sexta-feira, 25 de abril de 2008

Tapauá é mais embaixo

Pessoal, é sério, ando de cabelo em pé com o que está acontecendo a respeito da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Tá difícil mudar de assunto. Todo este desrespeito à lei, por parte dos arrozeiros e agora dos militares, querendo deturpar as coisas tal como elas devem ser (de acordo com a nossa Carta Magna), me dá calafrios. Então, pra quem também tem sentimentos parecidos, posto hoje um artigo muito bem humorado e também de protesto. O autor chama-se José R. Bessa Freire, e o artigo (cujo título está acima) foi publicado no dia 20, no jornal Diário do Amazonas.

* * *

Dona Lourdes Normando dava aula particular em sua casa, no Beco da Indústria, bairro de Aparecida, Manaus. Às sextas-feiras, dia de sabatina, ela sapecava bolos de palmatória em quem errava a tabuada. Um dia, em 1955, na prova oral de geografia, perguntou: - "Seu Bessa-Freire, qual o rio que banha a cidade de Tapauá?". Era a primeira vez que eu ouvia falar em Tapauá nos meus sete anos de vida. Arrisquei: - "Rio Juruá". Rimava. Mas não era a solução. Ela, então, me fez copiar duzentas vezes a frase: "Tapuá fica no rio Purus". Fiquei com calos no dedo, mas nunca mais esqueci.


Lembrei do método de ensino da dona Lourdes nessa semana, quando li as declarações a O Globo do Comandante Militar da Amazônia, General Augusto Heleno. Ele aloprou. Criticou duramente o Governo, dizendo que a terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, demarcada por FHC em 1998 e homologada por Lula em 2005, constitui uma ameaça à soberania nacional, que "dar terras" aos índios em faixa de fronteira é uma ameaça à integridade nacional e blá-blá-blá, blé-blé-blé.


Foi apoiado pelo coronel Jarbas Passarinho, ex-ministro da Educação da ditadura militar, que na época, defendeu os acordos MEC/USAID, favoráveis à intervenção norte-americana na universidade brasileira. Mas agora, quando se trata de terra indígena, Passarinho vira 'nacionalista', fica macho pacas, e diz que Raposa Serra do Sol é uma "fronteira viva", ocupada por fazendas produtivas, que sua demarcação ameaça a integridade nacional e bli-bli-bli, blo-blo-bló.


O chefe do Estado Maior do Leste, general Mário Madureira, vê o risco de os índios solicitarem a separação dessas terras do Brasil, como em Kosovo, e blo-blo-bló. O Clube da Aeronáutica publicou comunicado, subversivo e insolente, intitulado "Não recue, general Heleno", onde lhe manifestou seu apoio "até às últimas conseqüências" e mandou recado a Lula: "Não se atreva, presidente, a tentar negar o sagrado dever de defender a soberania e a integridade do Estado brasileiro". E blu-blu-blu.


No plano político, a oposição aproveitou. O presidente nacional do DEM (vixe, vixe!), deputado Rodrigo Maia, o 'porquinho', divulgou nota. Nela diz que seu partido, órfão da ditadura militar, é contra a demarcação e blá-blá-blá, ble-blé-blé, bli-bli-bli. O líder do PSDB, Arthur Neto, mais discreto, discordou que um militar da ativa fizesse pronunciamento de caráter político, o que é um gesto de insubordinação, mas concordou com o conteúdo do discurso.


Até o deputado Aldo Rebelo (PC do B) cometeu um artigo, no qual escreve que "a demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol foi um erro geopolítico do Estado brasileiro". Jura que "chegamos ao paroxismo de tuxauas barrarem a circulação de generais do Exército em faixa de fronteira". Termina, elogiando os bandeirantes, o esquadrão da morte anti-indígena e bló-bló-bló, blu-blu-blu. Os mortos da guerrilha do Araguaia tremeram em seus túmulos: "Foi para isso que morremos?".


O próprio Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão inusitada, suspendeu a operação de retirada dos grileiros, ocupantes ilegais das terras indígenas, que resistem, armados, a uma ordem judicial. A partir daí, O Globo lançou campanha histérica de desinformação, berrando em manchetes que os índios querem decepar o Brasil. O editorial "Sandice Indígena" pontificou que "dar aos índios aquelas extensões de terras" é injustificável, porque significa a "desestabilização da agricultura local".


Todos esses "defensores da Pátria" falam em "dar terras", mas ninguém "deu terras" aos índios. A Constituição apenas reconheceu o direito de os índios usufruírem os territórios que ocupam milenarmente e que são propriedade da União. Eu disse: DA UNIÃO. Os índios não podem vender as terras, nem podem dá-las como garantia para uma transação comercial, porque elas não lhes pertencem, são propriedades da União, quer dizer, de todos nós. Um fazendeiro, sim, pode vender suas terras a estrangeiros e impedir a entrada do exército, porque afinal a propriedade privada é sua. Os índios não. Acontece que as oligarquias, aves de rapina, acham que o que é público lhes pertence, interpretam que podem se apropriar dos espaços públicos.


Em entrevista à Rádio Bandeirantes, desmenti Aldo Rebelo. Nenhum general – imagina! - pode ser impedido de exercer suas funções constitucionais em terras indígenas, porque elas pertencem ao Brasil. Falei que já existem bases militares dentro de todas as terras indígenas de faixa de fronteira, que muitos índios servem o Exército como soldados, que apesar dos jarbas e dos passarinhos, os índios se sentem também brasileiros. Contei que assisti jogo da Copa do Mundo numa maloca indígena, em tv alimentada por bateria de carro, e que os índios vibravam com os gols da nossa seleção.


- Como é que algumas centenas de índios, que amam o Brasil, armados de arco e flecha, podem ameaçar a soberania nacional? – perguntei ao radialista. Ele retrucou que alguns militares achavam que potências estrangeiras podiam manipular os índios (os fazendeiros não). Ponderei que, nesse caso, – hipotético - os militares deviam concentrar seu fogo contra essas potências - hipotéticas - e não contra índios indefesos, de carne e osso, e que, para isso, eu confiava nas Forças Armadas, que nos deu Rondon, corajoso, sensível e inteligente, defensor dos índios. Não existe nenhum argumento consistente que justifique expulsar os índios de suas terras. Por isso, o blá-blé-bli-bló-blu não se sustenta.


Por trás dessa orquestração, o que existe mesmo é a defesa de interesses particulares e não nacionais. Estão tentando confundir a opinião pública para justificar a usurpação de terras. Exigir que terras indígenas sejam – aí sim – "dadas" a fazendeiros significa privatizá-las, ou seja, entregar a alguns indivíduos as terras que nos pertencem. Guardiões das terras da União, os índios constituem uma garantia da soberania nacional, da biodiversidade e da sociodiversidade. Por que o usufruto pelos índios de terras que ocupam milenarmente ameaçariam a soberania nacional, e não assim a propriedade privada de fazendeiros, que inclusive possuem armas e poder de fogo?


Não foi FHC nem Lula que "deram" terras aos índios. Foi a Constituição de 1988 que reconheceu os direitos indígenas sobre as terras da União. Não é uma política de governo, é uma política de Estado. Rebelar-se contra isso é afrontar a lei maior do país. A lei existe para ser respeitada por todos, do contrário, vira bang-bang, faroeste, como aliás já está acontecendo em Roraima. Quatro arrozeiros se armam e desobedecem uma decisão que cumpriu todos os requisitos legais, num ato jurídico perfeito. O STF, ao recuar, estimula os grupos que reagem com violência contra a lei, quando ela fere seus interesses. Quem gritar mais alto, leva?


O ministro da Defesa, Nelson Jobim, que chamou o general Heleno na catraca, declarou: "a questão está superada". Superada é uma ova! Precisamos berrar a plenos pulmões que o que estão dizendo não é verdade: Tapauá não fica no Juruá. Não se pode desinformar, impunemente, as pessoas.


Proponho aplicar, sem a palmatória, o método da dona Lourdes obrigando todos aqueles que confundem a opinião pública a escrever mil vezes a frase: "as terras indígenas pertencem à União e não ferem a soberania nacional, as terras indígenas pertencem à União e não ferem a soberania nacional". Criarão calos nos dedos, mas ficarão convencidos, se agem de boa-fé, daquilo que nós já sabemos: que Tapauá é mais embaixo.

domingo, 20 de abril de 2008

Ainda Serra do Sol - Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro


- Existe risco para a soberania nacional na reserva Raposa Serra do Sol, como crê o general [Augusto Heleno]?

- Existe, sim, uma questão de soberania do governo ao ser contestado publicamente por um membro das Forças Armadas. O general polemiza com uma decisão que, como todo mundo diz, não se discute, apenas se executa. A argumentação de que a reserva indígena represente um problema de soberania está mal colocada.

(...)

Esse conflito na Raposa tem por volta de 30 anos. Em 2005, quando o presidente Lula homologou as terras, selou-se o compromisso de retirar, no prazo de um ano, os produtores rurais que estavam dentro da área reservada. Parecia que todo mundo ficara de acordo. Por que a situação se deteriorou?

Há o jogo político. Disseminam-se inverdades, como a de que a área da reserva ocupa 46% de Roraima, quando apenas ocupa 7%. As terras indígenas de Roraima, somadas, dão algo como 43% do Estado. Mas a Raposa tem 7%.

- Ou, 1,7 milhão de hectares.

- O que não é um absurdo. As terras de índios são 43% ao todo, porém, até 30, 40 anos atrás, eram 100%. E o que acontece hoje com os 57% que não são terras de índios? São ocupados por uma população muito pequena, algo em torno de 1 milhão de pessoas. O que é isso? É latifúndio. Sabe quantos são os arrozeiros que exploram terras da reserva? Seis. Não há dúvida de que o
que se quer são poucos brancos, com muita terra. Outra inverdade: as terras da reserva são dos índios. Não são. Eles não têm a propriedade, mas o usufruto. Porque as terras são da União. E a União tem o dever constitucional de zelar por elas. Já os arrozeiros querem a propriedade. As notícias que temos são as de que, desde a homologação, produtores rurais que estão fora da lei já atacaram quatro comunidades indígenas, incendiaram 34 casas, arrebentaram postos de saúde, espancaram e balearam índios. Paulo César Quartiero, o arrozeiro-mor, foi preso na semana passada por desacato à autoridade. Já está solto, mas, enfim, esse é o clima de hostilidade que
reina por lá.

(...)

- O que se questiona na Raposa é a criação de uma reserva enorme, em área contínua.

- A declaração do ministro Gilmar Mendes a esse respeito é espantosa. Ele defende a demarcação de ilhas, e não de terras extensas. Em primeiro lugar, não sabia que ministro do Supremo é demarcador de terras. Demarcar é ato administrativo, cabe ao governo, não ao Judiciário. Em segundo lugar, as terras indígenas já são um arquipélago no Brasil. Acho curiosa essa expressão: demarcar em ilhas. Significa ilhar, isolar, separar. Demarcar de modo que um mesmo povo fique separado de si mesmo.

- Existe o risco de reivindicação de autonomia por parte dos índios?

- A terra ianomâmi está demarcada desde o governo Collor e nunca houve isso. Alguém imagina que os ianomâmis queiram reivindicar um Estado independente, justamente um povo que vive numa sociedade sem Estado? Chega a ser engraçado.

- E se eles foram manipulados por interesses estrangeiros?

Empresas e cidadãos estrangeiros já são proprietários de partes consideráveis do Brasil. Detêm extensões enormes de terra e parece não haver inquietação em relação a isso. Agora, quando os índios estão em terras da União, que lhes são dadas em usufruto, daí fala-se do risco de interesses estrangeiros. A Amazônia já está internacionalizada há muito tempo, não pelos índios, mas por grandes produtores de soja ligados a grupos estrangeiros ou pelas madeireiras da Malásia. O que não falta por lá é capital estrangeiro. Por que então os índios incomodam? Porque suas terras, homologadas e reservadas, saem do mercado fundiário.

- É uma questão fundiária?

É. Essa história de soberania nacional serve para produzir pânico em gente que vive longe de lá. É claro que o Exército tem de cumprir sua missão constitucional, que não é a de ficar criticando o Executivo, é proteger fronteiras, fincar postos de vigilância, levar seus batalhões, criar protocolos de convivência com as populações locais. Mas o que prevalece é o conflito fundiário e a cobiça pelas terras. Veja o que aconteceu no Estado do Mato Grosso. O que fez esse governador (Blairo Maggi), considerado um dos maiores desmatadores do mundo? Derrubou florestas para plantar soja, com o consentimento do presidente da República, diga-se de passagem. Hoje o Estado do Mato Grosso deveria se chamar Mato Fino. Virou um mar amarelo. O único ponto verde que se vê ao sobrevoá-lo é o Parque Nacional do Xingu, reserva indígena. O resto é deserto vegetal. Uma vez por ano, o deserto verdeja, hora de colher soja. Depois, dá-lhe desfolhante, agrotóxico... E a soja devasta a natureza duplamente. Cada quilo produzido consome 15 litros de água. Em Roraima não se deve bater de frente com o Planalto. Representa esse Estado o senador Romero Jucá, que é pernambucano e hoje atua como líder do governo. Jucá tem interesses claros e bem definidos. É dele o projeto que regulamenta a mineração em terras indígenas. Regulamenta, não. Libera.

(...)

Outro aspecto precisa ser lembrado: até que saísse a homologação da Raposa, o que demorou anos e anos, muito foi tirado de lá. A sede do município de Uiramutã, com 90% de índios entre seus moradores, foi transferida para fora da área. Estradas federais cortam a reserva, bem como linhas de transmissão elétrica. A rigor, já não é uma terra tão contínua.

(...)

- Tem-se uma percepção disseminada de que o Brasil foi habitado por índios primitivos, diferentes dos incas, maias ou astecas, cujas civilizações eram até resplandescentes.

- Talvez. O México realmente produziu uma forte identificação com povos que foram esmagados pelo colonizador. Aqueles índios fizeram uma civilização mais parecida com a que havia na Europa, com seus palácios, templos, sacerdotes, um aparato que realmente não aconteceu por aqui. Agora, há muito desconhecimento dos índios brasileiros, e isso em parte é culpa nossa,
antropólogos, que precisamos demonstrar melhor as soluções originais de vida que esses povos encontraram. Soluções para atingir uma forma de organização social bem-sucedida, no que diz respeito à satisfação de suas necessidades básicas. Não os vejo como índios pobres, mas originais. Considerando a história da espécie humana neste planeta, penso que não estamos em condição
de dar lição a ninguém. Nós, os não-índios, tivemos uma capacidade imensa de criar excedentes e uma dificuldade quase congênita de fazer com que sejam usufruídos por todos, de maneira eqüitativa. Articulamos a desigualdade e deixamos para alguém a conta a pagar. Os índios desenvolveram um processo civilizatório mais lento, certamente, mas não deixam a conta para trás. Significa ser primitivo? Eu me pergunto: o que diabos temos a ensinar aos índios se não conseguimos resolver a dengue no Rio? O que temos a lhes mostrar se não damos jeito no trânsito da cidade de São Paulo?

(...)

- As reivindicações dos índios na Bolívia podem ser imitadas aqui?

- Mas o que os nossos índios estão pedindo? Passaporte de outro país? Dupla nacionalidade? Uma bandeira só para eles? Uma outra Constituição? Nada disso. O que eles pedem é justamente maior presença do Estado brasileiro onde vivem, para não depender da intermediação do político local. Isso os constitui como uma nação à parte, no sentido jurídico? Evito esse conceito, porque tudo é nação no Brasil.

- Como assim?

- Tem nação nagô, nação rubro-negra, nação corintiana. Essa também é uma herança de Portugal, que, no passado, tratava os povos como nações em documentos administrativos. A rigor, nação é uma construção subjetiva, um compartilhamento de sentimentos e cultura. É isso. Mas a turma do discurso do pânico pensa assim: primeiro o índio tinha vergonha de ser índio, depois viu que é bom ser comunidade. Daí ganhou terra, vai querer autonomia e fundar uma nação. Ora, quem diz isso nunca colocou o pé numa terra indígena.

(...)

- Diz-se que 49,5% dos 225 povos indígenas do Brasil são constituídos, cada um, de no máximo 500 indivíduos. Vem daí a idéia de que é pouca gente para muita terra?

- Mas no Estado de Roraima há meia dúzia de arrozeiros fazendo esse estardalhaço todo. Meia dúzia! Também não é pouca gente? Como é que comunidades tão pequenas podem ameaçar o Brasil? Só se forem criar Estados de Mônaco. Utilizar o índio como modelo de latifúndio, como se tem feito, é um prodígio de má-fé. Índio também vende madeira? Claro que vende. Mas só ele? E os outros?

(...)

- Digamos que os não-índios deixem a Raposa. Os índios de lá poderão plantar e fazer lucro? Poderiam virar arrozeiros?

- Sim, podem plantar e vender. Podem até virar arrozeiros. Mas terão de produzir dentro de limites muito estritos, sujeitos a leis ambientais severas, não se esqueça de que a reserva integra o Parque Nacional de Roraima. Também não podem explorar o subsolo, a não ser o que há no solo de superfície. Mas francamente acho que a população indígena jamais entrará de cabeça no modo de produção do agronegócio, que eu chamo de modelo gaúcho, porque isso simplesmente não bate com seu modelo de civilização. Por isso insisto tanto em dizer que estas não são terras de índio, mas terras de usufruto dos índios. Nunca houve polêmica sobre a definição de reserva,
porque se sabe que o domínio das terras é da União. Isso é inclusive a maior garantia para os índios. No dia em que não houver mais, eles serão invadidos imediatamente. Inclusive pelo Brasil, inclusive pelos arrozeiros. Só que no sentido técnico essa invasão já houve. Os índios não têm soberania porque já a perderam e se renderam. Suas populações foram invadidas, exterminadas,
derrotadas. O que eles querem é que os direitos de vencidos sejam respeitados. Não se pode infligir uma segunda derrota a eles. Isso é contra as leis, contra tudo.

(...)

- A Constituição brasileira está fazendo 20 anos. O que representou para os índios?

- Foi um avanço, mas ainda falta regulamentar muita coisa. É impressionante como a Constituição tem inimigos. Todo mundo quer tirar dela uma lasca, com cinzel e tudo. O artigo referente aos direitos indígenas é um dos mais visados. Há pelo menos 70 projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, nesse campo específico, e todos pretendem diminuir as garantias do direito às terras. Mais de 30 dessas proposições querem alterar os procedimentos de demarcação. Buscam reverter processos administrativos. Os oito deputados federais do Estado de Roraima apresentaram projetos para suspender a portaria que criou a Raposa Serra do Sol. Toda bancada é contra a reserva. O projeto de regulamentação para mineração, do Jucá, é primor de como se pode erodir direitos, comendo o pirão pelas beiradas. Em compensação, o projeto de lei que substitui o Estatuto do Índio está há 14 anos parado no Congresso. O que existe, claramente, é a tendência de redução de proteção jurídica aos povos indígenas. E, conseqüentemente, de redução da presença e da soberania da União nessas áreas.

[A entrevista completa foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, Caderno Aliás, no dia 20 de abril de 2008; a linda foto da criança Macuxi é de Eliane Motta, de 1984, e foi retirada da Enciclopédia dos Povos Indígenas, no site do ISA]

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Iceberg amazônico


Estou meio pasma com o que está acontecendo em Roraima, longíquo estado brasleiro (pra quem mora mais pro sul do país; aqui do Acre até que é perto), que raramente é notícia.

Roraima virou palco de discussão sobre a soberania nacional. Tudo isso por causa, pode-se dizer, de seis arrozeiros - os ditos habitantes não-indígenas que estariam, a seu ver, injustamente sendo retirados da área da Terra Indígena legalmente identificada e demarcada. Pergunta: quem chegou primeiro ali na área? Ao que me consta, os índios (hoje contabilizados em 18 mil, e notem que 18 mil não são seis). Esses empresários do arroz adquiriram suas terras, segundo também tem sido noticiado, após o processo de identificação da TI ter sido iniciado. Eles sabiam onde estavam pisando. Confiaram em sei lá o quê, no seu poderio econômico e político, nos seus aliados parlamentares, essas coisas. E também, provavelmente, nos militares, que estão alvoroçadíssimos e não param de falar na ameaça a "soberania nacional" que a homologação da TI Raposa Serra do Sol significará.

Soberania nacional? Como assim? O que se entende por isso? Eles e outros acham, pelo que tenho lido nos jornais, que está em curso como que um movimento federativo, ou o surgimento de territórios dominados por nações que não se considerariam brasileiras, e sim indígenas. Um perigoso autonomismo, um risco para o país, parecem temer. Paranóia, é uma das coisas que me parece. Pra quem não sabe ou atentou, TIs são propriedade da União, que entra e sai de lá a hora que bem entender. Vocês acreditam que tem um senhor chamado Demétrio Magnoli que publicou um artigo do jornal "Estado de São Paulo" falando que a retirada de não-indígenas corre o risco de se transformar na "primeira guerra étnica no Brasil"? Ou é puro correio da má notícia (popular fofoca de notícia ruim), ou mesmo ignorância. Nos últimos 500 anos se houve algo que possa ser chamado de guerra étnica foi justamente por nós, brancos, promovida contra os nativos da terra que virou Brasil. Haja paciência, e maledicência.

Lembro vagamente (eu era mais nova e menos ligada nesses assuntos) de que o mesmo tipo de conversa rolou quando a TI Yanomami estava sendo homologada. Havia uma corrente que queria que "ilhas" descontínuas de terra fossem demarcadas, e não um território contínuo, igual agora no caso da Raposa Serra do Sol. A proposta das "ilhas" acabou sendo derrubada, e os Yanomami ficaram com o seu território livre de enclaves brancos. Livre em termos, pois foram assediados de todas as maneiras pela mineração em sua TI. Uma tragédia. Bom, talvez em Roraima o arroz seja só a ponta do iceberg...

Vejam o que li hoje: a TI Raposa Serra do Sol e seus 1,7 milhão de hectares, além de terras ao que parece propícias para a agricultura empresarial, também é rica em minérios... No Congresso, já há algum tempo existe um grupo suprapartidário trabalhando para aprovar um projeto que libera a mineração em terras indígenas, e não só em Roraima. Estão jogando duro para aprovar isto este ano, e com apoio governamental. Pra quem não se lembra, o senador Romero Jucá (PMDB), de Roraima e atual líder do governo, é o autor da primeira versão do texto, que há 11 anos tramita na casa. Este iceberg é dos grandes... Puro acaso o Supremo Tribunal Federal ter suspendido temporariamente a remoção dos (seis) moradores não-indígenas da Terra Indígena? Por que os militares (Exército e Polícia Militar) se recusaram a apoiar a operação de retirada dos não-indígenas que a Polícia Federal estava executando na TI?

E o governo, o que faz este governo de meu Deus? (de meu Deus não, desculpe, pois Este não se mete nesses loucos assuntos terrenos) O Ministro Tarso Genro, da Justiça, ao que parece deu mole, e quando resolveu endurecer com os arrozeiros estes já estavam literalmente armados (bombas caseiras & cia - por que os militares não deram em cima desses "guerrilheiros subversivos"?) e articulados. Sei lá, o negócio tá esquisito e o iceberg cresce a cada dia...

E lá, na TI, o que está se passando? O que dizem os seus legítimos moradores? O que será que eles estão pensando de tudo isso? Incrível como essas vozes mal chegam a nós, que não paramos de falar deles e de suas terras. Fico até com vergonha de estar participando deste falatório...

quarta-feira, 16 de abril de 2008

domingo, 13 de abril de 2008

Amazônia peruana: o começo do fim

José Carlos Meirelles

Fui convidado pelos índios Ashaninka do rio Amônea para participar de uma reunião na aldeia Sawawo, nas cabeceiras do Rio Amônea, em território Peruano, praticamente a alguns metros além da linha de fronteira Brasil-Perú. Entre outras coisas seriam discutidas formas de desenvolvimento sustentável dos povos indígenas da fronteira, maneira delicada de dizer aos índios Ashaninka do Peru deixarem de explorar madeira em suas terras.

Já sabia de antemão da presença de madeireiras legais e ilegais explorando mogno nas cabeceiras dos rios Juruá, Envira, Purus e seus afluentes. Mas tudo de ruim que imaginava não chega nem perto da realidade!

O que ocorre nesta região é um crime monumental contra a natureza, aos índios, a fauna e um atestado da mais pura irracionalidade de como nós, civilizados, tratamos o mundo, casa de todos nós.

Vamos por partes:

- A maioria das comunidades indígena da Amazônia Peruana está envolvida com a exploração de madeira. De duas formas. Primeiro, cedem suas terras para um Plano de Manejo Sustentável, em troca da regularização fundiária. O Governo Peruano reconhece as terras, mas não dá um tostão para regularizá-las. Os madeireiros fazem isso em troca de um plano de manejo. Segundo, são usados como mão de obra no serviço pesado da localização e corte da madeira.

- Os madeireiros plantam comunidades indígenas em pontos estratégicos, solicitam o reconhecimento das terras e as regularizam “para os índios” com o plano de manejo imediatamente após. Tudo de acordo com as leis Peruanas.

- Existem muito poucas madeireiras legais na região, como a VENAO, por exemplo, que explora madeira na comunidade Sawawo. Acontece que a grande maioria das madeireiras são ilegais, los ilegales, como chamam os patrícios peruanos . Como quase 100% da madeira é exportada e quem é ilegal não pode exportar, quem está comprando toda esta madeira? As madeireiras legais, que fazem um plano de manejo bonitinho em uma comunidade, conseguem a certificação e exportam uma quantidade enorme de madeira certificada!

- Os madeireiros ilegais, além da madeira exploram a carne de caça e peixe, que são vendidos em Pucalpa. Toneladas de carne de caça, jabotis, couro de caça e peixe, são levados a Pucalpa para abastecer a cidade. O peixe está sendo pescado com dinamite nas cabeceiras dos rios. Por lá nada parece ser proibido!

- Da aldeia Sawawo, como exemplo, vai-se de caminhão até Nova Itália, na beira do Ucayali e daí pra Pucalpa. A região está toda cortada de “carreteras”, o que facilita o transporte de madeira, caça e o que mais se quiser levar.

- É tamanha a exploração de madeira, que os madeireiros ilegais estavam roubando madeira do plano de manejo da aldeia Sawawo. Alguns Ashaninka se reuniram e parece que mataram alguns “ilegales”. Que também eram índios! Agora vigiam sua aldeia com uma guarda armada 24 horas por dia, com medo de retaliação e não podem mais subir o rio Amônea, nas cabeceiras, para pescar, com medo de serem mortos!

- Os índios da Amazônia Peruana estão metidos na exploração madeireira por pura falta de alternativa econômica e abandono do governo Peruano. Estão sendo algozes deles mesmos! Os madeireiros são o Estado na região. Esta é a triste verdade.

- As cabeceiras do Juruá, Purus e Envira, além de abrigar várias comunidades indígenas conhecidas, abriga, ou melhor dizendo, abrigava, vários povos indígenas isolados, que em defesa de seu território atacam os invasores e estão sendo sistematicamente mortos pelos madeireiros, que também são índios contatados e bem armados pelas firmas madeireiras.

- Os povos isolados da região estão migrando para o território brasileiro, que na faixa de fronteira com o Peru é uma faixa contínua de áreas preservadas, na maioria delas terras indígenas. E do lado de cá, além dos índios contatados e moradores de reservas extrativistas, existem índios isolados. Os migrantes vão encontrar então os mesmos personagens do lado de cá que mataram seus parentes de onde vieram. Por não saber distingui-los, vão atacá-los e vão sofrer retaliações. De novo índios vão matar índios!

- No final do ano passado e início deste algumas agressões de grupos isolados a índios em território brasileiro já ocorreram. Além de ataques ao pessoal da FUNAI que cuida das terras dos isolados, no lado brasileiro.

- O Governo Brasileiro e o Governo Peruano sabem de tudo isso, mas não mexem uma palha para ao menos tentar solucionar a questão. Tudo fica nos protocolos de intenção, em atas de reuniões, em salas refrigeradas de encontros binacionais. Nada além disso.

- Para que os europeus japoneses tenham seus móveis de madeira nobre e para os norte-americanos enterrarem seus mortos em caixões de mogno, uma das regiões mais lindas da Amazônia, que são as cabeceiras dos grandes tributários do Amazonas, os rios Juruá, Purus e Madeira (no Peru e Bolívia), as terras firmes, que eram reservas intocadas a bem pouco tempo, viraram uma região violenta, onde índios matam índios e a paz é uma lembrança distante.

Senhor Europeu, embutido em seu lindo móvel de mogno estão vários índios mortos.

Senhor Japonês, em sua linda casa de madeira de lei vagam fantasmas de povos isolados que morreram sem saber porque.

Senhor Norte-Americano, em seu caixão de mogno, além do cadáver do seu querido familiar estão sendo enterrados juntos outros tantos, de povos que não sabem de sua existência.

Quem sabe se a gente deixar de achar “ chic” um móvel de mogno, de imburana, de ipê, de cedro rosa... Deixar de fazer varandas com esteios de maçaranduba e não se escandalizar com uma mesa de plástico, um pedaço considerável da Amazônia ainda possa ser preservado e os índios que restaram possam recolher os sobreviventes, refazer suas vidas e ser de novo um povo feliz.

Está em suas mãos.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Hãtxa Kuin Menia continua

Esta semana entramos na 16a. aula de Hãtxa Kuin, curso experimental que a Biblioteca da Floresta está oferecendo desde fevereiro deste ano. Serão 25 aulas. Nosso professor, o Joaquim Maná, da TI Kaxinanawá do Carapanã, no rio Tarauacá, e a Daniela Marquese, antropóloga e assistente, junto conosco, a turma interessada, temos todos mantido um ritmo maneiro e puxado ao mesmo tempo. Não é fácil aprender hãtxa kuin! É difícil. A pronúncia do "e" em especial, que com ou sem acento (til) não é pronunciada como no português. Na foto abaixo, o Joaquim estava, bem no começo do curso, nos ensinando as vogais do alfabeto huni kuin, quem não tem o "o". O Elson Martins, aluno dedicado, está prestando a maior atenção... (Gosto desta foto, um professor indígena apropriando-se dos nossos materiais e nos ensinando o que para ele é importante: sua língua.)


Há ainda coisas como "xt", "tx", "sh", entre outros. Bom, mas isso a gente aprende, vai se acostumando. É interessante, pois a grafia do hãtxa kuin é recente, dos anos 80, ao menos aqui no Acre. No Peru existe uma gramática mais antiga um pouco, por iniciativa de linguístas missionários. Aqui no Acre é uma iniciativa da Comissão Pró-Índio com professores indígenas e consultoria de linguístas, como o Aldir Santos de Paula, de Alagoas e um especialista nas línguas Pano. Então, tem coisas que ainda estão se firmando, regras de escrita ainda não consolidadas, há discrepâncias e coisas ainda não bem definidas. Isso no que diz respeito ao hãtxa kuin escrito, pois o falado vai bem obrigado. Quer dizer, há Terras Indígenas aqui no estado que a língua está bem ameaçada, que só os velhos a falam. Mas vamos em frente na nossa aula...


Aí acima estão o Joaquim e suas alunas Silene Farias e Marisa Fontana. A Silene é do Jabuti Bumbá, e quer levar o hãtxa kuin para os folguedos do bicho de casco, e a Marisa é historiadora e trabalha na Biblioteca. Na foto, estavam lendo um diálogo em hãtxa kuin, no qual dois amigos se visitam e bebem caiçuma ("mabesh"). Fizemos muito isso num momento inicial do curso, para nos familiarizarmos com a pronúncia da língua.


Nesse dia, recebemos a visita de uma turma do Jordão: Itsairu (de faixa verde), Shane (de "chapéu") e sua irmã Aiani. Foi um dia animado. Na foto eles estão junto com a Daniela. Eles vieram nos auxiliar em exercícios de pronúncia e escrita. Temos recebido várias visitas durante o curso de huni kuins que estão pela cidade e aparecem. Teve gente da turma que até arriscou uma conversa em hãtxa kuin...

Neste dia da visita, o Itsairu, um professor com vocação para filósofo, trabalhou bastante com o grupo em que eu estava, este aí acima (eu não apareço por motivos óbvios...): da esquerda para a direita, a Geovânia, professora de sociologia da UFAC, a Janilse, cientista social quase formada pela UFAC e agora concentrada no bebê que está para nascer, e a Verinha, da Comissão Pró-Índio, que mora em Brasília mas vem sempre pra cá e aí vem pra aula. Eram vários grupos, divididos com os Huni Kuin presentes. Num deles estava a inesquecível Nilda Dantas (na foto abaixo, de blusa laranja), artista e locutora de rádio na Difusora Acreana.


- Ma e~ kai [leia-se o til em cima do "e"]
- Kariwe!