Michael F. Schimidlehner
Caros
integrantes da rede [amazoniaindigena],
Venho
acrescentar algumas observações acerca da nossa Carta do Acre. Sei que este
assunto não se insere exatamente nos temas pautados por esta rede. Mas como ele
já surgiu, podemos abrir um parênteses para ele.
Certamente o governo da floresta trouxe uma mudança inédita
e fundamental no Acre. Foi uma mudança da noite para o dia. Não só pôs um fim
num regime de terror, acabando com o crime organizado e esquadrão da morte, mas
sobretudo introduziu uma mudança de valores, preconizando cidadania e
socioambientalismo, ou como foi chamado, a florestania. Neste primeiro momento,
a diferenciação bipolar, que os governantes da Frente Popular do Acre costumam
fazer entre aqueles que “amam o Acre”, e os que querem destruí-lo fazia muito
sentido e foi aprovada pela grande maioria da população.
Entretanto, não podemos negar que com o passar do tempo,
este governo também teve que seguir as regras que definem do jogo da
governabilidade, fazendo compromissos e alianças com forças anteriormente
consideradas inimigas, adotar um curso mais pragmático e parcialmente abrir mão
dos valores que havia defendido originalmente.
Ao mesmo tempo, houve tendências autoritárias neste governo
e o discurso de polarização foi mantido, tornando-se gradativamente um discurso
de exclusão e censura. Desta forma, a criação de um espaço de autocrítica
sincera da frente popular foi por ela mesma impedido. Quem expressava um pensamento mais crítico,
corria risco de ser taxado como inimigo do Acre.
Não quero me alongar neste ponto sobre o histórico da frente
popular no Acre. Para quem se interessa, posso recomendar um artigo bastante
esclarecedor que foi publicado no blog do Altino Machado.
Referente às pessoas e instituições que assinaram a carta, posso dizer o seguinte:
Certamente não odeiam o Acre, nem seu atual governo. No seminário participaram
ativamente antigos companheiros de Chico Mendes que, juntos com ele, nas
decadas 70 e 80 ariscaram suas vidas em defesa dos povos da floresta. Muitas
das críticas – especificamente as críticas acerca do governo - foram feitas por
eles. A carta é, na sua maior parte, um resumo dos comentários que os
participantes acrianos e acrianas fizeram, após terem ouvido as apresentações
sobre REDD e BNDS. O documento foi lido várias vezes. Não podemos julgar que as
ONGs e Sindicatos Rurais assinaram a carta por ingenuidade. Foi um evento
altamente participativo e um momento de forte confraternização. A carta
representa sim, o pensamento de uma parcela do movimento do Acre. O fato de a
atuação de algumas destas organizações hoje talvez não ser tão pró-ativa
atribui-se também ao esvaziamento que o movimento socioambiental sofreu a
partir do momento que a frente popular assumiu o governo sob a bandeira do
socioambientalismo.
Sinto que o problema da carta é que ela entra num momento –
nas vésperas das eleições 2012 – quando os partidos políticos começam se armar
para a disputa e as forças da direita e as oligarquias do agronegócio iniciam
seus ataques. Poder-se-ia argumentar que num momento em que há perigo do
governo da frente popular poder ser derrubado e substituído por um governo
muito pior da direita, deveríamos nos reter com críticas demais radicais e nos
declarar, apesar de seus defeitos,
solidários com este governo. Opor o governo seria neste momento
imprudente para quem é compromissado com o socioambientalismo. Mas eu acho que
não é bem assim. Nós, como não-governamentais não podemos deixar nos forçar de
“escolher o lado” entre partidos ou governos mais ou menos maus. Os movimentos
sociais, quando perdem sua independência do governo, estancam, deixam de ser
movimentos e passam a fazer parte de um jogo de hegemonia.
Também costuma-se argumentar que críticas sempre devem ser
construtivas, ou seja, não se deve apenas questionar, mas também se
responsabilizar, no sentido de ofertar soluções alternativas. Entretanto, em certos momentos faz-se
necessário - mesmo sem ter uma solução
alternativa - simplesmente questionar certas noções, principalmente quando
estas noções vem sendo introduzidas de forma forçada, de cima para baixo. E
isso também é o caso nas concepções de REDD e ABS (repartição de benefícios).
Estes mecanismos mercadológicos foram concebidos pelos governos no âmbito da
ONU sob pressão de interesses comerciais e agora vem sendo apresentados como se
fossem soluções sem alternativa. As consultas com as comunidades indígenas e
locais, como os governos promovem tendem a reduzir a problemática a questões
técnicas e pragmáticas, pressupondo que a príncipio se trata de uma solução.
Ainda tem muito pouca discussão com as comunidades sobre os pontos
questionáveis, tanto no que se refere as consequências práticas (quais reais
impactos e dependências estes acordos podem trazer para as comunidades em longo
prazo), quanto as questões da ideologia por trás destes mecanismos (no caso do
REDD poder continuar poluir, compensando em outro lugar, no caso do ABS poder
continuar patentear os recursos e conhecimentos dos povos da floresta,
pagando-os) . Faz-se necessário promover não apenas consultas e capacitações,
mas também contribuir com autodeterminação e empoderamento destes povos e
comunidades para que eles possam desenvolver sua própria forma de gestão e
política da biodiversidade. Da mesma forma, é necessário que as argumentações
contra a implementação destes mecanismos possam se articular livremente,
contrapondo o discurso dominante e servindo de informação alternativa para as
comunidades na sua tomada de decisão.
Neste sentido a Carta do Acre traz uma crítica radical,
lembrando que a origem da palavra “radical” é de “ir até a raiz”. O que pode
parecer a primeira vista uma série de assuntos diferentes – REDD, BNDES,
extração de madeira, desvirtualização da imagem de Chico Mendes – encontra na
sua raíz o mesmo problema, que é a mercantilização da natureza e a penetração
dos espaços físicos e simbólicos da nossa vida pelo interesse comercial.
No mundo inteiro, movimentos sociais e ambientais vem se
alertando sobre esta problemática. A Carta do Acre tem que ser levada a sério.
Ela é uma importante contribuição com a discussão mais livre e mais
radicalmente crítica.
Um grande abraco,
Michael
Amazonlink.org
Um comentário:
agradeço por compartilhar a mensagem
gostei muito de lê-la
penso que a partir deste momento você nos convida a olharmos para o futuro
lendo sua dissertação e suas últimas publicações
(sem deixar de lembrar do comentário do professor mauro almeida, em passagem recente pelo acre, sobre seu trabalho
(ao tratar a questão da hegemonia))
entendo que você nos convida a abrirmos novos espaços de pensamento e ação
em vez de buscar limitar nossa contribuição com soluções aos problemas do estado
os problemas do estado e sua governabilidade não podem ser parâmetros
que segurem nossa criatividade
precisamos mais dela do nunca
para escapar aos lugares comuns dos jogos discursivos do poder
no mais
sua mensagem vai além da carta do acre e traz novas questões que precisam ser debatidas
tais como o problema da neutralização da esquerda
e, assumindo eu a partir daqui,
os lugares de encontro e as novas idéias sobre "política" por parte daqueles que não estão satisfeitos com a velha ordem democrática de representação
e pretendem continuar a não se posicionar nem a esquerda, nem à direita
exercitando assim seu direito à liberdade
sou grato por
sua delicadeza e sinceridade
forte abraço
amilton
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