sábado, 20 de outubro de 2007

Nova morada


Na vila Restauração, e ao longo de todo rio Tejo, e também do Juruá, e, enfim, de toda Reserva, o povo está de casa nova. São as casas do crédito-moradia do Incra. Já em janeiro de 2006, quando voltei a Reserva após uma longa ausência, me chamou atenção as casas que agora via coloridas nas margens do rio, todas de madeira serrada e cobertas de alumínio – materiais exigidos no contrato assinado pelos beneficiários. As casas tem mesmo uma metragem padronizada, mas muitos moradores investem recursos próprios e modificam o projeto original. É assim que surgem casas fartamente avarandadas, ou de dois andares, ou internamente muito amplas. Economiza aqui e ali, estica lá e cá, pronto, a casa dos sonhos está pronta! A do Bé e da Bia (ver acima), um jovem casal muito bacana, tem a varanda assoalhada com ripas de paxiúba, uma palmeira tradicionalmente utilizada no assoalho das antigas casas de seringal. Na postagem anterior há fotos destas casas na vila Restauração.

As novas moradias são unanimamente saudadas como algo positivo, uma melhoria. Poucos são os moradores que ainda não acessaram o seu crédito-moradia, quer dizer, dos que estão cadastrados. O fato é que tem sempre novos candidatos aparecendo, em geral os filhos e filhas que vão se casando e querendo sua própria casa. Observei também um movimento de filhos e filhas, netos e netas, morando em municípios vizinhos e aproveitando o crédito para construir sua casa na Reserva e para lá retornar. Mesmo jovens que vi indo para Cruzeiro do Sul planejavam construir sua casa na Restauração, passar uns tempos na cidade trabalhando, e voltar para junto dos parentes. Interessante esses movimentos todos, e como as pessoas se apropriam das políticas públicas para viabilizar seus desejos e projetos.

Mas como nem tudo é perfeito, o outro lado da moeda sempre aparece. Uma queixa corrente é a falta de controle com que as madeiras para construção das casas foram extraídas. Ou seja, o impacto ambiental de uma política governamental desta natureza e dentro de uma Unidade de Conservação. Comenta-se que houve muito desperdício, que há muita madeira derrubada da qual utilizou-se apenas parte, ficando o restante na mata, apodrecendo, virando “paú” (adubo). Pude ver alguns desses pedaços quando andamos (meu compadre Pedro, Murilo e eu) até o paranã do Machadinho, mais acima no Tejo. Mesmo ali no campo de futebol da Restauração havia uma samaúma imensa, que hoje jaz no chão, quer dizer, parte dela, a outra virou, ao que soube, caixaria. Moradores antigos da vila Restauração queixam-se de que suas estradas de seringa foram invadidas e muita madeira foi retirada sem seus consentimentos – o que seria uma regra antiga de propriedade a ser seguida. Os novos financiados, afirma-se, vão ter que buscar madeira longe...

A meu ver, todo o processo teve e está tendo também implicações no padrão de distribuição dos moradores na Reserva. A sociedade de seringal sempre foi marcada por uma grande mobilidade de sua população humana, embora isso possa parecer contraditório com o controle que os patrões seringalistas deveriam exercer sobre seus trabalhadores, os seringueiros. Mas o fato é que o povo mudava muito de lugar, mesmo depois da Reserva criada, em 1990. Com as mudanças na economia extrativista, o aumento da atividade agrícola e pecuária e as políticas públicas de saúde e educação, os surgimento de empregos e outras oportunidades, bom, todo esse padrão de alta mobilidade começou aos poucos a se alterar. Escolas e postos de saúde começaram a atrair as pessoas; empregos e diárias também; os centros da mata começaram a ser abandonados em favor de locais mais acessíveis nas margens dos rios; equipamentos públicos nas margens favoreceram o surgimento de núcleos populacionais mais densos. A vila Restauração é parte desse processo (aqui descrito meio suscintamente demais). O que quero sugerir é que com o crédito, o padrão “vila” se consolida.

Casas de madeira serrada e alumínio duram muito, e não são propícias a mudanças. Não se deixa para trás uma casa desta, como se fazia com as antigas casas de paxiúba e cobertura de palha. Este novo estilo de moradia vem acompanhado de uma outra forma de ocupação do espaço e de uso do ambiente e seus recursos. Pastos são investimentos, são custosos, e não são também transportáveis. As estradas de seringa não eram transportáveis, mas estavam em todo lugar! Agora, parece que as casas são construídas pensando numa fixação. Os mais velhos pensam nisso, e seus filhos também. O que parece é que o lugar eleito é um mixto de relações familiares e de percepção de indicadores de prosperidade. O que é esta prosperidade enxergada?

3 comentários:

Anônimo disse...

Seus posts têm um sabor caseiro, Mariana. Vila Restauração é novidade para mim, mas após a leitura dos textos a gente fica meio que "familiarizado" com o lugar, os modos, as pessoas...
todavia, familiarizado mesmo estou ficando com o estilo Mariana, plural e singular. Sim, boa pergunta se fez: o que é essa prosperidade no horizonte dos habitantes da vila?
O sonho de uma vida melhor parece ser algo universal. Restauração é um embriao de cidade e o futuro é sempre promessa de dias melhores.

Anônimo disse...

parece que o nomadismo que você tratavem de encontro às minhas pesquisas sobre as máquinas de guerra;

sabe que de um tempo pra cá, desde minhas protoexperiências na reserva e bastante estimulado por seus escritos, decidi levar a frente uma crítica que me parece pertinente para detonar com a mentalidade conservadora e estatizante com a qual me choquei (eu e meu pretenso anarquismo de literatura);
trata-se de traçar os aspectos e o funcionamento dos dispositivos dos aparelhos de captura;
se as reservas eram potencialmente máquinas de guerra, devido a seus focos de poder, sua política de resistência à aliança estado-mercado(patrões), sua economia sustentável, sua política cultural de diferença, como isso foi paulatinamente sendo desmontado e apropriado pelos aparelhos de captura, de que forma se deu a ação de cada um dos agentes que compunham o quadro de interações e os desdobramentos e redefinições constantes das identidades desses grupos e desses agentes;
o que se quer dizer com intencionalidade, ou melhor, que formas de intencionalidade se configuram nas ações de cooptação dos aparelhos de estado sobre esses dispositivos de resistência da máquina;
inclusive refletir se tudo não passou de ilusão e de um complexo de épico, insuflado por figuras quixotescas (complexo de superioridade);
se o que houvera fora sempre mesmo aparelhos de estado manipulando essa massa de ex-seringueiros no âmbito de um projeto de tomada do poder, ou de substituição da hegemonia política;
manipulação que teria vindo por exemplo para a projeção de uma política ambiental, de toda uma legislação a ser disputada e por aí vai, valendo para outros parceiros;
assim estou estimulado a definir os traços desses aparelhos de captura a as faces dessas máquinas de guerra;
continua...

Anônimo disse...

Infelizmente o exemplo da falta de acompanhamento da construção das casas por parte do órgão responsável pelas Resex é só um dentre os muitos casos da falta de politicas publicas integradas entre os diferentes ministerios. o Ibama (MMA) é responsavel pela administração/gestão da resex. O Incra (MDA) é responsável pelo credito moradia. Se o Incra não liberar o credito, não atinge a sua meta. se o Ibama empatar a construção das casas em função de um melhor acompanhamento da retirada de madeiras cria um caso com os moradores que exigem este beneficio. Logo, mas uma vez fecha-se os olhos para a questão ambiental. Temos outros exemplos. Na resex chico mendes observamos o boom dos ramais. Principalmente em Brasiléia. Mas o que está por trás disso??? O governo municipal e estadual nunca se preocupou em instalar este tipo de infra estrutura na Resex. Mas de uma hora pra outra iniciaram a abertura de diversas vias de acesso. O que está por trás disso??? O capital mais uma vez. Sem estradas o Governo da Floresta não pode implementar a sua estratégia de implantar diversos manejos madeireiros comunitários na Resex. Sem este manejo a expectativa é que o grande elefante branco da fabrica de pisos não atinja a sua capacidade de produção. Assim, justifica-se a abertura dos ramais como melhoria das condições de vida dos extrativistas enquanto que o pano de fundo é outro. E, se, perguntarem: poxa, mas a Resex não é uma unidade de conservação??? não existem limites para a implantação de projetos, obras nestas áreas??? não tem que respeitar o plano de manejo??? liguem para o Instituto Chico Mendes e terão a resposta para estas questões.