segunda-feira, 12 de maio de 2008

O mundo de hoje

Nota de esclarecimento: hoje, dia 15 de maio, Meirelles me telefonou. Por conta da divulgação das fotos neste blog, tomou um baita "puxão de orelha" do seu chefe, entendi que o presidente da Funai ou alguém de algum cargo alto na instituição. A questão são os direitos de imagem. Como garantí-los aos isolados? Como não garantir o uso comercial das imagens e outras questões afins. Meirelles, gentilmente, solicitou-me a retirada das fotos do blog. Atendo, claro, afinal a solicitação vem justamente de quem está na linha de frente, na fronteira das sociedades, a nossa e a deles (dos isolados), e causar qualquer prejuízo está fora de cogitação. E desculpo-me, embora nem eu nem quem me repassou as fotos tivéssemos a menor idéia de que pudessem haver impedimentos a sua divulgação. O fato, segundo explicou-me Meirelles, é que a Funai está, em Brasília, vendo uma forma de regularizar o uso das imagens de povos indígenas não-contatados, criar um fundo com recursos que venham a ser arrecadados por esse uso. Uma poupança para os isolados, digamos.

Enfim, gente, então agora não tem mais foto. Resolvi deixar o texto. Os isolados, ao que tudo indica, não estão tão isolados assim. Difícil manter distância de nós. Aquela história, para proteger, temos que nos aproximar. Agora a proteção é das imagens deles - e eles nem sabem disso. Mas talvez, com efeito, eles gostassem de ser consultados antes de serem fotografados...

* * *

[FOTO: maloca]

Não sei porque, mas a imagem ou sensação que me veio ao ver estas fotos foi a de um “túnel do tempo-espaço” que conduz a uma viagem à contemporaneidade.

[FOTO: maloca]

São malocas de povos nativos das fronteiras brasileiro-peruanas aqui no Acre. Seus nomes? Não se sabe. São os “isolados”: índios que voluntariamente parecem ter optado por não estabelecer contato conosco, os “brancos”. Certamente são aparentados com os índios da região. Os locais onde foram localizadas suas habitações e roçados, por exemplo, são os mesmos citados na tese de doutorado do Marcelo Piedrafita Iglesias, defendida em fevereiro passado no Museu Nacional (UFRJ), sobre um conhecido “amansador” (ou “catequista”, como ele gostava de se auto-definir) de “índios brabos”, de nome Felizardo Cerqueira, que no início do século XX andou por toda a região onde hoje são encontradas malocas de “isolados”.

[FOTO: casas e roçado]

As fotos aqui reproduzidas foram tiradas no final do mês passado, em vários sobrevôos que partiram da sede do Município do Jordão e percorreram três áreas vizinhas umas das outras: a do divisor de águas do rio Humaitá (afluente do Muru) com o alto rio Envira; a do divisor de águas dos igarapés Riozinho e Furnanha (ambos tributários do Envira); e o alto Xinane, também afluente do Envira. Na liderança da equipe estava o sertanista José Carlos Reis Meirelles, que chefia o posto da Funai localizado na entrada da Terra Indígena Kampa-Isolados do Rio Envira (para saber mais sobre o Meirelles, clique aqui, aqui e aqui). As fotos que aqui reproduzo, das mais de mil tiradas, são todas de Gleíson Miranda, da Secretaria de Comunicação do governo do Acre.

Os objetivos dos sobrevôos foram, por um lado, mapear a localização das malocas e seus moradores numa região de fronteira notadamente conhecida por ser território de perambulação de índios não contatados e que tem sido alvo de um agressivo e intensificado processo de exploração madereira. Suspeita-se de um maior trânsito de índios na região, em especial do Peru para o Brasil. O sobrevôo integra então um esforço de mapear a ocupação mais recente dessas fronteiras por “isolados”. Por outro lado, trata-se também de uma preparação dos trabalhos de demarcação física da Terra Indígena Riozinho do Alto Envira, delimitada em 2007.

[FOTO: roçado]

Foram localizadas 75 malocas, ou casa, agrupadas em sete conjuntos distribuídos nas três áeras sobrevoadas. Grandes roçados foram encontrados, impressionantemente grandes. Certamente, é um povo que gosta de comer bem. Nas fotos aparecem algumas edificações no meio do roçado que, suspeita-se, sejam paióis para armazenar as colheitas.

[FOTO: maloca e índios]

Apenas num dos conjuntos de malocas foram encontrados e fotografados seus moradores: estão localizadas na área do Humaitá com o alto rio Envira, mais próxima do local de decolagem e por isso passível de ser visitada ou muito cedo ou no final do dia, hora em que as pessoas costumam estar em casa. E com efeito estavam todos lá: homens, mulheres e crianças. Note-se que na foto acima (da maloca na primeira foto desta postagem), início da aproximação do avião, eles observam, provavelmente trocando idéias entre si sobre o que estava ocorrendo.

[FOTO: maloca e índios]

Os momentos seguintes são de correria, talvez pânico (talvez... vai saber...), em especial das mulheres e crianças, para a mata. Homens permanecem, atiram flechas. Dois deles estão inteiramente pintados de genipapo, os outros de urucum. As fotos carecem de maior definição para um progressivo zoom que permita ver esses índios mais de perto, mas sugiro ao leitor que tente um zoom mesmo assim. É emocionante. Na foto abaixo, há dois homens: um todo pintado de urucum e o outro de genipapo.

[FOTO: maloca e índios]

Não deve ser muito confortável, sendo um índio “isolado”, passar por uma situação dessa. O que será que dizem entre si? O que pensam sobre o ocorrido? Isso altera seus planos de permanecer no local? Sobrevôos como este não são uma forma de quebrar o isolamento voluntário no qual se colocaram? Bom, aí entramos talvez numa questão meio paradoxal: para garantir seu isolamento temos que saber onde se encontram. Só assim é possível proteger eles e seu território contra nós mesmos...

Fiquei muito impressionada – e não fui só eu – vendo as fotos em que aparecem os índios. Um povo que eu provavelmente jamais terei contato direto – e deve ser assim. Um povo que eu gostaria muito de conhecer e ter contato – mas isso não pode ser.

FOTO: [maloca e índios]

Olhando aqueles homens pintados de urucum e genipapo, não sei, senti-me numa volta no tempo (e digo isso correndo o risco de ser acusada de “evolucionista”: antropólogo que acredita numa evolução social entre as sociedades, que iriam das mais “simples” para as mais “complexas”). Não que eu seja o hoje e eles o meu ontem, não, não é isso. Eles são antes uma outra possibilidade de estar no mundo. Eles vivem hoje na Amazônia, alvo de tanta cobiça e projetos salvacionistas. Talvez eles tenham algo a nos dizer. Mas, não sei, será que conseguimos ouvir? Temos falhado neste ponto.

Passa-me pela cabeça que esses índios “isolados” são quase ETs no mundo capitalista-globalizado que conhecemos e cujo destino tememos. Não é o Gil que canta: “ET e todos os santos valei-nos, livrai-nos deste tempo escuro”? Perdoem-me estas palavras, ditas sem pensar. Atribuir aos “isolados” a nossa salvação? Como disse, está-se tentando salvá-los de nós. Foi só que fiquei emocionada mesmo, e talvez esperançosa. Enfim.

8 comentários:

Anônimo disse...

Sabe o que sinto quando vejo essa realidade?? Vontade de fazer parte dela, de sentir a proteção que esse isolamento dá. Proteção em relação às mazelas desse mundo civilizado em que vivemos. Mas lá no fundinho acho que isso não passa de uma ilusão, uma forma romântica de encarar a vida.

lindomarpadilha.blogspot disse...

Cara Mariana,

Ocupo este espaço, mais uma vez, para tecer algumas ponderações:

a) Em 2002 houve um confronto entre grupos indígenas do lado peruano e do lado brasileiro da fronteira, na região do Alto Juruá. A denúncia foi feita, hove mortes e até agora nada foi feito e, se foi, não veio a público.

b)Desde 1999 o Cimi acusa a existência de índios em situação de isolamento na cabeceira do Igarapé Tapada, dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor. Também nada foi feito. Nem há processo para a interdição da área.

c)2003 o Cimi apresentou um laudo afirmando a existência de índios em situação de isolamento na cabeceira do Rio Chandles,próximo ao Igarapé Riozinho, dentro do Parque Estadual do Chandles. Naquela época foi pedida a interdição da área, que ainda era da união, e por causa de interesses do Estado do Acre as terras foram arrecadadas pelo Estado, foi criado o Parque, e não saiu a interdição da área.

d)Em recente encontro ocorrido em Brasília, entre Cimi e Funai, para tratar de povos em situação de isolamento, a Funai deixou claro que não dispões de meios e de pessoal adequados quanto deveria para atuar nestes casos.

Portanto, esses povos estão praticamente condenados à morte. Há interesses de governos e de empresas nessas áreas. Veja o caso da loucura da exploração de petróleo e gás natural no Estado do Acre. Mas, sigamos firmes. Nossa luta é a luta pela vida plena até a morte.

Bom trabalho

Lindomar Padilha

gabriel c. barbosa disse...

E nós, aqui, trocando e-mails, indo ao cinema, compras no supermercado, discutindo aquecimento global, democracia na China etc. etc. Parece um universo paralelo borgiano! Quem são esses 'caras'? Quais os nomes de cada um deles? De onde vêm? Quem é casado com quem? Quantos filhos têm? Do que riem? O que temem? Sobre o que conversam quando estão à beira da fogueira ou preparando-se para dormir? O que dizem a nosso respeito?
Mariana, muito obrigado por ter divulgado essas fotos. São maravilhosas!

CIAVATTA disse...

Querida,

Muito legal as fotos e o texto.
Me lembrei do Pasolini falando que não devemos ser saudosistas pois todo passado contém a potencialidade do que é o presente (seu futuro).
A hora agora é de preservar a nossa cultura. Tanto a do indio como a do caboclo como a do favelado como a de todos nós brasileiros.
E a vida (luta) continua...

CIAVATTA disse...
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CIAVATTA disse...
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lindomarpadilha.blogspot disse...

Cara Mariana,

Entendo e respeito a posição do Meireles, mas é meio estranho o argumento, mesmo sendo válido.
A questão é muito mais difícil. Os recursos da internet são tantos. Veja por exemplo o Google Earth. Há pontos em que as imágens são bastante nítidas.
Seja como for, a ideia de garantir a vida dos povos em situação de isolamento é mais importante que estas pendengas.

Bom trabalho

Lindomar Padilha

morenocris disse...

Oi? Boa noite.
Já estive aqui várias vezes no ano passado. Vou colocar o seu link novamente.
Estranho a retirada da imagem. Mas, existe sim a questão legal.

Beijos.