quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Sem título

A quem amo?
Não sei se sabes
Não sei se sei

Uma paixão que me invade
Um afeto grandioso
Um amor por mim mesma?

Como o sol em dia frio...
Dá vontade de abraçar

Salomé de los Rios

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Pequena grande vitória

Direto de Marechal Thaumaturgo, extremo oeste do Acre, alto rio Juruá, Murilo Seabra conta um ocorrido recente...

“Eu não sou de Marechal Thaumaturgo. Cheguei aqui na região há cinco meses e estou aqui na sede do município há dois meses. Conversando com Izaquiel, que tem uma vendinha perto da praça central, fiquei sabendo que os fazendeiros e açougueiros daqui jogavam os couros dos bois abatidos nas margens do rio Amônea [afluente do Juruá]. Lá os couros apodreciam e a “água preta”, como dizem os thaumaturguenses, escorria para o rio. Levei os meus alunos [de arte e filosofia] para visitarmos o local. Descobrimos que algumas famílias ficavam expostas ao fedor vindo dos couros. Depois conversei sobre o fato com o presidente da Câmara dos Vereadores. Foi marcada uma assembléia com os vereadores, o prefeito, os fazendeiros, os açougueiros e os moradores. Levei meus alunos. Dois outros professores também compareceram. A assembléia teve um resultado positivo. O prefeito disse que a partir daquela data estava proibido jogar couros nas margens do rio e os couros que já estavam lá foram retirados no dia seguinte. Estou, é claro, resumindo excessivamente a história. Mas não é difícil imaginar, por exemplo, que as autoridades não queriam resolver o problema e que fui inclusive advertido em off para deixá-lo de lado. Já não sou tão bem querido em Marechal Thaumaturgo como era dois meses atrás. Hoje [26 de agosto] fazem exatamente quatro dias que aconteceu a assembléia”.


No dia 21, Murilo havia escrito o seguinte email:

“É engraçado como as coisas aconteceram... Nunca pensei em reclamar dos couros de boi daqui... Nunca... Nem sabia que eles existiam... Mas acabei me apaixonando pelas águas do Amônea... E aí quando Izaquiel me contou dos couros, fiquei inquieto... Fiquei três dias literalmente passando mal... Precisava ir lá... Tinha que ver a coisa com meus próprios olhos... Estava inquieto... E fiquei inquieto até o momento em que fui lá... E a inquietação, é claro, não passou...”

Atitudes movidas pelo coração e pela inteligência ainda fazem diferença neste mundo de meu Deus. É como a história do beija-flor apagando o incêndio na floresta, levando e trazendo água em seu diminuto bico. Aos animais que fugiam do fogo e do beija-flor troçavam, ele respondia: "estou fazendo a minha parte". A postagem de hoje está dedicada a você, Murilo.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Livro de Jó - terceira leitura

Já era hora de voltar ao Livro de Jó, mas o fato é que me sentia insegura quanto a concluir a narrativa de minha leitura pois sentia que nada tinha de conclusivo, e sim dúvidas e perguntas. Até que percebi que a leitura de uma escritura talvez seja assim mesmo: dá-nos o que no momento podemos vislumbrar. Assim, outras leituras haverão, e aqueles que quiserem compartilhar seus estudos serão bem-vindos. Dito isso, vamos ao que tenho para contar.

Vimos que Jó, que vivia na bonança, foi acometido daquilo que mais temia: desgraças que o pertubaram profundamente e terminaram por abalar sua fé em Deus. Mas, notem, se era algo que ele mais temia, é provável que já estivesse dentro dele dado como possibilidade. O que quero sugerir é que a difícil passagem pela qual ele envereda pode ter sido produzida por ele mesmo. Mas como? Não sei bem. Que paciência é esta pela qual a história é tão conhecida? Consigo mesmo? Novamente, não sei.

Mas talvez seja a hora de revelar algo que está no início da história e que permaneceu oculto até agora. Antes de começarem as provações de Jó, logo no início da narrativa encontramos a seguinte passagem: “Certa vez, foram os filhos de Deus apresentar-se ao Senhor; entre eles veio também Satanás”. Satanás, filho de Deus? Pois é, está lá, escrito assim mesmo (pelo menos na minha tradução...). Se é assim, o mal ou qualquer coisa que o valha associada a Satanás está contida na Criação Divina. Bom, pensando bem, se Deus é o supremo criador e dono de todo poder, por que estaria o mal e seu principal representante, o Diabo, fora de sua alçada? Sinto-me em terreno perigoso... Se Deus está em cada um de nós e Deus encerra o bem e o mal, este último também está dentro de nós, certo? Mas o que que ele [o mal] está fazendo em nós e com consentimento de Deus? Que papel ou função terá esta presença na Criação?

Voltando a Jó, trava-se o seguinte diálogo entre Deus e seu filho Satanás:

- Donde vens?, indaga Deus.
- Dei umas voltas pela terra, andando a esmo.
- Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, teme a Deus e se afasta do mal.

Satanás então diz que esta situação só é assim porque Deus levantou “um muro de proteção ao redor” de Jó e sua família e bens. “Mas estende a mão e toca em todos os seus bens; eu te garanto que te lançará maldições no rosto”. Deus permite que assim seja feito, mas proibe Satanás de tocar em Jó.

Sai Satanás e promove uma série de desgraças que atingem os bens e filhos e filhas de Jó, que, contudo, resiste e não protesta contra Deus. Novo diálogo tem lugar entre Deus e Satanás, e este último afirma que Jó só permanece firme porque seu próprio corpo não foi ainda tocado. “Seja!”, disse o Senhor a Satanás, “ele está em suas mãos, mas poupa-lha a vida”. É então que Jó é acometido de chagas e sofrimentos físicos indescritíveis, e é neste momento que seus três amigos o vem visitar. O resto já sabemos um pouco: Jó lamenta-se, pede para morrer, depois revolta-se; os amigos o afirmam culpado (alguma culpa havia de ter!), acusam-no tal como a um astucioso herege; Jó não se entrega, não assume culpa, protesta inocência, sente-se injustiçado.

(espero que me perdoem, a postagem já vai grande e vou me permitir uma quarta leitura do Livro de Jó, que logo estará no ar!)

domingo, 19 de agosto de 2007

Inocência

Quando vi o filme “Crônicas de Nárnia”, algo me tocou profundamente. Numa das primeiras cenas em que a heroína da história, uma menina de uns cinco anos, chega a Nárnia saída de um guarda-roupa (!) ela logo encontra um fauno. Está nevando, um pouco frio, e ele a convida para um chá em sua casa que fica ali perto. Ela hesita, mas aceita. Gostara do fauno, e realmente a interação entre eles é bem delicada. A casa é aconchegante, o chá está ótimo, e a menina logo dorme na cadeira. Acorda pouco tempo depois com o fauno chorando. Quer saber o por quê daquele choro.

O fauno confessa constrangido que a terrível Rainha do reino, uma verdadeira tirana, ordenara que qualquer humano que aparecesse em Nárnia deveria ser entregue a ela. E assim, ele, o fauno, estava sofrendo de culpa de entregar às garras da Rainha sua mais nova amiga. A menina, muito linda, fica surpresa com aquela confissão e diz com uma inocência que só as crianças têm: mas eu pensei que você era meu amigo.... Não há um tom de acusação, e tampouco ela se sente culpada de algo para merecer aquela traição – ela simplesmente expressa a pureza que está dentro de si. Há uma liberdade invejável neste ato, que é também um sentir.

Há alguns dias, consultando o I Ching, saiu o hexagrama “Wu Wang/Inocência (o Inesperado)”, que fala da ausência de culpas e de intenções pré-determinadas. Na inocência, o inesperado, quando surge, pode ser mais facilmente trabalhado e superado caso traga más notícias. A perda da inocência é de grande prejuízo. “Onde irá aquele que se afasta da inocência? A vontade e as bençãos do céu não acompanham seus atos”, comentava Confúcio.

Também nesses últimos dias tenho sido quase cotidianamente visitada por beija-flores. Cada vez que um deles aparece, é um frescor, uma leveza, uma alegria interior – algo que me remete também ao que seria sentir a inocência. Que bom seria ter por propósito nesta vida simplesmente amar os beija-flores! Este pensamento, simples, é verdade, e também profundo, me veio no último dia 15. Tomei-o como uma inspiração.

E lembrei agora mesmo da Violeta Parra, na famosa “Volver a los 17”, em que ela diz, já com seus quase 50 anos (imagino), que voltar a ter 17 anos é como decifrar sinais sem ser um competente sábio nesta matéria, é voltar ter sentimentos profundos, tal como uma criança diante de Deus. E como uma lembrança puxa a outra, agora me veio o Mestre Jesus, que tinha pelas crianças uma predileção especial. Talvez ele achasse que só os inocentes de coração podiam realmente deleitar-se ao estar em Sua presença, e vice-versa.

Pra fechar estas palavras, imagino que chegar mais perto de nós mesmos seja também aproximar-se da criança inocente que foi (fomos) sendo sufocada ao longo da vida. Sentir-se como a menina que entra e sai de um guarda-roupa, conhece um reino mágico, faz um amigo fauno e enfrenta todos os perigos desta grande aventura (que é a vida) com uma confiança e pureza invejáveis.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Guardião

Tenho um amigo que pra mim é uma espécie de guardião, um guardião da fronteira. Ele mora no Alto Juruá, na comunidade Apiwtxa, é da etnia Ashaninka. Seu nome é Benki Piyãko. Há alguns dias recebi um email dele contando um caso sobre o qual ele não tinha ainda muitas informações, mas que o deixou bastante preocupado.

Para os que não estão acompanhando os últimos acontecimentos na fronteira acreano-brasileira e peruana, continua a invasão das nossas florestas por madeireiras peruanas. Há um verdadeiro cerco se formando. A Terra Indígena do Benki e seu povo já vem há anos sendo vitimada, e a triste novidade é que a invasão chegou a Reserva Extrativista do Alto Juruá, no seu flanco oeste e sul (cf. postagem “Cerco na fronteira”).

Pois bem, houve uma ação do Ibama e do Exército na fronteira, quando prisões foram feitas. Todo o trabalho sujo das madeireiras peruanas envolve alianças suspeitas (quais seus termos?) com povos indígenas que vivem na região. Há coisas como madeireiras financiando planos de manejo de comunidades indígenas, que depois a elas venderão suas madeiras.

Um dos tenentes do Exército relatou ao Benki que um morador da Reserva Extrativista, que atuara como guia naquela expedição, estaria sendo ameaçado de morte por “índios peruanos”, que o teriam procurado em sua casa. O caso, do pouco que se sabe até o momento, não teve maiores desdobramentos, mas deixou o guardião em estado de alerta.

“Como líder da comunidade Apiwtxa vejo que isso é um jogo sujo da empresa Venao [empresa madeireira] por estar manipulando nossos parentes indigenas para entrar em conflito com o nosso País brasileiro ameaçando pessoas e comunidades”.

Este guardião é de valor. Fiquei pensando nos argumentos que afirmam a insegurança de nossas fronteiras internacionais por incidirem nelas Terras Indígenas. Disse ao Benki, quando nos falamos no dia 15: “que bom que você está aí”.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Lua nova



Me desconheço
Estranho meu corpo - era eu assim?
Olho no espelho
(ah, o espelho, o que reflete um espelho?)
Esta, sou eu?
Algo se passa.
No céu, a lua é nova.

(Salomé de los Rios)

Cuidado, contramão!

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Carta Kaiapó


Aldeia Metyktire, 08 de agosto de 2007

Ao sr. Márcio Meira, Presidente da Funai
C\c ao Presidente Luís Inácio Lula da Silva

Prezados Senhores

Não estou gostando da lei de mineração que o governo Lula quer fazer. A mineração vai estragar as Terras Indígenas, os Kaiapós vão ficar bravos se a mineração invadir as nossas terras. A mineração vai trazer doenças para nosso povo, vai matar os peixes e os animais que são nossos alimentos, vai poluir a nossa água. Nós não queremos que os garimpeiros entrem na nossa terra, a mineração vai acabar com a nossa saúde.

Nós não queremos que o governo Lula atrapalhe a nossa vida. Nós temos direito de viver na nossa terra, que é nossa antes dos brancos chegarem. Como nós vamos viver na terra estragada?

O governo do Brasil precisa ter respeito pelos povos indígenas. A mineração só vai enriquecer as grandes empresas e os garimpeiros, nós índios vamos ficar pobres. Nós não queremos o dinheiro da mineração, nossa riqueza é o mato, o rio limpo, nossas roças, nossas frutas, nossos remédios, tudo o que existe na nossa mata. Essa é a nossa riqueza.

Se o governo quer mineração, pode fazer num outro lugar, na terra dos fazendeiros e dos políticos, na nossa terra nós não queremos mineração.

Caciques da Terra Indígena Kapoto-Jarina:

Ropni Metyktire
Iodji Metyktire
Pekan Metyktire
Jabuti Metyktire
Ndokere Tapajuna
Katàptire Metyktire

terça-feira, 14 de agosto de 2007

As mercadorias e seu (vasto) universo

Ontem estive mais uma vez com Aldenira, a avó do Irineu, filho Kaxinawá do Terri (ver “Almoço Kaxi”). Aldenira, como toda mulher Kaxinawá, é uma tecelã. Com fios de algodão coloridos, as tramas dos kenê (formas geométricas, todas nominadas e relacionadas à mitologia dos Kaxi) formam e estampam redes, camisas, bolsas, faixas. É uma beleza.

Tradicionalmente , o algodão é plantado e tingido nas próprias aldeias, mas hoje já se utilizam linhas industrializadas (como as para crochê) coloridas. A princípio pareceria uma violação cultural. Mas não pode estar este novo elemento (o industrial) potencializado a própria tradição, seja aumentando matéria-prima disponível para trabalhar (sem substituir o processo tradicional), seja aumentando encomendas para as mulheres (e uma fonte de renda)? Essas e outras são possibilidades.

Bom, sou da turma que acha que os efeitos do capitalismo global sobre comunidades nativas devem ser repensados, e que devemos escapar de conceitos e termos como “aculturação”, “dominação”, “submissão ao capital” e outras terminologias afins. Com uma turma da Ufac, de Sociedade e Meio Ambiente, há pouco tive a oportunidade de reler um maravilhoso texto do Marshall Sahlins (1988) sobre a expansão do capitalismo no Pacífico. A partir dos casos da China, Hawai e Canadá, ele mostra, entre outras coisas, como estas sociedades impuseram aos ávidos agentes do capital, que chegavam a seus portos com recursos materiais e financeiros, sua própria leitura sobre o que estava de fato ocorrendo. E ainda a apropriação cultural inusitada para nós, “brancos”, daqueles mesmos recursos, que muitas vezes serviram para incrementar costumes e crenças nativas. A história mundial e, por que não dizer, do capitalismo fica enriquecida e matizada de colorações inusitadas. A incerteza da realidade é fonte de esperança – foi uma das morais da história que tirei para mim.

Esta volta é para chegar novamente na Aldenira. Um pouco mais de paciência, já estou quase lá. Agora, com a mesma turma da Ufac, estou lendo um capítulo de um livro do antropólogo Cesar Gordon, do Museu Nacional da UFRJ, sobre os Xikrin do Cateté, um dos grupos Kayapó existentes. Quando Cesar chegou lá, ficou bastante surpreso quando viu os índios totalmente interessados nos mundamos assuntos do dinheiro e do consumo de bens industrializados. Como entender tudo aquilo? Li só o primeiro capítulo, mas é bem interessante, e ele sugere que há um “sentido indígena” em toda aquela apropriação da modernidade.

E aí chegamos na Aldenira. Encomendei a ela camisas Kaxinawá, e para tal comprei as linhas que ela me indicou e também na quantidade por ela especificada. Na hora de acertarmos o preço, ela me deu o valor. Não tinha dinheiro trocado. Fomos então trocar o dinheiro. Ela logo sugeriu uma farmácia, e logo falou de um shampoo que estava precisando. Ok, entendi a mensagem, vamos lá. Ela parecia não muito à vontade na farmácia que entramos, não entendi bem por que, mas olhou os shampoos, sempre conferindo seus cheiros. Logo ouvi a palavra “condicionador”. Eu olhava para os preços e a nota que tinha na mão: daqui há pouco não conseguiria tirar o troco necessário para as camisas... Um pote de creme chegou a ser cogitado por ela, mas fiz ouvidos de mercador (o dinheiro não ia dar, justifiquei internamente). Compramos enfim um shampoo e condicionador, e o troco foi o justo para as camisas.

Logo que saímos da farmácia, andamos um pouco e ela: “Ah, era aqui que eu queria ter vindo!”. Olhei e numa vitrine da farmácia quase ao lado havia uma prateleira incrivelmente sortida de potes coloridos e de diversos tamanhos, todos produtos para os cabelos. Despedi-me dela sem saber o que pensar, mas pensando um pouco. Estiveramos o tempo todo numa barganha, muito sutil, ao menos para mim, pois não direta. Ainda estou na dúvida se entendi os termos de toda negociação que estivemos fazendo, temo que não. Torço para não ter desagradado minha parceira em nossa primeira troca ritual!

sábado, 11 de agosto de 2007

Um txai na academia


Pessoal, na última quarta-feira, dia 8 de agosto, o Txai Terri esteve na Ufac. Convidei-o para uma conversa com a minha turma de "Antropologia do Brasil Indígena". Queria muito que os alunos tivessem contato com Terri, personagem histórico e atuante do indigenismo acreano. Em quase todas as Terras Indígenas criadas neste estado, que hoje somam 34, Terri esteve de alguma forma presente.

Para quem não sabe, trata-se de uma história recente, dos anos 70, quando, conforme contou-nos Terri, o então governador Geraldo Mesquita enviou uma carta ao presidente da Funai em Brasília informando-o que comprara um seringal em Feijó, as margens do rio Envira, e lá deparara-se com índios. O governador alertava que estava havendo muita venda de terras no Acre para grupos do sul do país, consequentemente mudanças na estrutura fundiária - o que fazer com a situação dos índios? A Funai nem ao menos os conhecia...

Ora, nesta época nosso Txai estava em Brasília, fazendo o seu mestrado na UnB. Terri saira de Rio Branco, capital do Acre, ainda adolescente, com uma bolsa de estudos do governo, estudara em colégios jesuítas e fizera sua graduação na PUC carioca. Para custear seus estudos universitários, já sem o apoio financeiro do governo, trabalhou como professor de matemática. Depois foi para Brasília, pensando em estudar Sociologia, muito influenciado por sua formação religiosa (queria algo "social"), pelos colegas de graduação (com quem aprendeu muito, ressaltou) e também pelo interesse pelo "outro", algo que o fascinara desde que, recém-chegado ao Rio, sentira-se um autêntico estrangeiro na cidade. Queria também, ao invés de uma Sociologia urbana, algo que o levasse a locais menores, que o levasse a conhecer este "mundão de meu Deus" que é o Brasil.

Pois bem, lá na UnB teve contato com etnólogos, entre eles o renomado e recém-falecido professor Roberto Cardoso de Oliveira e sua teoria da "fricção interétnica", principal instrumento teórico e metodológico então usado para abordar a questão do contato entre brancos e índios, e que o Terri aparece explicando para os alunos na foto acima.

Voltando a carta do governador Geraldo Mesquita, de 1974, a Funai terminou por instituir diversas equipes de pesquisadores para realizar, como definiu Terri, uma espécie de censo indígena no Acre. Parece meio absurdo, mas o fato é que até os anos setenta havia um desconhecimento quase que total dos índios no estado. Não se sabia quantos eram, quem eram, onde e como viviam. Nosso txai então voltou à terra natal e foi percorrer os rios Envira, Tarauacá e Jordão.
Aí começa uma longa história, de amor pelos altos rios e sua população de gente simples e amável; e de indignação por sua situação de ausência de direitos. Terri não teve como escapar, e os Kaxinawá do Jordão - local que o encantou particularmente pelo "seringal de caboclos" que lá encontrou, chefiado pelo velho e saudoso Sueiro - são grandemente responsáveis pela adesão a causa indígena deste valoroso soldado.

Assim, a partir de 1976 começaram as identificações de Terras Indígenas no Acre. Naqueles anos, inclusive, lembrou Terri, ele chegou a trabalhar na Ufac num dos cursos de extensão, levando alunos para conhecer índios. Enquanto fazia esses trabalhos - de identificação e de extensão - Terri aproveitava para fazer suas pesquisas acadêmicas, e defendeu seu mestrado em 1977. Nesses períodos de campo, seus amigos Kaxi do Jordão pediram-lhe que ele os ajudasse de alguma forma a garantir para si uma terra.
- "Mas eu sou um estudante, que posso fazer?", respondeu. Mas logo refletiu: "posso eu me recusar a ajudar?". Inspirado por um livro de um missionário cheio de imagens do artesanato Kaxinawá, propôs: por que não juntar uma grande coleção de artesanato e vendê-la na cidade, à Ufac? E assim foi feito. Uma grande exposição acabou sendo montada na capital, e um pequeno museu constituído na universidade.

Neste período, o Acre era (na verdade ainda é, mas de uma maneira diferente) muito agitado: havia o jornal Varadouro, uma igreja atuante pelos direitos dos despossuídos, a Funai se instalando. Tudo isso, e outros fatores mais, resultaram numa visibilização dos índios e seus líderes, e não havia mais como negar: havia índios no Acre! Bom, aí começa um importante capítulo no Vale do Juruá em particular, com a criação das primeiras cooperativas para fazer frente aos patrões de então, e também a criação da própria Comissão Pró-índio do Acre. No final dos anos 80, os seringueiros do Alto Juruá, quando lutaram por sua Reserva Extrativista, muito se beneficiaram de toda esta experiência pré-existente.

Foi um longo papo este com o Txai Terri. Ele falou por quase duas horas, e cada vez tinha mais coisas a dizer... É assim com gente que tem o que contar, que viveu de perto para contar de certo. Ah, registro ainda que nossa palestra contou com a ilustre presença do Irineu, o filho Kaxinawá do Terri, que já foi apresentado em postagem anterior. No final, já indo pra casa, 124comentei com Terri: você devia escrever um livro contando toda essa história...

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Livro de Jó- segunda leitura

O segundo ciclo de discursos do Livro de Jó trouxe-me a imagem de um duelo. Um duelo de idéias, de razões, de interpretações da Lei Divina, entre nosso protagonista central e seus visitantes (os três amigos que vieram solidariamente visitá-lo: Elifaz, Sofar e Baldad).

Após as queixas de Jó contra Deus e o desejo manifesto de morrer (que encerrou a primeira postagem), Elifaz o repreende duramente afirmando-o inspirado pela culpa e denunciado por suas próprias palavras (“as culpas te inspiram as palavras”). As pretensões de Jó em verdade seriam astuciosas. Elifaz introduz o tema do ímpio, aquele que não tem fé, que é herege, que blasfema, em torno do qual os diálogos deste ciclo girarão. Fala do destino do ímpio, que será sempre desgraçado, sua linhagem “estéril” e mais outras coisas terríveis.

Jó retruca ironicamente, mas também revoltado: “Isso já ouvi mil vezes, sois todos consoladores importunos!” Parece dizer para os outros que “pimenta nos olhos dos outros é refresco”. Em seguinda, “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come” quando diz: “Se falo, não cessa minha dor, se me calo, acaso se afastará de mim?”. Acusa de ímpios os que o acusam, e protesta sua inocência: vivia tranquilo quando foi esmagado, diz. Tudo é bem dramático, e ficamos quase sem saber o que pensar. As palavras de Jó são intensas e fortes. Vejam esta passagem: “Meu rosto está vermelho de tanto chorar e a sombra pesa sobre minhas pálpebras, embora não haja violência em minhas mãos e seja sincera minha oração”.

Vou lendo e ficando sem saber o que achar, pois os amigos lhe dizem dos ensinamentos que ele deve estar recebendo com todo aquele sofrimento, que ele deve sim ter alguma culpa, que ele não deve negar isso, pois assim agiria como um ímpio. Mas Jó não cede, ele não aceita, protesta inocência, afirma-se um justo e sua perplexidade diante dos castigos que Deus lhe envia. Suas falas são, com efeito, dramaticamente densas.

Mas os amigos (agora já nem sei se são tão amigos... esta história está me deixando confusa e num suspense bom...) retrucam, e voltam a carga com a senda espinhosa e amaldiçoada do ímpio. Jó mais uma vez explode num belo discurso (não há como não admirar): “Até quando continuareis a afligir-me e a magoar-me com palavras? Já por dez vezes me insultastes: não voz envergonhais de maltratar-me? Se de fato caí em erro, meu erro só diz respeito a mim. Quereis triunfar sobre mim, lançando-me em rosto minha afronta? Pois sabeis que foi Deus quem me oprimiu, envolvendo-me em suas redes!” (o grifo é meu).

Bom, chega a vez de Sofar, que volta a carga com o tema dos ímpios, dizendo como eles são desgraçados. Jó então resolve tratar o assunto no encerramento deste ciclo de discursos (e desta postagem). E aí fala de algo que, confesso, já tinha pensado lendo os discursos (e lembrando de uns personagens da nossa elite nacional). Pois seus amigos sempre dizem que os ímpios são os mais desgraçados dos homens, que suas vidas são miseráveis etc, e aí Jó começa a fazer perguntas como “por que continuam a viver os ímpios e, ao envelhecer, se tornam ainda mais ricos?”, fala da impunidade desses malfeitores, de sua morte serena e mesmo fama póstuma. “Por que, pois, me ofereceis essas vãs consolações, se nas vossas respostas não há senão falácia?”. Assim termina o segundo ciclo...

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

A imagem de uma flor


A imagem de uma flor, fresca, vivaz, espontanea.
Ainda hoje me emociona – esta lembrança das tuas palavras.

A imagem de uma flor machucada traz toda delicadeza da situação.
E a ansiedade do meu coração – feri-me com meus próprios espinhos!


(Salomé de los Rios)

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

O rio

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.

Manuel Bandeira (1948)

domingo, 5 de agosto de 2007

Almoço kaxi


Sábado fui almoçar com a família Kaxinawá do Terri, lá na casa dele. Comi uma deliciosa tilápia assada na brasa, macaxeira cozida e um suco de cajú natural. Comi que me fartei! A Socorro, nora da Aldenira, fez um cafézinho no jeito. E ficamos por lá batendo papo, aquela conversa boa do Txai, que é só dele, feliz de quem priva dela. Considero-me uma felizarda.

Após muitos anos pude rever o Irineu (de blusa azul na foto), filho do Terri, hoje com 15 anos, que mora lá no Jordão. O Irineu, um jovem tímido mas com jeito de quem gosta de conversar, é filho do Terri com a Maria, uma das filhas da Aldenira (esta bonita senhora na foto) e do Getúlio. O Getúlio só conhecia de nome, agora já sei contar de certo. Estava lá também o Avelino, filho do Getúlio e Aldenira. A casa estava tão gostosa com aquela turma ali junto. Pessoas finíssimas, daquelas que a gente fica feliz de conhecer e ficar junto. Saí de lá no início da noite.

Obrigada, Terri, por esta tarde tão agradável e que alegrou o meu sábado! Viva os Kaxinawá!!!

sábado, 4 de agosto de 2007

Livro de Jó - primeira leitura

Estou lendo o “Livro de Jó”, que conta a história deste homem, popularmente conhecido por sua paciência (paciência de Jó, se diz). Por indicação, e reconhecendo o valor da paciência, virtude das mais difíceis de cultivar, lancei-me à leitura, que vou tentar comentar neste e em futuras postagens.

Tido por todos e por ele mesmo considerado afortunado e justo, tudo segue bem até o dia em que sobrevém a Jó inúmeras desgraças. Perde tudo, bens e filhos; adoece de chagas indescritíveis. Mesmo incitado pela esposa, recusa-se a mal-dizer Deus: “O Senhor deu, o Senhor tirou, bendito seja o nome do Senhor”. Sabendo de sua situação, três amigos – Elifaz, Baldad e Sofar – o vêem visitar e com ele estar, confortá-lo. Passam inicialmente sete dias e noites em silêncio com ele, “vendo como era atroz o seu sofrimento”. Até que uma série de discursos tem início, deles e de Jó.

Estou neste ponto, lendo o primeiro ciclo de discursos, que são lindíssimos. Jó lamenta-se, mal-diz o dia do seu nascimento, vacila: “Sucede-me o que mais temia, o que mais me aterrava, acontece-me. Não tenho sossego nem paz, não tenho descanso; sobrevém-me a pertubação”. Seus amigos então tentam confortá-lo, incutir-lhe esperança e fé, fibra e firmeza para suportar o que presentemente passa. Mas Jó retoma a palavra, e a sensação é que todo o desalento que dentro dele há vai aos poucos, e cada vez com maior intensidade, ganhando voz. “Por que não perdoas meu delito e não deixas passar a minha culpa?”, roga e implora.

No ponto em que cheguei, Jó finalmente queixa-se de Deus, e pede explicações do que contra ele pode o Senhor ter. É nítido que se sente injustiçado. “Acaso te agrada oprimir-me, desdenhar a obra de tuas mãos, e favorecer os desígnios dos ímpios? (...) Tuas mãos me formaram e me modelaram em todos os pormenores, e agora queres aniquilar-me?”. Pede então para morrrer.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Sem título


Mura e Mari
Mari e Mura
Dois no Alto Juruá

Lá no alto do morro
Na casinha de madeira

Na noitada de ayahuasca
Com os índios em roda
Também na aldeia
Na festa da caiçuma

Energia masculina e feminina
Sol e Lua
Cipó e macaxeira

Mura fala do muro
Mari diz:
sem picaretas ou britadeiras,
tentemos com suavidade...

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

A grande família


Esta é uma postagem doméstica, da turma que mora aqui comigo, uma família que teve sua origem há quase três anos com a chegada da Luna (mais ao fundo na foto), presente dos amigos Marcus, Cila e Helena. Um belo presente. Há pouco mais de um ano, achei que ela andava meio sozinha demais, eu viajava e ela ficava aqui só. Nesta época havia dois gatos na casa, mas a interação sempre foi meio tensa (até que este ano eles foram encaminhados a novos donos...).

Pois bem, em maio de 2006, entrei numa petshop bem fuleirazinha, onde me disseram que havia filhotes de pastor. Numa gaiolinha lá estava um casal de irmãos. Fiquei com o macho, numa loteria total: não sabia se era pastor mesmo, não conhecia os pais, que natureza tinham (pois cachorros tem naturezas diversas: bravos, desconfiados, dóceis etc). Alecrim veio pra cá com pouco mais de um mês. Luna e eu o criamos, e ela foi exemplar (como sempre). Ele adoeceu, foi internado, depois voltou pra casa; as orelhas demoraram séculos para levantar e eu no meu íntimo começava a achar que estava diante de um vira-lata simpático e disfarçado. Mas, vejam, Alecrim virou um pastorzão, imenso, amoroso e divertido.

Em fevereiro deste ano, Luna já no quarto cio "virgenzinha da silva", todos diziam: "não vai rolar, Alecrim é muito novo, nem um ano, sem chance de rolar uma ninhada". Pois bem, nasceram sete filhotes, três machos e quatro fêmeas. Todos foram encaminhados... mas um voltou: é o Urso, o menorzinho da foto. Acabou ficando, foi ficando. Chegou num momento singular, e de repente estava tão integrado que sua saída seria sentida por todos nós.

Luna, Alecrim e Urso - a grande família aqui de casa. Brincam, brigam, bricam, brigam - e assim vamos levando. Sim, porque eu integro a trupe, alimentando-a, trocando a água, afagando-os e sendo afagada, dando broncas, separando brigas. Para os indecisos, recomendo, é uma convivência estimulante, cheia de desafios e novidades, e muito afeto.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Cadê a madeira?

Na floresta, diria o bom observador. Ou nos caminhões de tora que cada vez mais se tornam comuns, diria um segundo bom observador. Mas para onde vai a madeira que passa em cima desses caminhões?

Pergunto porque passei a tarde de hoje com três amigos (a Gisela, o Joca e o Antonio) percorrendo algumas madeireiras do Pólo aqui de Rio Branco e, acreditem se quiser, madeira é artigo raro. E isso em pleno verão, quando é favorável transportar as toras já que os ramais e estradas de terra estão transitáveis. Encontramos, via de regra, cumaru e cumaru-cetim, madeiras conhecidas por sua dureza e peso. Como fazer um forro de cumaru? Corre o risco do telhado cair...!

Um dos empresários com quem conversamos atribuiu a responsabilidade pela falta de madeira à morosidade burocrática de liberação de licenças de extração e transporte. Visitamos uma outra, com um pátio imeeeenso, e vazio. O dono disse que este ano provavelmente não vai nem operar. Ouvimos de um funcionário de uma outra madeireira que havia sim outras espécies, mas para exportação para fora do estado. De outras pessoas, também contruindo ou fazendo obras, já ouvira esta resposta. Mas e o consumidor local? Ah, sim, cumaru e cumaru-cetim... e o forro continua sem solução. Bom, algumas pistas então para a pergunta inicial: ou a madeira está em pé, ou lá no canto onde foi derrubada, ou aguardando para ser exportada.

Maior calor, a gente pra lá e pra cá, e nada de madeira. Tentamos um sorvete pra refrecar, mas a marca era de fundo de quintal, o gosto duvidoso. Ok, não tem madeira para os moradores e consumidores do estado com uma das maiores coberturas florestais; o estado que pretende ter neste seu patrimônio natural um de seus principais produtos comerciais. Num certo sentido, pode-se pensar, é até coerente: governo da floresta não deixa arrancar a floresta! Ah, mas seria bom demais pra ser verdade... embora o forro fosse continuar sem solução. Tudo bem, faz a casa sem forro - a floresta merece isso e muito mais.

Mas, não sejamos tão radicais. Afinal, uma casa de madeira, naturalmente climatizada, é muito mais coerente do que cimento, brita, areia etc etc - materiais que vem todos de fora do estado, gastando combustível e poluindo a atmosfera. Ah, mas e a madeira manejada? Certificada? Ora, claro que já pensáramos nisso, aliás foi a primeira coisa na qual pensamos. E de preferência comunitária. Tentamos a Cooperfloresta, uma cooperativa de produtores comunitários de madeira manejada e, parte dela, certificada pelo FSC.

Bom, há alguma possibilidade de conseguir adquirir parte do que precisamos junto a Cooperfloresta, em especial uma madeira cujos planos de manejo já estão aprovados. As demais áreas, em especial a da Reserva Extrativista Chico Mendes, enfrenta ainda esta etapa junto ao Ibama. Mas o mais interessante de tudo, para não dizer dramático, é a situação atual da Cooperfloresta e seus demais sócios, que têm, junto ao orgão ambiental estadual, 46 pendências a sanar... Entre elas, pérolas como exigência de ITR das áreas ocupadas pelos produtores comunitários, que vivem em unidades de conservação nas quais não se paga ITR...