sexta-feira, 11 de julho de 2008

Amanhecer a Latour


Quero falar mesmo é do amanhecer. Aquela hora em que o céu clareia e um novo dia começa para quem acorda cedo (e para quem acorda tarde também, pois quando acorda sabe que o dia já vai longe). Acordar, abrir os olhos, se espreguiçar e sentir-se acompanhado pela presença calorosa do sol – é um aconchego.

(Vou resistir a tentação de esbravejar e dizer que agora acorda-se, espreguiça-se, mas sair da cama já não é tão fácil: não encontramos o sol no céu, e sim a noite nas suas últimas despedidas. E que já não dá para cantarolar aquele hino do Mestre que diz “seis horas da manhã, eu devo cantar, para receber a meu Pai Divinal”. Vou pular esta parte e voltar para o aconchego, ou melhor, para o astro nosso rei. Em tempo: sempre é possível, às sete horas do horário “oficial”, lembrar que na verdade são seis e cantar o hino; e ainda lembrar que lá no Alto Santo, o fuso permanece solar.)

Hoje estive conversando com uma amiga que dizia que o sol não nasce, nós é que vamos em direção a ele, já que ele está no seu lugar, reinando, e a Terra que vai girando e a ele nos mostrando. Tem hora que mostra um lado do planeta, tem hora que mostra o outro; assim tem-se o dia e a noite. Tá certo, o sol não nasce. Mas é também um modo de dizer, de ler a natureza, de dar sentido cultural-espiritual-estético a um evento natural. O assunto é interessante, vamos a ele.

É uma prova de que, ao contrário do que costumamos achar, a sociedade e a natureza não são coisas tão estanques assim; elas vem juntas num só pacote. Não há um sol externo, transcendente, acima de todos, com uma verdade própria e independente de nós – embora assim também ele exista; quanto à sociedade, não somos nós que a produzimos independentemente de tudo, numa imanência – embora também seja assim. Afinal, o que é e o que não é? O que é o quê? Justamente aí é que mora o perigo: nas coisas que “definitivamente” são e não são.

Assim é o pensamento ocidental: separa as coisas, especializa, as purifica, você para cá (por exemplo, os fatos da ciência) e você para lá (respectivamente, os fatos da política). Mas basta ler um jornal com Bruno Latour, ou mesmo prestar atenção nas conversas do dia à dia, para constatar a abundância não de “purezas”, mas de híbridos, de misturas. Você começa a ler uma matéria sobre o milho trangênico (um feito científico), e logo passa para os interesses (econômicos) da Monsanto, para o papel (político) da CNTBio e do MMA, para as políticas protecionistas dos países do Norte, para a fome nos países do Sul (estamos em plena geopolítica!), e para o direito do consumidor de saber o que ele está comprando nas prateleiras do supermercado. Misturou tudo. Relações foram estabelecidas, muitos agentes entraram na história, cada um fazendo links – e ao final há uma rede tecida e sempre pronta a ter pontos desmanchados e outros acrescentados. Separar “alhos dos bugalhos”, digamos, é um artificialismo sujeito a mil contradições.

Tentemos agora voltar ao amanhecer.

Quando falamos do sol, ou pensamos nele, o fazemos de determinada forma, estabelecemos relações várias. Por exemplo: sol-nascimento-luz-despertar-trabalho. Assim, o sol não é apenas um astro do cosmos, uma estrela, embora o seja, claro, mas sua natureza é híbrida, ou melhor, sua natureza é cultural e sua cultura é natural. Naturezas-culturas, são o que existem neste mundo, e não culturas, afirma Latour, pensador ousado. Pressinto (a ficha ainda não caiu) que nos seus escritos há uma alternativa a toda esta sensação de que nós, ocidentais, somos um desastre; há uma saída que não é apenas uma mea culpa. É... mas do que falávamos? Ah, sim, do sol!

Ao falar do sol, chamo em meu auxílio uma rede de fatos outros, a ele conectados, por mim ou por outros, e se tenho consciência disso toda a ilusão de pureza se desfaz. Posso falar que o sol nasce, ou que eu vou na direção em que ele está – são opções que não tem a ver apenas com o fato natural do sol, mas com conhecimentos e sentimentos vários. Antes de Copérnico e Galileu, era a Terra que ficava parada. Hoje sei que não é assim, mas, interessante, quando falo que o sol nasce parece que é a antiga concepção de que o sol se mexe e nós não que está operando; talvez uma concepção antropocentrada demais, pensando bem. Quando falo que eu vou em direção ao sol, talvez esteja sendo mais fiel ao movimento físico que de fato tem lugar, mas faço esta opção não apenas por causa deste conhecimento. Nesta decisão há uma concepção de vida envolvida, que por sua vez pertence a uma rede ampla de sentimentos, crenças e outros tantos conhecimentos.

Meu ser anseia por acordar com o sol (como se ele acordasse...).

4 comentários:

Anônimo disse...

Nos primeiros dias até que foi tudo bem com o novo fuso. Mas agora meu relógio biológico, confuso, começa a se queixar. Não sei o que dizer à ele. Nem às crianças.Só lamento o abuso.

Anônimo disse...

Esse jeito de fazer as coisas...
Mariana vem falar do sol... mas me peguei mesmo foi na história do horário. Não tinha idéia que meu relógio biológico também sentiria tanto, carioca que sou, habituada com o horário de verão. Mas senti...
E senti também nos meus direitos...
Senti no coração de cidadã que não foi ouvida...
Ah esse jeito de fazer as coisas... a política da autoridade...
Foi assim com o horário, é assim com tanta coisa... e tem tantos outros assuntos polêmicos... serão tratados desse jeito??
Hoje decidi que vou eleger meus candidatos pelo que pensam, mas também pelo jeito de fazer o que pensam...

Anônimo disse...

Comadre,
Adorei a reflexao!
Sinto assim como vc dissse, que o sol nasce e morre todo dia. Mas o que vc esta lembrando com Latour, Copernico e tudo, é que na verdade nos é que nascemos e morremos a cada dia, né? Quando nos afastamos e nos aproximamos da luz do sol, que nos da a vida na Terra. Talvez seja mesmo um bom exercício a gente lembrar disso, Pois tb a vida da gente flui assim em uma alternancia de dias e noites, internos e externos, E tb em uma escala de estacoes, Veroes, invernos, primaveras, internas e externas, até a passagem da vida na Terra pra outra dimensao, que a gente nao sabe se alterna assim, ou se é mesmo a tal "vida eterna", né?
bjssssssss

Anônimo disse...

salve

viva o povo
mais forte são os poderes do povo...

que bom voltar no latour
genial a sacada que usamos até o sol e os fusos para fazer política

de fato superar as nossas divisões internas/externas rumo à multiplicidade é um dilema cada vez mais imediato

veja essa de um documento do governo lula

em todas as regiões do país os indios tem sido assediados, em virtude da falta de alternativas, por agentes do modelo de desenvolvimento econômico predador

é de chorar...

os processos de naturalização, de ocultação de pressupostos são a arma conservadora mais poderosa que o grande irmão tem para nos controlarmos a nós mesmos uns aos outros e a si mesmos

hoje veio um estudante de pedagogia querendo pesquisar
sugerimos que entrevistasse um professor
em suas perguntas 'improvisadas' percebia-se claramente que o estudante não se conformava com a ausência de instâncias de controle que ela considera imprescindíveis para o funcionamento da educação

pra misturar ainda mais você acredita que a nossa ignorância é tão grande que só essa semana soube que os gringos passaram dois presidentes
suas mortes ficaram como acidentais ou naturais

cada vez mais naturalizamos processos que nos colocam travas e medos, que por serem naturalizados não temos como proceder sua resistência

naturalizamos como forma de controle
é o nosso processo conservador de produção de discursos competentes de dominação
sempre visando à convergência, aos consensos e unanimidades
monismo cientificista dos militares positivistas versus e multiplicidade libertária dos construcionismo anarquista

de um lado a história da naturalização [a tradição metafísica de nosso materialismo] de outro a naturalização da história [nossa universalização da consciência]

e por aí vai
inté
amilton