite intercultural de despedida

Dia 20

07:00 - 12:00 Saída das delegações não indígenas

15:00 Avaliação pelas delegações indígenas e planejamento do projeto "Corredor Pano"

Contatos para maiores detalhes, custos e procedimentos para chegar ao local podem ser feitos pelos telefones (68)99968678 begin_of_the_skype_highlighting (68)99968678 e end_of_the_skype_highlighting(68)99554128 begin_of_the_skype_highlighting (68)99554128 end_of_the_skype_highlighting

Sintam-se, portanto, todos convidados!