O texto abaixo é de autoria da antropóloga e amiga Eliza Costa, pesquisadora de mão cheia e de longa data na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Eliza há anos acompanha os acontecimentos no rio Amônia, antes mesmo do surgimento da demandá étnica e territorial dos Arara. É com este conhecimento de causa, e com os profundos vínculos que ela mantém com os moradores da Reserva, que ela escreveu o texto, publicado hoje na coluna Papo de Índio, onde ele pode (e deve) ser lido na íntegra.
Sua reprodução e divulgação aqui insere-se na conversa aberta alguns dias atrás, quando comecei a falar da questão do "ser" índio e anunciei uma postagem sobre a questão da sobreposição entre a Reserva e a demanda de Terra Indígena dos Kuntanawa. A conversa da Eliza vem bem à propósito, e gosto muito do tom que ela adota. Confiram, e continuamos nosso papo em breve...
A solução dos conflitos entre índios e não índios no rio Amônia exige urgente ação inovadora do Estado
Sei que, numa situação de conflito, falar bem de um lado é sempre, e mesmo sem querer, falar mal de outro. Recentemente escrevi no “Blog do Altino” um texto sobre os conflitos de moradores do rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo, com o grupo Apolima-Arara liderado por Chiquinho Siqueira Arara. Na ocasião, movida pela reação a notícias que apresentavam moradores como “invasores”, pretendi apenas trazer mais informações sobre a região, acreditando poder ajudar na compreensão daqueles conflitos, que pedem urgente ação. Não foi minha intenção posicionar-me “contra a luta dos índios”, conforme comentado recentemente pelo Txai Terri neste espaço. Aliás, registro aqui que, apesar da crítica, me senti até lisonjeada por merecer um comentário do Terri, por quem tenho enorme admiração. Por isso, um debate com ele é mesmo uma honra.
Na verdade, Terri tem mesmo razão ao dizer que, no tal texto do Blog, eu teria assumido o ponto de vista dos moradores da Reserva. Como antropóloga, essa era mesmo a minha tentativa, mas que fique claro: quando falo em “moradores”, falo em índios e não índios, por isso não estou contra lado nenhum. Tentarei ser mais clara dessa vez.
Em 1994, passei alguns meses morando com famílias do rio Amônia, e venho acompanhando desde então a história no local, seja em visitas ou em reuniões eventuais. Por causa disso tenho um enorme carinho pelas famílias - índias e não índias - que tão generosamente me receberam em suas casas. E por esse sentimento, por minha responsabilidade enquanto antropóloga, e pelo respeito pela história recente local é que me senti obrigada a me opor, não aos indígenas ou à sua liderança, e sim a uma visão maniqueísta que me parece estar se constituindo quando se fala nos conflitos na região, dividindo todos em “índios” e “invasores”. Embora essa seja a maneira de expressão dos conflitos atuais, a dicotomia ignora a história local e simplifica a realidade, sem nada ajudar a resolver.
Um pouco da história recente da região
A área que hoje é palco desses conflitos fica na região dos rios Amônia e Arara, afluentes do alto do rio Juruá, englobando parte da Reserva Extrativista do Alto Juruá e do Projeto de Assentamento Amônia. Também faz fronteira com Terra Indígena Ashaninka e a sede municipal de Marechal Thaumaturgo, em acelerado processo de urbanização. Vamos a alguns dados dessa história recente. Em 1990, foi criada - por um movimento de índios e não índios - a Reserva Extrativista do Alto Juruá. Em 1991 é aprovado em assembléia um Plano de Uso que oficializava as regras para o uso dos recursos e permanência na área, agora sob administração (pelo menos oficial) do Ibama.
O rio Amônia, fronteira oeste da Reserva, já se torna um lugar sui generis: apesar de seus moradores poderem atravessar a pé de um lado para o outro durante quase todo o ano, de um lado do rio passam a existir certas regras para uso das florestas e dos rios, do outro, nada constava.
Em 1986, foi criada a Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, dos Ashaninka, partindo da fronteira com o Peru nas margens do alto rio Amônia. Em 1992, inicia-se a saída de várias famílias dessa terra indígena, tanto de moradores índios e não índios. Em sua maioria, essas famílias preferiram permanecer residindo no próprio Amônia, adensando a ocupação que já existia rio abaixo.
No mesmo período é criado o município de Marechal Thaumaturgo, com a sede da Prefeitura instalada na foz do rio Amônia, do lado oposto ao da Reserva Extrativista do Alto Juruá. Rapidamente se inicia a urbanização da sede municipal, com uma política agressiva de construção e distribuição de casas e cargos públicos.
Obviamente, não havia recursos suficientes para a manutenção de todas essas famílias que acorreram para a sede municipal. É então que caçadores, pescadores e madeireiros acorrem em busca de alimentos e de madeira para a construção da cidade, adentrando, não sem muitas brigas, o território da reserva extrativista e da terra Ashaninka, dentre outros.
Em 1996, políticos locais pareciam pensar que os conflitos eram poucos, e acharam por bem criar um projeto de assentamento, justamente no território situado entre a terra Ashaninka, o Parque Nacional da Serra do Divisor e a Reserva Extrativista do Alto Juruá. E um tipo de assentamento estabelecido nos moldes mais tradicionais do Incra, aquele dos pequenos lotes que impedem qualquer economia extrativista, com ênfase na pequena criação de gado, sabidamente inadequados para a Amazônia e muito menos para o entorno de unidades de conservação e terras indígenas. Esse assentamento era, porém, importante para o projeto de “desenvolvimento” dos políticos da época, claramente posicionados contra os movimentos sociais locais, tanto indígenas como não-indígenas. Com isso, novo adensamento no rio Amônia, mais pressão sobre os recursos e, claro, novos conflitos.
O paradoxal aqui é que justamente nessa área, já tão complicada, é que surge hoje esse novo conflito, agora entre índios e não índios. Por quê? Arrisco uma resposta: justamente por causa da dualidade entre a preservação ambiental e a urbanização empurrada por interesses políticos. Políticas contraditórias acabaram produzindo um lugar relativamente acessível aos benefícios de saúde e educação (pela proximidade da sede municipal) e, ao mesmo tempo, relativamente preservado (pela localização entre terra indígena, parque e reserva).
E por que essa área ainda está relativamente preservada?
(para ler o texto na íntegra, clique aqui)
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