terça-feira, 14 de outubro de 2008

Digo porque vi

Desde ontem, dia 13, está acontecendo na UFAC um evento que vale à pena ser prestigiado. Fruto da incansável disposição do Gérson Albuquerque, que recentemente foi batizado de nosso James Dean da floresta num artigo do Elson Martins, o evento na verdade são dois e seus nomes pomposos: o II Simpósio Linguagens e Identidade da/na Amazônia Sul Ocidental e o I Coloquio Internacional "As Amazônias, as Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia". Esta pomposidade faz juz, modéstia a parte (pois sou uma das palestrantes convidadas), ao rol de pesquisadores e professores presentes de vários estados do Brasil e gente também da América Latina e África. Idéias novas, pelo que vi hoje, estão circulando, e procurei dar minha contribuição neste sentido. Tudo isso faz bem para o intelecto, o corpo e as emoções. A programação, pra quem quiser, está no site da UFAC (ver em "Eventos").

Mas o que quero contar aqui é algo que me chamou atenção no evento de hoje à tarde, uma palestra com o Prof. Dr. Boubacar Barry, do Senegal, um senhor negro e vestido à caráter, como a foto acima deixa entrever. Ele falou em francês, língua do país que colonizou o Senegal, e que convive, dentro do país, com o árabe trazido pelo islamismo e as línguas nativas. Ele nos disse que a África, mais do que uma revolução econômica, como nos fazem crer as análises correntes nos meios de comunição, precisa antes de uma "revolução intelectual", ou "cultural", que dê conta de criar uma linguagem capaz de tocar, por exemplo, os 60% da população do Senegal que não fala francês ou mesmo árabe (que se fala das esferas de poder e nas mesquitas, respectivamente). Multiplique esta situação pelos países africanos, e você tem uma diversidade cultural imensa e uma dificuldade de diálogo talvez do mesmo porte. Nosso palestrante falou de outras coisas, como a tradição oral e a figura dos "griôs", mestres das narrativas orais e guardiães das histórias nelas veiculadas, e como estas tradições se relacionaram ao longo da conquista colonial e depois da independência com a disciplina da História.

Mas gostaria aqui de antes chamar atenção para algo bem interessante que aconteceu, e o que poderia ser um incômodo fruto de uma incapacidade individual transformou-se numa situação cuja solução foi encontrada pelo coletivo dos presentes. Nosso palestrante falou em francês, com um tradutor a seu lado. Ao início tudo correu bem. A parte inicial da palestra, densa de relatos e tradições orais, já tinha sido traduzida para o português, e nosso tradutor leu o texto de forma pausada e tranquila. Aí entrou em cena o Dr. Boubacar, com seu francês melodioso e calmo, para dar tempo ao tradutor de fazer o seu trabalho. Logo problemas começaram a aparecer: para quem entendia um pouco de francês (como eu, viva!), era perceptível que algo estava se perdendo; para quem entendia bastante, a situação foi ficando insustentável e interferências e correções começaram a ser feitas da platéia. A coisa foi indo de um jeito que uma dessas pessoas foi por nós, público ali mais próximo, indicada como co-tradutora ad hoc da palestra. E assim seguimos, agora mais confiantes. Mas traduzir cansa, e nossa recém-nomeada tradutora não dispensou o tradutor-veterano, chamando-o para um trabalho conjunto. E assim fomos indo. A situação ficou um pouco mais complexa na hora do debate: eram dois microfones para quatro falantes: o palestrante, os dois tradutores e o público participante. Mas tudo arranjou-se, e até o Gérson ajudou nesta movimentação e arranjo.

O que achei interessante nisso tudo foi que, para ouvirmos o Dr. Boubacar, que veio de tão longe para conversar conosco, tivemos que trabalhar em equipe: o paletrante pacientemente assistindo a tudo que ocorria sem dar o menor sinal de alteração; todos os presentes redobrando a atenção para entender idéias que iam sendo traduzidas por mais de uma pessoal, o que implicava em correções frequentes; o tradutor-veterano assumindo que era leigo no assunto (não na língua) e redimensionando sua participação; a tradutora-nomeada se dispondo a sair de sua posição de público e conosco socializar seus conhecimentos de francês e também do assunto; e o rapaz que traduzia para uma moça da platéia tudo que era dito para a linguagem de sinais dos surdos e mudos - bom, este trabalhou bastante dada a quantidade de fatos inusitados que tiveram lugar, com suas idas, vindas e reparos. Saí antes de acabar, lamentando ter que o fazer: estava, de fato, tudo muito interessante.

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