sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Arrumando as malas


Estou arrumando as malas para viajar para o Alto Juruá, para a Reserva Extrativista que existe lá. Vou meio que de férias, visitar grandes amigos que moram lá, dar uma volta na floresta, navegar no rio Tejo, dormir na rede, ver o céu estrelado e também como anda a vida por lá. Seria muito bom poder enviar notícias quase diárias, um boletim da viagem. Mas não dá, lá ainda não tem internet, o que não é de todo ruim (pelo menos na minha opinião). Tenho mais uns dias para contar algo de lá antes de "ganhar a mata" e reaparecer no início de outubro, lá pelo dia de São Francisco.

O mapa acima localiza o Acre no Brasil, e a Reserva no Acre. Fica no muncípio de Marechal Thaumaturgo, onde está o Murilo (ver postagem "Pequena grande vitória") e o Benki (postagem "O guardião"). É a primeira unidade de conservação desta natureza criada no Brasil e no mundo, feito que se deu no dia 23 de janeiro de 1990. Reservas Extrativistas? Bom, trata-se de uma proposta de reforma agrária adequada ao estilo de vida e forma de ocupação existente em áreas extrativistas, que não trabalham com aquela lógica do lote, e sim com extensas áreas de floresta onde o que na verdade importa é o patrimônio natural (também chamado de recursos naturais), e não a terra em si. Os formuladores originais da proposta foram os seringueiros reunidos no Conselho Nacional dos Seringueiros, lá pelos idos dos anos 80.
Muita coisa mudou desde lá, mas o desafio das Reservas Extrativistas permanece o mesmo: reunir num mesmo espaço seres humanos e ambientes naturais que tem valor de conservação. Um belo desafio este: viver na e da natureza sem destruí-la. Parece que a nossa civilização tem sérios problemas neste sentido.

Pois bem, os seringueiros se atreveram a dizer que conseguem, ou que pelo menos que queriam tentar. A luta não tem sido fácil. No Alto Juruá, muita pesquisa já foi feita neste tema, em especial porque a área é altamente biodiversa! Quem quiser conhecer melhor, consulte a "Enciclopédia da Floresta", publicada pela Cia. das Letras em 2002 - vale super à pena. As Reservas também colocaram o desafio da gestão, pois os mesmos seringueiros diziam ainda que queriam eles mesmos governar as áreas criadas. Admiro os seringueiros: povo trabalhador e corajoso. De novo, a luta não tem sido fácil. A reação imediata é o descrédito: "como assim? Uma unidade de conservação gerida por seus moradores, não só extrativistas, mas também caçadores e agricultores!? O que vai acontecer com a fauna e a floresta? Isso não vai dar certo..."

Será mesmo que não? Esta pergunta foi objeto de um grande projeto de pesquisa nos anos 90 (a "Enciclopédia" é um dos produtos deste projeto), e pra resumir o resultado é o seguinte: sim, os moradores podem eles mesmos manejar unidades de conservação tais como as Reservas desde que certas condições se façam presentes, tais como organizações locais fortes, políticas públicas que fortaleçam o agroextrativismo, comunição interna eficaz, escolas e atendimento médico de qualidade, entre outras. Tudo isso tem sido uma batalha, com derrotas e vitórias. Mas acho que tem uma questão de fundo aí também: o que seria governar a área à maneira seringueira?

Não tenho resposta para esta pergunta, mas ao longo desses anos tenho me questionado se nas Reservas não estamos (pois de alguma forma também me sinto parte disso, talvez uma parte mais crítica, mas uma parte mesmo assim) implantando mecanismos de gestão do "mundo dos brancos". Ou seja, em muitos casos atropelando processos locais, impondo modelos, importando projetos grandiosos e endinheirados sem avaliar com mais vagar seus impactos no modo de vida e cultura locais. Valorizamos tanto os conhecimentos ditos tradicionais, mas parece na hora "h" os técnico-científicos é que acabam se impondo (tem aí uma pretensão de verdade).

Alguns dirão: o tempo do mundo não pode esperar, se não fizermos as coisas assim vamos perder os prazos de implantação da Reserva. Sei lá, cada vez tenho menos fé neste tipo de argumento. Na minha visão, a cada vez que corremos e não deixamos o "nativo" dizer o que pensa ou quer, perdemos oportunidades: algo novo, que possa nos arejar, deixa de vir à tona, e a autonomia (ou auto-determinação) dança. À propósito, há na proposta de Reservas Extrativistas uma clara inspiração indígena. Ah, este assunto é longo, teria mais coisas a dizer, como a própria legitimidade de tudo que é feito em nome da "implantação da Reserva".

Lá no Alto Juruá, hoje em dia, a situação não está fácil, muita coisa que foi tentada ao longo desses quase 20 anos faliu. Mas "muita coisa" não quer dizer "tudo". Quero falar de algo que considero uma experiência bem sucedida: o projeto de pesquisa e monitoramento colaborativos, uma parceria entre cientistas e moradores. Mas isso fica para logo mais.

2 comentários:

Anônimo disse...

De seringas, seringueiros e seringais entendo muito pouco, mas, muito pouco não é nada. Agora, Mariana parece uma mulher acervo...quanta informação pertinente..até para os que pouco entendem, como é o meu caso.

Belos textos, Mariana. Boa Viagem ao Alto Juruá e boas colheitas por lá!

morenocris disse...

Boa viagem, amiga.

Beijos.