No terceiro ciclo de discursos, cuja beleza justificam sua leitura, bem como de todo o Livro, Jó e seus amigos continuam seu embate, mas é o primeiro quem mais fala – sempre protestando sua inocência frente as calamidades e sofrimentos que se abateram sobre ele. Jura que não tem culpa para tal punição, lista uma série de pecados ou atitudes indignas, e nega que tenha assumido qualquer uma delas. E encerra com um desafio: “Oxalá houvesse quem me ouvisse! Eis minha assinatura! Que me responda o poderoso!”. Mal sabia ele...
Neste momento temos a intervenção de um jovem, Eliú, que aparece meio que do nada, faz uma fala bem incisiva criticando Jó e depois desaparece sem deixar maiores indicações sobre si. Quem será, ou o que significa este personagem? Ele mostra-se indignado com o orgulho que Jó demonstra ao se dirigir ao Senhor. “Como te atreves a acusá-lo, por ele não prestar contas de nenhum de seus atos?”. Eliú faz uma longa fala, na qual valeria a pena se deter em várias passagens. Escolhi algumas. Ele diz a Jó e aos demais que tanto a maldade quanto a justiça que cometem só afeta a seres mortais como eles, e não a Deus. O certo e o errado (pecado) encerram neste mundo mortal suas causas e consequências – parece ser isso que diz. (Tateio nas escrituras) As desgraças e misérias que se abatem sobre os homens por eles são produzidas, mas grandioso é este momento pois Deus “salva o aflito por sua aflição, e abre-lhe os ouvidos com a tribulação”.
Fiquei com a impressão de que Eliú desloca os mistérios de Deus, suas realizações, para um outro plano, superior, o da natureza: na chuva, nas nuvens, nos trovões, na neve, no furacão... “Ouvi isto, Jó, pára, e considera as maravilhas de Deus!”
E eis que o Senhor entra em cena, e fala com Jó, previnindo-o: “Cinge-te os rins como um valente: vou interrogar-te e tu me responderás”. (Chamou-me atenção esta passagem: proteger os rins. Na medicina chinesa, os rins são a porta da vida; uma acumputurista amiga diz que são a nossa “bateria”, como a do carro: se não está bem, o carro nem liga... No Novo Testamento, nos evangelhos de João e Mateus aparece a menção ao cinto de couro na cintura, ou em volta dos rins, que São João usava. E finalmente, num livro belo, belo, “O Livro de Mirdad”, logo no início aparece um pastor, nu e com seus rins protegidos. Achei mais do que coincidência tudo isso, embora não saiba agora desenvolver o assunto. Rins, vida, espiritualidade, pastor de ovelhas...)
Como reproduzir as falas de Deus? Nem me atrevo. Mas o fato é que Ele chama Jó pelo discernimento. “Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra? Dize-mo, se é que sabes tanto!”. E fala então, pareceu-me, da gênesis do mundo, da criação mesmo e de todas as forças que naquele momento foram domadas, contidas, organizadas. É um discurso grandioso, digno de Deus... São realizações inacreditáveis, e estão aí hoje para todos nós vermos: o mar, as estrelas, os animais, o universo, enfim. “Sinto-me pequeno”, diz Jó, “que poderei responder-te?”.
Nisso tudo, onde ficam nossos pecados e dramas pessoais? Talvez no nosso mundo mortal mesmo. Não é sobre eles que Deus está firmado, seu fundamento é mais sólido e seguro. Mas de alguma forma Ele está presente no dia a dia das nossas tribulações – parece que elas seriam como que uma trombeta que toca, acordando-nos para um outro plano que não este aqui, meio rasteiro, ilusório. Não sei se é isso, mas outro dia, conversando com o Toinho Alves (que tem um blog maravilhoso, “O espírito da coisa”), falamos do ressentimento e de como este re-sentir deposita no nosso interior sementes de desarmonia e infelicidade, principalmente para nós próprios. Jó ressentiu-se com o que passava consigo, e aí caiu na sua própria armadilha; das tribulações veio Deus socorrer-lhe, tirando-o da pequenez do seu remoer-se: “Paciência, Jó”.
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