segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Identidade da pele

O último dia do Simpósio e Colóquio (dia 17) que ocorreu na UFAC (ver postagem anterior) foi emocionante. Às 14 horas ocorreu uma mesa que contou com duas presenças ilustres, embora até então desconhecidas aqui: o professor Juracy Marques, da Universidade Estadual da Bahia, e Jô Brandão, maranhense de nascimento, liderança negra e feminina do Conselho Nacional Quilombola. O tema era “Movimentos Sociais e Identidades Negras”. Ainda estou mastigando as instigantes questões que foram levantadas por Juracy e Jô. Este tema – o da “identidade”, o da auto-definição – está no centro dos meus atuais interesses, estou lendo sobre e ministrando uma disciplina na UFAC com este nome.

– “O que é ser ‘negro’?”, perguntou Juracy, provocando: “cor da pele é suficiente?”. Ou seja, é “negro” quem tem a pele negra? Bom, aí entra-se numa seara bem interessante, de quem se considera e não se considera, e de quem é considerado ou não. Casos foram relatados, como o do feirante que quase agrediu Jô por ela se definir como “negra”, enquanto ele [feirante], cuja pele tinha a mesma cor, afirmava-se “moreno”, ou melhor, não se considerava “negro”. O caso das cotas também foi tratado: como dizer se um aluno candidato é ou não negro para se incluir no programa? É ele que diz que é? Ou diz-se se ele é ou não? Jô defendeu as cotas, argumentando que elas estabelecem o debate da desigualdade e que não se trata de privilégio, e sim “de nivelamento de oportunidade”. – Por que temos tanto medo da diferença?, indagou. Afinal, as cotas trazem a diferença e a desigualdade para a cena principal.

O Brasil é signatário da “Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tradicionais”, que estabelece que o critério relevante é a auto-definição, é esta autonomia de dizer-se ao invés de ser dito. Os artigos constitucionais que garantem os direitos indígenas incorporaram, depois de muita briga e da participação importante de antropólogos e sua associação (a ABA), a formulação de que ser índio é uma questão de auto-determinação. Contudo, com relação aos quilombolas, a determinação legal mais recente (Instrução normativa 49, deste ano) está sendo considerada um retrocesso, em especial porque outorga, de acordo com Jô, ao Estado a identificação de grupos como quilombolas ou não. Parece que agora, antes de ter qualquer direito assegurado, uma perícia antropológica tem que ser feita e concluir que, sim, trata-se de quilombolas, ou não, não é o caso. Não é mole não esta vida de quilombola, e do antropólogo “perito de identidade”, como diz o Eduardo Viveiros de Castro.

Juracy mostrou com sua exposição, recorrendo aos intelectuais ditos “da diáspora” (africanos, indianos, que saíram de seus países, foram estudar nos grandes centros colonizadores e passaram a refletir sobre a realidade e dos processos vigentes em seus países, ex-colônias), que a auto-definição de “negro” pode conviver com outras, como a das populações que, além de negras, são “pescadores artesanais” e não detém títulos válidos de propriedade do local onde vivem, ou seja, são “posseiros”. O “ser negro”, disse, é algo que se constrói em processos político-organizativos. Assim, se bem entendi, ser negro teria uma dimensão política inegável, mas não necessariamente seria excludente de outras formas de auto-identificação dado o caráter de rede das relações sociais nas quais as pessoas transitam (pescador artesanal-negro-posseiro).

Mas a Jô, senti, estava disposta a colocar o dedo na ferida e na sua fala a questão racial, ou étnica, veio para o centro do debate. “A questão é raça”, não dá pra fugir, argumentou, “o racismo é escancarado”. Ela deixou claro que para o movimento quilombola, ou o movimento negro, ser “negro” é uma questão de pele sim. A sociedade assim o coloca, e as leis também. Não se pode esquecer, lembrou Jô, que a história das populações negras no Brasil remete ao continente africano e também aos processos de incorporação (escravidão) e resistência (quilombos-território-política, terreiros-religião). Então, tem uma conexão aí entre raça, terra e religião, tudo isso numa arena política que exige bons guerreiros. Foi muito bonito o momento de abertura da fala da Jô, em que ela, antes de tudo, agradeceu aos seus ancestrais e convidou-nos a ficar de pé e, com ela, cantar para Oxalá, o dono do dia (sexta-feira). Aberto e consentido o trabalho, ela pôde então trazer sua contribuição forte. Não sei se entendi tudo, mas ficou-me gravada uma fala de um ponto de vista de quem está num campo político-racial.

Minhas idéias sobre identificação étnica andam por outras praias, mesmo porque debruçadas sobre populações indígenas. Mas fiquei pensando na diferença que há entre o que por vezes refletimos na academia e o que é dito pelos agentes políticos. Como fazer este diálogo em torno de temas tão candentes? Como argumentar, por exemplo, numa situação de perícia técnica indigenista, frente ao Estado e aos próprios atores indígenas interessados em legitimar seus pleitos, que a auto-identificação étnica envolve devires outros que a auto-identificação "sou índio” (algo que se cria quando tem o outro que é “branco”)?

2 comentários:

Noé disse...

Boas observações.
°O que parece simples para quem faz parte da maioria e/ou dominante, é muitas vezes complexo e difícil para quem é parte da minoria e/ou não dominante.
°O que pode parecer uma luta chata e cheia de mesmice para um branco é inúmeras vezes apenas uma batalha para o negro, o índio,o japonês etc.
°O que a maioria já esqueceu e a minoria busca aprender é apenas o começo da trilha de resgate da dignidade da minoria: o valor do indivíduo, não importa quem, onde, como ou quando seja.

Cesário disse...

Estava vagabundeando, como bom vagabundo que sou, no mundo paralelo das mentes humanas que acreditam abstrair a realidade, ou será surealidade ou quem sabe apenas irrealidades acredito que um pouco de tudo e de tudo um pouco rsrsrsr, inocentes apenas constroem suas realidades individualmente, descobri realidade um tanto interessante, é impressionante gente atarefada nunca tem tempo para descobrir as verdadeiras coisas interessantes, estava oculta em meio a diversas suposições de verdade, gostei, mas acreditei que a sua seria algo mais digamos.... abstrato, pensando bem o que é concreto e o que é abstrato, somos seres concretos tão abstratos que isso chega a confundi minha cabeça ?!?!, São engraçadas as definições étnicas, lembro bem dessa problemática em suas aulas, porque o homem complica tanto, desculpa se estou sendo muito simplista, mas isso não importa, o debate é somos diferentes e devemos aceitar isso, diferentes e iguais, isso é legal de debater, primeiro iguais enquanto sistema fisiológico, espécie, depois diferente enquanto sistema cultural, nem maior nem menor, igual é diferente.