quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Carta aberta de um jovem líder do povo Kuntanawa

Rio Branco, Acre, 17 de dezembro de 2007

Senhores Governantes desse país e todos simpatizantes da causa indígena da Amazônia brasileira, de qualquer lugar do mundo.

Sou um jovem de 25 anos, um dos principais líderes do meu povo Kuntanawa que vive no alto rio Tejo, um dos principais afluentes do rio Juruá. Nesta carta gostaria de chamar ou pedir a atenção de todos para a nossa causa.

Em 1911, meu povo sofreu um ataque muito cruel pelo homem branco que isso quase causou o extermínio do meu povo, restando apenas cinco pessoas. Durante muito tempo fomos massacrados e escravizados pela exploração da borracha, fomos obrigados a deixar de falar nosso próprio idioma e proibidos de praticar vários outros costumes da nossa tradição. O tempo foi passando e aquela situação tão constrangedora cada vez mais deixava meu povo indignado por não ter sua liberdade e sermos sempre subordinados aos seringalistas que se diziam donos de nossa terra.

Meu povo já sem saber o que fazer. Foi quando conhecemos uma pessoa por nome Antonio Luiz Batista de Macedo, que com uma outra pessoa por nome Francisco Barbosa de Melo, que também era filho daquele lugar, nos trouxeram uma proposta que nos chamou bastante atenção: criar ali uma Reserva Extrativista, o que para nós seria muito importante, era uma oportunidade de sair do comando dos seringalistas. Sonhamos com nossa liberdade e ter uma vida digna perante a sociedade. Não medimos esforços. Meu povo dedicou sua própria vida, houve conflitos, muitas ameaças por parte dos patrões, mas mesmo assim meu povo foi bravo e corajoso, não desistimos e junto com outros povos da floresta criamos a tão sonhada Reserva Extrativista do Alto Juruá.

No início, tudo parecia ter chegado ao final do problema. Chegamos a conduzir o processo administrativo de desenvolvimento da organização dos moradores daquela área e tudo estava dando certo. Tivemos conquistas importantes para todos daquele lugar. Nossa relação com os não-índios era muito harmoniosa.

O tempo foi passando e as coisas foram mudando. Acompanhei de perto, mesmo criança na época. Talvez diferente de outra criança qualquer, acompanhava os passos do meu pai. Aprendi bastante com cada homem comprometido que mostrava seu interesse de ver as coisas darem certo.

Só que nem tudo foi como a gente pensou. Tivemos uma grande surpresa que foi um grande impacto para meu povo: novas pessoas que na época não faziam parte da luta assumiram o comando da Associação dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá, mudando totalmente o seu projeto. Para meu povo, o que nos causou mais revolta foi o fato de terem nos destratado, nos acusando de sermos um empecilho para o crescimento econômico da Reserva. Mas a verdade era que meu povo discordava das ilegalidades que passaram a ocorrer naquela área de preservação dos recursos naturais.

Meu povo então parou para refletir e nós descobrimos que realmente a Reserva Extrativista não era mesmo uma terra com nome adequado para um povo indígena. A terra indígena, para nós, é um símbolo permanente da nossa criação e de nossa existência.

Por este motivo, eu peço em nome de meu povo o apoio e a solidariedade de cada um que ler esta carta e entender nossa história, e que se junte a nós em defesa da vida e da natureza. Tudo que nós tanto queremos é nossa terra demarcada.

Queremos reconstituir nosso povo, voltar a viver feliz e cuidando sempre daquele pedaço de terra que para nós é tão sagrado. Temos nossas raízes plantadas neste lugar, da onde as nascentes fazem brotar as águas que banham e matam a sede de milhares de pessoas.

Meu povo cresceu. Hoje somos 368 pessoas e todos precisam de terra para morar. Queremos dar continuidade de nossa vida e história nesse lugar.

Muito grato a todos e todas que lerem esta carta e um grande abraço em nome de todo meu povo.

Haruxinã (Flávio Kuntanawa)

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Feliz Natal

Hoje, dia natalício do Mestre Jesus, que possamos nos sintonizar com o que ele nos trouxe. Consigo pensar agora no amor próprio e ao próximo, no perdão a si mesmo e ao irmão, na inocência no sorriso de uma criança e na humildade perante a vida.

O aniversário é de Jesus, e os presenteados somos nós.

É verdade que para usufruir, temos que fazer bastante esforço – mas nossos esforços são Dele também, e aí mora um mistério.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

O valor de um gesto


Gente, tem uma greve de fome acontecendo. Há já uns 20 dias um religioso protesta contra a transposição do rio São Francisco. Dom Luis Flávio Cápio. Estou comovida com tudo isso. A vida em risco por um rio, por um povo, por um ideal. Coisa rara, coisa rara. Tenho pensado em Dom Cápio várias vezes ao dia, no significado deste gesto nos dias de hoje quando tantos absurdos são pronunciados: projetos mirabolantes que mexem no meio ambiente e com a vida das pessoas de uma forma leviana e irresponsável. E o Dom Cápio e seus fiéis lá no sertão nordestino - sertão guerreiro, desde sempre - lutando contra tudo isso. Ah, de alguma forma estou lá também. E o nome do rio... São Francisco, tem santo mais amoroso?! Santo do santo perdão.

Ah, meu São Francisco, abençoa esta luta, e dá uma força extra ao Dom Cápio e a santa luz a quem acha que tem poder...

* * *

Segue abaixo o manifesto redigido por Leonardo Boff.Várias organizações e movimentos estão distribuindo na busca de apoio. As adesões devem se enviadas a apoio.dom.cappio@gmail.com com cópia para rede@social.org.br

MANIFESTO

Não ao atual projeto de transposição do rio São Francisco.

Pela vida de D. Luiz Cappio, pela vida do rio São Francisco.

Nós abaixo assinados viemos a público repudiar o atual projeto do governo federal da transposição do Rio São Francisco. Esse projeto é faraônico, não é democrático, porque não democratiza o acesso à águapara as pessoas que passam sede na região semi-árida, distante ou perto do rio São Francisco.

O governo alega que vai levar água para 12 milhões de sedentos. O projeto, na verdade, pretende usar dinheiro público para favorecerempreiteiras, o agronegócio, privatizar e concentrar nas mãos dospoucos de sempre as águas do Nordeste, dos grandes açudes, somadas às do rio São Francisco.

A transposição tem muito pouco a ver com a seca. Tanto que os canais do eixo norte, por onde correriam 71% dos volumes transpostos, passariam longe dos sertões menos chuvosos e das áreas de mais elevado risco hídrico. E 87% dessas águas seriam para atividades econômicas altamente consumidoras de água, como a fruticultura irrigada, a criação de camarão e a siderurgia, voltadas para a exportação e com seríssimos impactos ambientais e sociais. Todas estas implicações não foram transparentemente discutidas com as populações envolvidas como os ribeirinhos, os pescadores, os indígenas, os quilombolas e a comunidade científica.

O atual projeto não toma em conta alternativas mais baratas, maisviáveis e mais eficazes para um número maior de pessoas. O projeto oficial custaria mais de 6 bilhões de reais, atenderia apenas a quatro Estados (Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará)beneficiando 12 milhões de pessoas de 391 municípios. Um projeto alternativo elaborado pela Agência Nacional das Aguas (ANA) e o Atlas do Nordeste custaria pouco mais de 3 bilhões de reais, atingindo nove estados (Bahia, Sergipe, Piauí, Alagoas, Pernambuco, Rio do Norte, Paraíba, Ceará e Norte de Minas), beneficiando 34 milhões de pessoas de 1356 municípios. Cabe ainda lembrar a Articulação doSemi-Árido (ASA) que se propõe constuir um milhão de cisternas, tenho já construido 220 mil que atenderia as áreas mais áridas e isoladas da região.

O projeto de transposição vem sendo conduzido de forma arbitrária e autoritária: os estudos de impacto são incompletos, o processo delicenciamento ambiental foi viciado, áreas indígenas e quilombolas são afetadas e o Congresso Nacional não foi consultado como prevê a Constituição. Há 14 ações que comprovam ilegalidades e irregularidades ainda não julgadas pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o governo colocou o Exército para as obras iniciais, abusando do papel das Forças Armadas, militarizando a região. A decisão do TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região, de Brasília, de dez de dezembro deste ano, obrigando asuspensão das obras, comprova o caráter problemático do projeto governamental.

São tais fatos que sustentam o jejum e as orações do bispo de Barra(BA), dom Luiz Cappio, pessoa humilde, aberta ao diálogo e amigo dospobres que há mais de 30 anos convive com os problemas do Vale do São Francisco. Ele está oferecendo sua vida para que o povo e o rio tenham mais vida. Apoiamos seu gesto profético, digno dos discípulos de Jesus.A alternativa do Presidente Lula é falsa: entre os pobres e o bispofico do lado dos pobres. A verdadeira alternativa é: entre os pobres e o hidronegócio nós ficamos do lado dos pobres.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Viva o aniversariante!


Sou filho desta verdade
Sou dono deste poder
Deus me entrega com firmeza
Eu não devo esmorecer

Vou seguindo nesta verdade
Para sempre, sempre outra vez
A minha mãe sempre comigo
Que me ensina eu compreender

Estou aqui nesta verdade
Só ensino é coisas boas
Alguns que estão comigo
Só pensam é coisa à toa

A ruína que se faz
É só para sofrer
Cada um dá o que tem
Não precisa ninguém dizer

Agora eu volto para o meu lugar
Sigo em frente e vamos trabalhar
Não pense em fazer o que tu queres
Que Deus é o nosso Pai

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Direitos sobrepostos

Dois sentimentos me assaltaram quando soube que os Kuntanawa estavam dando início a uma movimentação política visando reconhecimento étnico e territorial. Soube disso, se não estou equivocada, por meio do pessoal do Cimi em Cruzeiro do Sul, que me ligou para falar do assunto e gentilmente enviou-me documentos que naqueles dias (isso em 2004) os Kuntanawa haviam encaminhado a Funai e outros orgãos. Pois bem, como ia dizendo, dois sentimentos tive: o primeiro de surpresa, o segundo de apreensão.

A surpresa porque nem nos meus sonhos mais secretos imaginei que isso pudesse acontecer, quer dizer, que este ressurgimento étnico viesse a ganhar o espaço público e transformar-se numa demanda territorial. Que durante toda a pesquisa da minha tese de doutorado estivera lidando com um grupo com fortes referências indígenas, disso eu sabia e não tinha dúvidas. Desde nosso primeiro contato, em 1991, notei e anotei os traços indígenas, a proximidade e identificação com os "parentes" vizinhos - sendo tudo isso algo que os distinguia dos demais moradores da Reserva, que gostavam realmente de referir-se a eles como "caboclos" (que aqui no Acre é um sinônimo positivo e negativo de "índio"). A medida que a tese foi sendo construída, que a história familiar foi se desvelando e que minhas relações com a família foram se aprofundando, a todo momento esbarrava com a vertente indígena daquelas pessoas, seja em suas falas afirmativas ("sou índio"), sua maneira de viver, de estar juntos, de consagrarem a ayahuasca.

E abro um parêntese aqui para dizer que toda esta surpresa tem um componente de satisfação. A perspectiva que informou o trabalho de reconstituição da história da família de seu Milton é de que o destino daquelas pessoas foi (e é) por elas construído, com a autonomia possível dada pelas circunstâncias, mas com a agência inegável delas. E foi isso que vi acontecendo: independente de mim, da antropóloga "deles", seu Milton e filhos e demais parentes e afins decidiam sobre seu destino. Exatamente: eles não são "meus" índios, como se costuma dizer, mas eu a antropóloga "deles" - e com tranquilidade digo que fui a última a saber de tudo!

Mas falemos agora da apreensão. Na mesma hora, lá em 2004, pensei: "e a Reserva?". Refiro-me aqui a Reserva Extrativista do Alto Juruá, meu local e casa de trabalho desde 1991. Nossa, espantava-me, ela vai ficar sem um pedaço seu, e sem um povo seu também, pois "os Milton" são parte inseparável da história de criação da Reserva. Senti-me dividida. Queria apoiar e acompanhar meus amigos, mas queria também lutar pela Reserva, e de alguma forma isso estava associado, para mim, naquele momento, a manter a integridade do território. Pensava também nos moradores do alto rio Tejo, vizinhos dos "Milton" a serem atingidos pela possível criação de uma Terra Indígena: o que será deles? Para onde irão?

Como disse a Eliza no Papo dela (ver postagem anterior), não se trata de "mocinhos e bandidos", ou seja, não dá pra cair num maniqueísmo numa situação como esta: a de sobreposição de territórios indígenas sobre áreas habitadas por populações extrativistas. Mesmo porque os índios de hoje compartilharam a sociedade de seringal com os seringueiros, e muitos dos seringueiros de hoje tem em sua história a ascendência indígena. Os trânsitos entre uma situação e outra são mais complexos do que uma oposição simplificada entre "brancos" e "índios". Como então tomar partido? Devo dizer ainda que mais recentemente andei revendo minha relutância em pensar a Reserva desmembrada. Afinal, são as Reservas parentas próximas das Terras Indígenas, e os Kuntanawa, ora, estão no seu direito.

Mas, volta-me ao pensamento, há os demais, os ditos não-índios: como fica sua situação? Ah, receberão indenização e pronto, a lei é soberana e garante aos índios o direito à terra. Bom argumentações assim, tão taxativas, não conseguem me convencer por inteiro. Novamente, não se trata de bandidos e mocinhos. Os prováveis futuros atingidos são extrativistas, seringueiros, população trabalhadora e com uma história de mais de cem anos na área. De formas diferentes, participaram das lutas pela criação da Reserva, e, também de forma não homogênea, estão envolvidos no esforço de mantê-la para seus filhos e netos. Tal como os índios, lutam neste país para viver com dignidade. Que direito elas têm?

Tendo a concordar com a Eliza: é preciso um reconhecimento de direitos de ambas as partes e que isso seja levado a sério, ou seja, se traduza em procedimentos de negociação e políticas públicas, em especial no caso das indenizações. Ao Estado é exigida uma nova postura para lidar com uma situação de tal complexidade e delicadeza. Dará ele conta? Bom, aí já entram complicadores e morosidades inacreditáveis... Mas Eliza está certa em sua análise, concordo com ela.

Agora há pouco (ontem), o Ministério Público Federal no Acre enviou uma recomendação a FUNAI para que sejam iniciados os trabalhos de demarcação da TI Kuntanawa. A FUNAI tem 30 dias para se manifestar. Por outro lado, dentro da própria FUNAI, é aguardado para logo um parecer sobre o caso Arara, do rio Amônea. Muita água ainda vai rolar em mais este capítulo de sobreposições territoriais. Esperemos que o roteiro traga (boas) novidades.

domingo, 9 de dezembro de 2007

A sobreposição e os "outros"

O texto abaixo é de autoria da antropóloga e amiga Eliza Costa, pesquisadora de mão cheia e de longa data na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Eliza há anos acompanha os acontecimentos no rio Amônia, antes mesmo do surgimento da demandá étnica e territorial dos Arara. É com este conhecimento de causa, e com os profundos vínculos que ela mantém com os moradores da Reserva, que ela escreveu o texto, publicado hoje na coluna Papo de Índio, onde ele pode (e deve) ser lido na íntegra.

Sua reprodução e divulgação aqui insere-se na conversa aberta alguns dias atrás, quando comecei a falar da questão do "ser" índio e anunciei uma postagem sobre a questão da sobreposição entre a Reserva e a demanda de Terra Indígena dos Kuntanawa. A conversa da Eliza vem bem à propósito, e gosto muito do tom que ela adota. Confiram, e continuamos nosso papo em breve...

A solução dos conflitos entre índios e não índios no rio Amônia exige urgente ação inovadora do Estado

Sei que, numa situação de conflito, falar bem de um lado é sempre, e mesmo sem querer, falar mal de outro. Recentemente escrevi no “Blog do Altino” um texto sobre os conflitos de moradores do rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo, com o grupo Apolima-Arara liderado por Chiquinho Siqueira Arara. Na ocasião, movida pela reação a notícias que apresentavam moradores como “invasores”, pretendi apenas trazer mais informações sobre a região, acreditando poder ajudar na compreensão daqueles conflitos, que pedem urgente ação. Não foi minha intenção posicionar-me “contra a luta dos índios”, conforme comentado recentemente pelo Txai Terri neste espaço. Aliás, registro aqui que, apesar da crítica, me senti até lisonjeada por merecer um comentário do Terri, por quem tenho enorme admiração. Por isso, um debate com ele é mesmo uma honra.

Na verdade, Terri tem mesmo razão ao dizer que, no tal texto do Blog, eu teria assumido o ponto de vista dos moradores da Reserva. Como antropóloga, essa era mesmo a minha tentativa, mas que fique claro: quando falo em “moradores”, falo em índios e não índios, por isso não estou contra lado nenhum. Tentarei ser mais clara dessa vez.

Em 1994, passei alguns meses morando com famílias do rio Amônia, e venho acompanhando desde então a história no local, seja em visitas ou em reuniões eventuais. Por causa disso tenho um enorme carinho pelas famílias - índias e não índias - que tão generosamente me receberam em suas casas. E por esse sentimento, por minha responsabilidade enquanto antropóloga, e pelo respeito pela história recente local é que me senti obrigada a me opor, não aos indígenas ou à sua liderança, e sim a uma visão maniqueísta que me parece estar se constituindo quando se fala nos conflitos na região, dividindo todos em “índios” e “invasores”. Embora essa seja a maneira de expressão dos conflitos atuais, a dicotomia ignora a história local e simplifica a realidade, sem nada ajudar a resolver.

Um pouco da história recente da região

A área que hoje é palco desses conflitos fica na região dos rios Amônia e Arara, afluentes do alto do rio Juruá, englobando parte da Reserva Extrativista do Alto Juruá e do Projeto de Assentamento Amônia. Também faz fronteira com Terra Indígena Ashaninka e a sede municipal de Marechal Thaumaturgo, em acelerado processo de urbanização. Vamos a alguns dados dessa história recente. Em 1990, foi criada - por um movimento de índios e não índios - a Reserva Extrativista do Alto Juruá. Em 1991 é aprovado em assembléia um Plano de Uso que oficializava as regras para o uso dos recursos e permanência na área, agora sob administração (pelo menos oficial) do Ibama.

O rio Amônia, fronteira oeste da Reserva, já se torna um lugar sui generis: apesar de seus moradores poderem atravessar a pé de um lado para o outro durante quase todo o ano, de um lado do rio passam a existir certas regras para uso das florestas e dos rios, do outro, nada constava.

Em 1986, foi criada a Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, dos Ashaninka, partindo da fronteira com o Peru nas margens do alto rio Amônia. Em 1992, inicia-se a saída de várias famílias dessa terra indígena, tanto de moradores índios e não índios. Em sua maioria, essas famílias preferiram permanecer residindo no próprio Amônia, adensando a ocupação que já existia rio abaixo.

No mesmo período é criado o município de Marechal Thaumaturgo, com a sede da Prefeitura instalada na foz do rio Amônia, do lado oposto ao da Reserva Extrativista do Alto Juruá. Rapidamente se inicia a urbanização da sede municipal, com uma política agressiva de construção e distribuição de casas e cargos públicos.

Obviamente, não havia recursos suficientes para a manutenção de todas essas famílias que acorreram para a sede municipal. É então que caçadores, pescadores e madeireiros acorrem em busca de alimentos e de madeira para a construção da cidade, adentrando, não sem muitas brigas, o território da reserva extrativista e da terra Ashaninka, dentre outros.

Em 1996, políticos locais pareciam pensar que os conflitos eram poucos, e acharam por bem criar um projeto de assentamento, justamente no território situado entre a terra Ashaninka, o Parque Nacional da Serra do Divisor e a Reserva Extrativista do Alto Juruá. E um tipo de assentamento estabelecido nos moldes mais tradicionais do Incra, aquele dos pequenos lotes que impedem qualquer economia extrativista, com ênfase na pequena criação de gado, sabidamente inadequados para a Amazônia e muito menos para o entorno de unidades de conservação e terras indígenas. Esse assentamento era, porém, importante para o projeto de “desenvolvimento” dos políticos da época, claramente posicionados contra os movimentos sociais locais, tanto indígenas como não-indígenas. Com isso, novo adensamento no rio Amônia, mais pressão sobre os recursos e, claro, novos conflitos.

O paradoxal aqui é que justamente nessa área, já tão complicada, é que surge hoje esse novo conflito, agora entre índios e não índios. Por quê? Arrisco uma resposta: justamente por causa da dualidade entre a preservação ambiental e a urbanização empurrada por interesses políticos. Políticas contraditórias acabaram produzindo um lugar relativamente acessível aos benefícios de saúde e educação (pela proximidade da sede municipal) e, ao mesmo tempo, relativamente preservado (pela localização entre terra indígena, parque e reserva).

E por que essa área ainda está relativamente preservada?

(para ler o texto na íntegra, clique aqui)

sábado, 8 de dezembro de 2007

Mais uma do Roxo

Contou-me o Amilton, grande amigo agora morando em Cruzeiro do Sul, o seguinte fato:

A meu pedido ele assumiu o compromisso de trazer para Rio Branco uns mapas e cartazes que trabalhamos com os monitores da Reserva Extrativista do Alto Juruá, e que estavam com o Roxo. Amilton foi então em busca da casa do Roxo, no bairro do Cruzeirinho, num local que ele [Amilton] sabia mais ou menos onde era. Chegou numa rua, perguntou para uma senhora:

- A senhora conhece o Roxo? Ele tem um carrinho de lanche, fica lá em frente ao Banco do Brasil? Não? Ah, obrigado.

Mais adiante, parou num comérciozinho:

- Bom dia. O senhor conhece o Roxo?
- Não, não conheço.
- Ele trabalha com um carrinho de lanche...
- Não sei não.
- O ponto dele é lá em frente ao Banco do Brasil.
- Hum, não sei quem é não.
- Tá, obrigado.

Amilton já se virava para entrar no carro, quando ouviu o comerciante chamá-lo e perguntar:

- Roxo? É um que trabalha com pesquisa?
(na foto acima, tirada em janeiro de 2006, Roxo aparece no primeiro plano; estávamos numa reunião com monitores da Reserva residentes na vila Restauração)

Viva a Rainha da Floresta!

A Rainha da Floresta
Vós venha receber
Estes cânticos aqui na mata
Que eu venho oferecer

Vós mandou para mim
Ensinar os meus irmãos
Estamos todos reunidos
Com amor no coração

Eu apresento os meus trabalhos
Conforme eu aprendi
Estamos todos reunidos
Vós faça todos feliz

(Mestre Raimundo Irineu Serra, 1892-1971)

domingo, 2 de dezembro de 2007

Ser ou não ser - eis a questão?

Há tempos estou para escrever algo mais extenso sobre os Kuntanawa (ou Kontanawa, como até há pouco escrevia-se, sendo a correção provavelmente devido à palavra “kunta”, o coco da jarina). Os Kuntanawa desde 2003 estão empenhados, com apoio público do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj), em ser reconhecidos enquanto tais e conquistar um território próprio. Um dos grandes desafios que estão encontrando é que a área que querem para si está inteiramente superposta a da Reserva Extrativista do Alto Juruá, da qual inclusive são um dos principais responsáveis pela criação, num tempo em que sua porção indígena convivia de maneira mais harmoniosa com a cultura de seringal na qual foram socializados.

Os Kuntanawa não são um caso isolado na Amazônia, e nem muito menos no Acre, mesmo na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Nesta última, os Arara do Amônea são pioneiros nessa busca de reconhecimento e direitos territoriais, já avançaram bastante no processo, já existe um relatório de identificação elaborado, mas o caso se arrasta nas burocracias e políticas estatais. Dois temas que chamam atenção nos ressurgimentos étnicos em curso no Alto Juruá.

Um é a própria questão da identidade étnica. Povos indígenas julgados extintos ressurgem a partir de seus descendentes misturados com “brancos”; ressurgem não em aldeias, mas em colocações seringueiras ou mesmo lotes de assentamento. O senso comum e as forças políticas que se opõem a este tipo de processo, perguntam: índios? Como assim? Até outro dia não eram brancos? Pra ser índio não tem que viver de outro modo? Se vestir (ou despir) tal como os (verdadeiros) índios o fazem? Cadê a língua? Os rituais? Todas essas perguntas, notem bem, não são na verdade perguntas, são antes respostas, e respostas nada inocentes – são respostas políticas a uma questão que é também política: o que é ser índio? Ou quem é índio?

Não pretendo aqui me estender sobre isso, e remeto a uma entrevista inspiradora e esclarecedora que o Instituto Socioambiental (ISA) fez com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. O que digo a seguir tem lá a sua fonte. Se há uma questão que incomoda Viveiros de Castro é justamente esta: ter que dar uma de “perito de identidade”, como ele diz, e dizer quem é ou não índio. Dizer o que os outros são ou não. Meio onipotente isso, não? Insinua-se uma questão de poder aí, de interesses e pressões.

Viveiros de Castro mostra que desde os anos 70, a definição do que seria “índio” conheceu diferentes parâmetros de legitimação, mas adentramos os anos 90 com um aparato teórico e legal que amparam a afirmação de que é índio quem se considera e é considerado como tal por seu grupo. Ora, se o sujeito – amparado por uma coletividade, seu grupo – está dizendo que é índio, quem é o antropólogo para dizer que não? E se este sujeito apresenta vinculações ancestrais com povos indígenas, tal como o grosso da população brasileira, não fica mais absurda ainda a pergunta? Viveiros de Castro chega a interessante sugestão, ou tese, de que neste nosso país somos todos índios, exceto aqueles que dizem que não o são. Inverte tudo.

Há muito a antropologia já esclareceu que, mais do que signos externos, a indianidade depende de um sentimento de pertencimento. Dito de outra forma: não é cocar, urucum, nudez e outros adereços que definem se um grupo é ou não indígena. Como diz Viveiros de Castro, mais do que um modo de parecer, ser índio é “um modo de ser”, e como tal não é fixo, encerra movimento, mudança, um devir. É quase ridículo achar que vamos hoje encontrar povos indígenas, em especial aqueles que foram cruelmente perseguidos nas “correrias”, tal como se encontravam naquele justo momento. Isso não seria jamais possível. Muita coisa mudou, tempo passou, a roda da história girou... Mas sob certas circunstâncias, a fênix renasce. E o faz amparada na história, mas também por ela renovada. Para Viveiros de Castro, os Kuntanawa, ou os Milton, todo este tempo estariam devindo a sua indianidade. E eis que os encontramos em 2007, em plena luta por reconhecimento e direitos territoriais.

Mas há uma outra dimensão, política também, além de geográfica, a da superposição territorial. Na próxima postagem entro neste assunto...

sábado, 1 de dezembro de 2007

Os Kuntanawa em Cruzeiro do Sul

Em Cruzeiro do Sul, na semana passada, encontrei com vários membros do grupo indígena Kuntanawa que, com apoio do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e da Opirj (Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá) realizaram reuniões, concederam entrevistas a rádio e televisão e encaminharam suas reivindicações aos orgãos competentes. Reproduzo abaixo trecho do documento tornado público.

"Diante do silêncio demonstrado pela FUNAI e outros orgãos da união (IBAMA, FUNASA, INCRA) tanto no sentido de chegar até a nossa Terra Indígena e nos apresentar respostas para as nossas reivindicações prioritárias explícitas na luta pelo reconhecimento étnico e territorial, nosso povo reunido em Assembléia Geral realizada nos dias 1 e 2 de novembro de 2007, elegeu esta delegação composta de 14 integrantes Kuntanawa, para de forma participativa vir a Cruzeiro do Sul e a qualquer lutar deste nosso país, para apresentar nossas reivindicações e chamar a devida atenção das autoridades para tratarem com o carinho merecido as reivindicações que temos apresentado ao longo destes últimos sete anos."

Os Kuntanawa deram um prazo de 15 de dezembro para verem reunidos em Cruzeiro do Sul representantes da FUNAI, da FUNASA, do governo estadual, do MMA e das Procuradorias Gerais do Estado e da Federação para uma resposta sobre várias reivindicações, entre elas, e principalmente, a criação de um Grupo de Trabalho para realização dos estudos de identificação e delimitação da terra indígena Kuntanawa.

A área reivindicada pelos Kuntanawa está inteiramente superposta a Reserva Extrativista do Alto Juruá. Para quem não está lembrado, os Kuntanawa são remanescentes de grupos indígenas perseguidos nas "correrias" do início do século XX para abertura de seringais na região, e seus membros mais antigos são seu Milton Gomes da Conceição e dona Mariana Feitosa do Nascimento, líderes do extenso grupo familiar sobre o qual publiquei o livro com o título de "Os Milton. Cem anos de história nos seringais". Em postagem anterior já falava deste novo momento do grupo: de "Milton" a "Kuntanawa".