sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Vida

O rio Tietê, em especial o trecho que corta a Grande São Paulo, costuma estar associado a tudo de ruim que a humanidade que mora em cidades grandes pode produzir: a morte de seres viventes não humanos – no caso, um rio, peixes e outros organismos que ali habitam. Mas, tal como nós humanos, entes naturais, a vida em todos habita. Só assim posso entender as últimas notícias sobre o Tietê.

Vamos aos fatos que recolhi esta semana.

O rio Tietê, na região metropolitana de São Paulo, é castigado todos os dias com algo em torno de 690 toneladas de esgoto – argh! São 34 cidades na Grande São Paulo, das quais 19 despejam no mesmo Tietê todo o seu esgoto in natura. Há, por exemplo, no ABC, redes coletoras, mas não estão articuladas com estações de tratamento. As mais 250 prefeituras na área da Bacia do Tietê muito pouco fizeram em termos de investimento para a proteção do rio, que sofre não só com os dejetos domésticos e industriais, mas também com problemas de erosão. Enfim, doutor, o caso é grave e inspira cuidados urgentes; o doente parece agonizar... Mas não, espere! Há sinais vitais...

Após 16 anos de obras e investimentos em torno de R$ 3 bilhões, o rio Tietê dá sinais de vida. A uns 100 quilômetros da capital, peixes que há 30 anos haviam desaparecido, ressurgem em trechos (região de Sorocaba) onde o nível de oxigênio dobrou entre 1992 e 2008. Dados da Sabesp (a companhia que cuida da situação e abastecimento de água para os paulistanos) registram queda na poluição do rio com material orgânico e metais. Diz-se que “mancha de poluição do rio recuou 120 quilômetros”. No rio Pinheiros, que também corta a capital, uma rede de interceptores vem sendo construída e planeja-se bloquear cerca de 60% do esgoto despejado no rio e dar-lhe tratamento. Com isso, estima-se que em três anos será possível pescar no Pinheiros, ali na marginal!

Claro que os números poderiam ser melhores. Há muito (des)interesse político em todo o projeto de despoluição do Tietê. Mas acredito que podemos comemorar e brindar a vida. O caso do Tietê pode estar nos mostrando que mesmo quando tudo parece tão difícil, quando a missão tem um certo ar de impossibilidade, quando a doença é grave, enfim, bom, mesmo nessas situações há uma força maior que atua: a força da vida. Basta darmos uma chance, pararmos de sufocá-la, criarmos condições um pouco melhores, que a vida ressurge, delicada ao início, mas tendendo à plenitude e ao vigor.


Viva a vida - que quer viver!

Esta postagem é dedicada a Mauro Almeida.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Carta Aberta dos Povos Xinguanos à Nação Brasileira

Nós, líderes máximos dos povos da civilização xinguana, reunidos na aldeia kuikuro de Ipatse, em 21 de julho de 2007, queremos compartilhar com a nação brasileira a grave situação vivida no Parque Indígena do Xingu (PIX). Nossa civilização milenar vem resistindo há quinhentos anos a guerras de conquista, escravização, epidemias e roubo de terras. Nos últimos anos, a irresponsabilidade social e ambiental na região das cabeceiras dos formadores do rio Xingu coloca em risco a nossa saúde e a continuidade de nossa cultura. O desmatamento acelerado e irracional, a expansão agrícola, o uso desmesurado de agrotóxicos e, agora, a construção de barragens vêm destruindo a própria base de nossa subsistência. A poluição das águas e a contaminação do pescado são uma ameaça para o nosso futuro, não apenas por serem eles condição de nossa reprodução física, mas também de nossa vida cultural. Vivemos milenarmente nesta bacia de forma sustentável e em dependência direta dos recursos aquáticos.

Como representantes legítimos dos povos xinguanos solicitamos o apoio de toda a nação brasileira e da comunidade internacional para resistirmos a mais uma ameaça que nos cerca. Já perdemos boa parte de nossas terras com avanço da fronteira econômica e, agora, a destruição irracional ingressa na terra que nos resta. Exigimos um plano global de gestão da bacia do rio Xingu, não apenas no interior do PIX, mas que abarque toda a região dos formadores. A destruição iminente da bacia atinge a todos nós, índios e não-índios, e em particular às gerações futuras. Não podemos esperar mais 10 anos. O dano ambiental será irreversível. Queremos ações já para preservar um patrimônio que não é só nosso, mas da nação e de toda humanidade.

Em particular, exigimos:

- a imediata paralisação de todas as obras de barragens na região dos formadores;
- uma moratória sobre as licenças para instalação de novas PCHs;
- um estudo detalhado sobre a condição da água e do pescado;
- um plano de reflorestamento das margens dos rios e de seus afluentes;
- a recuperação da posse de áreas tradicionais excluídas da área do PIX;
- o reconhecimento e preservação de nossos locais sagrados, Sagihengu e Kamukwaká, que se encontram fora dos limites do PIX.

Afukaká Kuikuro
Kuiusi Kinsêdje
Tahukumã Kalapalo
Kugikagé Kalapalo
Jumuí Mehinaku
Aritana Yawalapiti
Jamatuá Matipu
Tirifé Nahukwá
Itsautako Waurá

[Esta carta foi divulgada em julho de 2007, e ela deve ser relida à luz dos últimos acontecimentos no PIX, ou seja, a retenção pelos índios de pesquisadores da empresa Paranatinga Energia S.A. e funcionários da Funai em protesto aos impactos ambientais causados pela construção de uma central hidrelétrica no rio Culuene, pela derrubada de árvores e uso descontrolado de agrotóxicos nas cabeceiras deste mesmo rio. O rio Culuene é um dos principais formadores do rio Xingu, mas suas cabeceiras, como as dos demais formadores dos principais rios que banham o PIX, estão localizadas fora dele (do PIX) e têm sido duramente castigadas por desmatamentos e contaminações. Para saber mais, clique aqui.]

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Fim de tarde em Cruzeiro do Sul

selvagem

eram seis horas e quinze da tarde-noite;
estava sentado em frente à catedral, vendo o pôr do sol e esperando por uma carona;
passou o primeiro garoto, que me ofereceu engraxe;pensei que meu sapato não era de engraxar e agradeci;
em seguida, passou um sem teto exalando sua condição;
pensei, ele virá ter comigo;torci para que não como torcendo para que sim;
na seqüência passou outro garoto pequeno com uma pequena caixa de engraxate (as caixas de engraxate de minha infância era maiores e tinham outro formato, as de hoje são menores, obedecendo os nossos padrões estéticos e o tamanho reduzido de nossa nova geração de engraxates);
perguntou se eu queria engraxar;disse que não;ele pacientemente se colocou no chão e começou a tirar o material;
como meu idioma sulista é dificilmente entendível aos índio-cearences ouvidos acreanos, repeti que não queria, alegando agora que meu sapato não se prestava ao engraxe;
ele continuou, em meio a resmungos que funcionavam como um tipo de resposta que servia para estender o diálogo mal entendido e ganhar tempo para continuar a retirar os seus instrumentos de dentro da caixinha;
perguntei-lhe, então, mais diretamente se ele tinha entendido o que eu tinha dito, que não queria engraxar, que meu sapato não era de engraxar;
ele entreolhou-me e respondeu que sim;
nisso, como ele continuou agindo enquanto eu conversava ele já estava com a graxa aberta e a escovinha melada, com a outra mão pegou a escova grande e escovou o sapato;
enquanto isso foram chegando outros garotos, que, como num exercício de estranhamento, me perguntavam onde eu morava;
suas expressões eram estranhas no lusco-fusco;
no crepúsculo parecia que tinham expressões sujas e famintas;
respondi qualquer coisa, como que eu morava ali perto;
enquanto isso o garoto não parava e já avançava sobre meu sapato com a escova cheia de graxa;
levantei-me e o segurei, mas ele colocou força no ato e veio pra cima;
eu fiquei desconcertado de estar envolvido numa situação como aquela;
comecei a segura-lo junto ao chão;
um fluxo disparou em minha mente;
um embate estava sendo travado, não queria de forma alguma cessá-lo oferecendo dinheiro a ele, o que não quis fazer desde o início;
percebi num relance um pedaço de chiclete no seu cabelo;
passou pela minha mente: estará ele chapado;
outro garoto entrou para chamar-lhe a atenção;
agarrou-o e dizia pra eu ir embora;
não consegui;ele não se rendeu ao companheiro;
até que não mais resisti e permiti que ele esfregasse a graxa em meu sapato;
para apaziguar a situação e ceder ao acontecimento, ainda disse que não ficara tão mal;
ele pediu que o outro buscasse a graxa;
olhei para o lado e uma senhora com um garotinho assistia parada ao acontecimento singular;
passou pela minha mente, num disparate, a idéia de brincar com o tal garotinho, o que pode ser que eu, estranhamente, num gesto de nervosismo desesperado, tenha feito;
por alguns instantes não sei o que aconteceu, via o carro chegando e a chance de me desvencilhar de um novo embate com o engraxate;
podia escapar indo para o carro;agora sim podia dar-lhe uma moeda, estava livre, precisava ir e queria agradecer pela situação inusitada que ele me proporcionara;
tirei uma bela e pesada moeda de vinte e cinco centavos, voltei-me e disse;
engraxate aí vai;
e lancei a moeda no ar;todos o garotos, uns quatro ou cinco, tentaram agarrar a moeda;
voltei as costas e parti ainda atordoado na direção do carro;

O texto é do Amilton, tá num imperceptível blog.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Tailândia é aqui

Tailândia da Floresta da Amazônia. Por que será este nome? Não consegui saber, mas de todo jeito é o município paraense que centralizou a primeira investida da operação “Guardiões da Floresta”, promovida pelo Ibama com apoio da Polícia Militar para reprimir o desmatamento e comércio de madeira ilegal. E foi mesmo um investida ao campo inimigo.

Tailândia da Floresta da Amazônia fica na rodovia PA 150, há uns 200 quilômetro da capital do estado, Belém. Tem cerca de 50 mil moradores. Ao que tudo indica, é a madeira – ilegal – o seu principal produto econômico, e as madeireiras o principal empregador. Quando a operação foi deflagrada, nesta última semana, logo de cara mais de 15 mil metros cúbicos de madeira ILEGAL foram apreendidos. Só uma madeireira, a Taiplac (Tailândia Lâmina e Placa Ltda) tinha no seu pátio 5,2 mil metros cúbicos cortados ilegalmente.

Mas o que são 15 mil metros cúbicos? Imagine 1 caminhão carregado de toras de madeira. Imaginou? Agora multiplique por 500 e você tem o que seriam esses 15 mil metros cúbicos. Sei lá, se em cada caminhão a gente colocar umas 6 toras (árvores abatidas), seriam umas três mil árvores de uma só vez! Além dessa apreensão absurdamente grande de madeira, no primeiro dia foram ainda destruídos 130 fornos clandestinos de carvão vegetal e mais de R$ 2 milhões em multas foram aplicadas.

Ou seja, o inimigo foi provocado. E reagiu. Rugiu.

No dia 19, ao que tudo indica com apoio e incentivo dos empresários madeireiros, moradores de Tailândia impediram que os 15 mil metros cúbicos de pura ilegalidade fossem retirados do Município. Queimaram pneus, ameaçaram os fiscais que comandavam a operação, ocuparam as vias de acesso as serrarias, uma loucura, quase uma guerra. Uma guerra pela floresta, fiquei pensando. O clima esquentou mesmo na Tailândia.

Não sei se os fiscais e agentes governamentais estão neste pique de guerrear pela floresta. No limite, estão cumprindo a lei. Já é alguma (grande) coisa. Mas imaginem: isso tudo num município só, lá do Pará. Mas o desmatamento conhece outros pontos críticos, como a Terra do Meio, no mesmo Pará, o estado do Mato Grosso com seus poderosos empresários do agrobusiness e outros investimentos, acredito mesmo que no setor madeireiro e pecuário – essas três coisas costumam andar juntas (como umas “irmãs Cajazeiras”, pra quem se lembra). E temos ainda Rondônia...

Vamos lembrar que estamos às vésperas de uma outra operação, a Arco de Fogo, esta voltada para combater o desmatamento na Amazônia como um todo. Os números do INPE e de outros institutos conceituados, como o IMAZON, são inegáveis: a floresta tá indo pro pau, como se diz. Tá sendo derrubada. Esta operação, que a Ministra Marina, e aqui vou defender, está lutando pra acontecer, apesar da não-posição do nosso presidente (valha-me Deus!) e de todos os percalços, como a falta de grana...Falta de grana, quem acredita? Pra defender a floresta, que o mundo todo diz que é a coisa mais importante!? Seria ridículo, se não fosse tão grave.

Se vamos mesmo combater a atividade madeireira ilegal, preparem-se para a guerra. Tailândia da Floresta da Amazônia, que daqui há pouco seria “Tailândia Desflorestada da Amazônia”, é só um exemplo, um piloto, digamos. Os moradores lá dizem, segundo a imprensa, que vão ficar sem emprego caso a atividade seja interrompida; o prefeito e políticos, que o município vai entrar em colapso. É, meu irmão, o negócio é sério. Desculpa aí, mas vamos mudar de vida. Quem quer mudar de vida?

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Molho-Trisca


Cheguei há pouco da casa do Txai Terri, de um almoço preparado pelo Meirelles – “comida de índio”, como ele mesmo disse. O Meirelles é sertanista, José Carlos Meirelles (sem camisa na foto), já publiquei coisas dele aqui no blog, é um admirável escritor. Ele entende mesmo de “comida de índio”.

Sua carreira de sertanista já vem de longuíssima data. Começou lá no Maranhão, no tempo em que havia mais floresta por lá, em que havia grupos indígenas isolados – e eles assistiu ao fim de tudo isso: de muita mata e do isolamento voluntário desses grupos, resultando em geral num desastre para os próprios. Meirelles teme que o mesmo possa estar se repetindo no Acre, nas fronteiras Brasil-Peru, onde vive há cerca de 20 anos lutando para que índios isolados possam permanecer como tais.

O problema agora é que, mesmo com três Terras Indígenas criadas no Brasil para guarnecer territórios de perambulação de grupos em isolamento voluntário, no Peru parece que a desordem está grande, e madeireiras e traficantes de coca estão assolando a fronteira internacional. O resultado é que grupos indígenas isolados de lá estão migrando para cá, e começam a aparecer em aldeias de índios brasileiros já contatados, ou mesmo em localidades onde moram brancos. Há susto, medo e risco de violência. Por outro lado, começaram a aparecer também “índios” meio suspeitos, que ninguém sabe direito se o são mesmo ou com que intenção, e a mando de quem, entram no Brasil. Hoje em dia, no Alto Envira, desabafou Meirelles, ninguém sabe quem é quem...

Foi em decorrência desta situação de insegurança e suspeita generalizada que Meirelles, em seis de junho de 2004, tomou uma flechada quando estava pescando. Foi um baita susto, mas o cabra é macho mesmo e não correu. Ano passado, Meirelles se inscreveu ele mesmo e foi selecionado, em primeiro lugar, para o Prêmio Chico Mendes, concedido pelo Ministério do Meio Ambiente. No final desta semana, Meirelles está indo para o alto rio Amônea, para participar de um encontro que pretende justamente discutir a fronteira Brasil-Peru e a ameaça que tem representado para os grupos nativos e os recursos florestais.

Hoje, então, à pedido do Txai Terri, o Meirelles fez um almoço para os amigos e amigas. Muita gente teve a felicidade e o privilégio de passar por lá. Consegui chegar por volta das 13:30 com a Ana Paula (à direita na foto), bem na hora em que um tambaqui e uma tilápia assados saíam da churrasqueira improvisada com tijolos e carvão. Rapidamente fomos servidas, Ana e eu. Em seguida chegou o Taska Yawaánawá, e depois o Toinho e a Selma (na foto, à esquerda). Meirelles nos explicou que o peixe fora assado sem qualquer tempero, e que já no prato o segredo era regá-lo moderadamente com o “molho-Trisca”. Hum, o que é isso?

Esta pergunta deu início a uma longa conversa culinária, e Meirelles deu-nos várias dicas de como preparar peixes. O negócio é o seguinte: o sal desidrata o peixe, e por isso não se deve salgá-lo quando o objetivo é assá-lo em churrasqueiras, ou seja, para que ele não desidrate e fique “duro”, ou “seco”. Simplesmente, depois de limpo, coloca-se o peixe para assar e pronto. Enquanto ele assa, prepara-se o molho-Trisca: água, sal, limão, azeite, temperos verdes (cheiro verde, salsa, manjericão, o que mais quiser), que será depois derramado (moderamente, com uma colher) sobre um peixe hidratado e macio. Uma delícia! Mas atenção: no caso de peixe cozido, o procedimento é outro: o negócio é salgar o peixe, e na hora de cozinhar, com a água já fervendo, colocar as postas, mas sem derramar aquela água salgada que o peixe acaba soltando. Depois de uns 10 minutos, o peixe deve estar pronto e durinho, sem desmanchar. Ah, ainda teve uma outra receita para assar peixe em forno caseiro, mas esta fica pra outra ocasião...

Sobre palavras e águas


Murilo Seabra


Quando estava em Marechal Thaumaturgo, observei uma coisa curiosa: algo que, na verdade, deve acontecer todos os dias em infinitos lugares do mundo, mas que só consegui realmente enxergar pela primeira vez lá: fui com um senhor na casa de um outro senhor, amigo dele; e o primeiro já chegou gritando, feliz da vida: “Seu viado! Seu corno!” O outro ficou tão feliz em rever o amigo que gritou também: “Seu viado! Seu corno! Seu cabra safado! Vem cá para eu lhe dar uma pisa! Vem se for homem!”



Então, achei a coisa interessante: pareceu-me que a ligação afetiva entre eles era tão forte que eles poderiam troçar das convenções sem temerem ofender um ao outro. Era assim que celebravam o seu reencontro: Somos tão amigos! Tão amigos! Tão amigos que podemos trocar entre nós palavras que os inimigos trocam entre si! Tão amigos que podemos nos xingar mutuamente dos piores nomes possíveis! Tão amigos que eles deixam de ser xingamentos e passam a ser manifestações de afeto! Aliás, o nosso xingar mútuo é uma espécie de confirmação e de celebração da nossa imaculável amizade! É uma espécie de marretar festivamente o vidro não quebrável só para mostrar que ele é não quebrável!

Palavras e linguagem


São só as pessoas com as quais não temos ainda laços afetivos estreitos e não quebráveis que tratamos com deferência. São só com elas que medimos as palavras, que seccionamos a linguagem em dois, usando só a sua parte semanticamente inofensiva e deixando a outra nos recessos mornos do silêncio. A linguagem não é um tecido afetivamente homogêneo com o qual as pessoas revestem as coisas e no qual embrulham umas às outras. Ela é antes uma colcha de retalhos das mais diversas proveniências e que servem aos mais diversos fins, e entre os seus retalhos há alguns mais ásperos, outros mais suaves, alguns de um verde aconchegante, outros de um vermelho sangüíneo, todos compondo juntos uma unidade, porém uma unidade tumultuosa, uma unidade que beira o caos, uma voz única temperada a sussurros adocicados e a gritos apimentados.



Mas não é incrível que as palavras usadas para acionar os afetos mais terríveis possam ser também usadas para acionar os afetos mais profundos? “Seu viado! Seu corno!” Há palavras de afeto que os casais nunca trocam entre si – pelo menos, não sem o risco de incitar desafeto. Em nossas sociedades, a abertura para trocas lingüísticas parece ser inversamente proporcional à abertura para trocas corporais: elas refratam umas às outras, elas ameaçam umas às outras, elas contaminam umas às outras.



[Para ler na íntegra esta interessante conversa, clique aqui]

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Ameaça na fronteira Brasil-Peru

O povo Ashaninka do Peru e do Brasil estará reunido entre os dias 24 a 28 de fevereiro na aldeia Sawawo, localizada no departamento de Ucayali (Peru), na fronteira com o estado do Acre, para um evento chamado de Encontro na Fronteira Brasil-Peru Comunidades Indígenas: Terra, Limites Fronteiriços, Convênios e Projetos.

O objetivo é discutir o impasse criado pela exploração madeireira na fronteira entre os dois países, os seus impactos socioambientais nas terras e comunidades indígenas e nos territórios dos índios isolados, como também discutir soluções de desenvolvimento não madeireiro.

Este encontro é organizado pela Apiwtxa com o apoio da CPI/Acre - Comissão Pró-Índio do Acre, do CTI - Centro de Trabalho Indigenista e da RCA - Rede de Cooperação Alternativa. Estarão presentes também organizações indígenas e indigenistas de ambos os países e contará com a participação do Governo Brasileiro, através da Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai – Fundação Nacional do Índio.

A política ambiental do Governo Peruano é o que está motivando a realização do encontro. Essa política, através das concessões florestais, tem ameaçado a integridade do território de índios isolados, que fugindo dos desmatamentos, têm se deslocado em direção às Terras Indígenas do estado do Acre situadas na região de fronteira. A presença cada vez mais freqüente de grupos isolados nestas TIs é vista com apreensão pelos povos indígenas do lado brasileiro, cujos territórios delimitam a fronteira Brasil-Peru.

A invasão de madeireiros peruanos se intensificou a partir de 2000, com o regime de concessão florestal peruano e a promulgação da Lei Florestal no país. Desde essa época foram abertos dois concursos de concessão de lotes, permitindo aos madeireiros instalar empresas na região. O governo peruano, no entanto, não tem se mostrado capaz de fiscalizar a atividade madeireira dentro das concessões florestais: o Instituto Nacional de Recursos Naturales – INRENA (organismo do governo equivalente ao IBAMA no Brasil) não dispõe de estrutura adequada para realizar tal atividade; além disso, é notada a influência política dos madeireiros na região, seja em âmbito local ou departamental. O resultado são quilômetros de floresta devastada e a extração ilegal de madeiras nobres. Como no lado peruano algumas espécies de maior valor econômico já foram exploradas à exaustão, os madeireiros passaram a invadir a floresta do lado brasileiro.

Preocupados com esta situação, as lideranças indígenas e organizações da sociedade civil, brasileiras e peruanas, continuam se reunindo para discutir esses problemas, buscar soluções e exigir medidas governamentais para por fim nas ações criminosas que estão destruindo os povos que habitam a região da fronteira Brasil – Peru.

Para mais informações, consulte o blog da Apiwtxa.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Antoine convida


Antoine Monory, um francês quase naturalizado acreano, que viveu aqui nesse pedaço do Brasil por muitos anos até ser forçado, por motivo de saúde, a voltar para sua terra natal. Antoine quase morreu naquela época. Mas lutou, contou com apoios fundamentais, e está vivo e ativo. Artista que sempre foi, terapeuta, cozinheiro, entre outras habilidades, ele voltou a pintar. Recebi hoje, por email, o convite para sua vernissage no Centre d´Animation D´Arras (48 rue du Cardinal Lemoine, Paris), que ocorrerá no próximo dia 12, às 18 horas. Fica o convite para quem puder comparecer. Viva o Antoine!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Hãtxa Kuin Menia

Hãtxa Kuin, língua verdadeira dos Huni Kuin, o povo verdadeiro. Menia é uma palavra usada para "aprender".


Começou ontem, na Biblioteca da Floresta Marina Silva, aqui em Rio Branco, o primeiro curso experimental de aprendizado por não-índios de uma língua indígena, no caso a falada pelo maior grupo indígena aqui do Acre, os Huni Kuin, mais conhecidos como Kaxinawá. Os Kaxi, como também podem ser referidos, somam hoje mais de seis mil pessoas, talvez até oito, e ocupam 12 Terras Indígenas, apenas uma delas ainda não regulamentada. O Hãtxa Kuin talvez seja a segunda língua mais falada no Acre.

A Biblioteca da Floresta faz parte da estrutura do Departamento de Diversidade Socioambiental (chefiado pelo Edgar de Deus, que está mais ao fundo na foto), que por sua vez integra a estrutura da Fundação Elias Mansur, a nossa Secretaria Estadual da Cultura. O curso experimental de Hãtxa Kuin insere-se numa proposta da Biblioteca de aprofundar o diálogo entre os saberes tradicionais e científicos. Mas da onde veio a idéia do curso?

Parece que de uma conversa entre o Elson Martins (dando uma gostosa gargalhada na foto), o Joaquim Maná (ao lado do Elson na foto), a Ingrid Weber e o Terri Aquino (no canto esquerdo da foto), e de uma idéia, explorada pela Ingrid no seu livro "Um copo de cultura" (Edufac/Nuti, 2007) de que estamos no "tempo da cultura": diante da crise do extrativismo e de alternativas consistentes para a floresta e seus moradores (humanos e não humanos), os povos nativos optaram por dar uma volta sobre si mesmos, ou, dito de outra forma, resgatar e revitalizar sua cultura. Danças, músicas, artesanato e a língua - além de bricolagens outras diversas, como disse o Terri - são manifestações que estão em alta entre os índios do Acre. E nós, brancos, como participar disso tudo? Veio então a idéia do curso: difusão da língua, valorização, revitalização. A Biblioteca topou, e o curso promete.

Nosso professor é o Joaquim Maná, morador da Terra Indígena Kaxinawá da Praia do Carapanã, que fica no município de Tarauacá. Joaquim é professor em sua Terra desde 1983, tendo passado por todo o processo de formação de professores indígenas da Comissão Pró-Índio do Acre; hoje é presidente da Organização dos Professores Indígenas do Acre (Opiac). Joaquim é formado ainda pela Universidade Estadual de Mato Grosso, que tem um curso superior de formação de professores indígenas. Trabalhando junto com Joaquim e dando um apoio técnico na construção do curso - que, lembremos, é experimental - está a Daniela Marquese (na foto abaixo, ao lado do Joaquim), antropóloga desenvolvendo sua pesquisa de doutorado na TI Praia do Carapanã. Quanto a turma, das 40 pessoas inicialmente inscritas, 20 foram selecionadas. A composição é diversa: há professores e estudantes da Ufac (ciências sociais, história, direito, letras), técnicos do governo, gente da comunicação (jornalista, designer, radialista), gente da saúde indígena, de ONG. Ontem (dia 13), na abertura do curso, o clima era fraterno.

De fala mansa, Joaquim abriu o curso com um audiovisual de uma importante festa ritual de seu povo (cujo nome inadvertidamente não anotei), pondo-nos por cerca de dez minutos em contato com o universo de seu povo, ouvindo-os cantar e vendo-os na mata, pintando-se, cozinhando, dançando, brincando, olhando-nos de frente por meio da lente do fotógrafo, com seus rostos pintados com os grafismos dos kêne.

De minha parte, gostaria que o aprendizado da Hãtxa Kuin pudesse ser também a entrada no universo Huni Kuin, no mundo Huni Kuin, e assim a possibilidade de acessar outros mundos tão reais quanto o nosso. A linguagem como estruturante (como disse a Geovânia, que se mexeu na hora da foto e saiu desfocada na primeira foto) do que, para seus falantes, existe ou tem possibilidade de existir. Como está organizada a Hãtxa Kuin? Quais são suas regras internas de funcionamento para a construção de frases e de sentidos? E o que tudo isso pode ter a ver com a cultura Kaxi, com a maneira como este povo se organiza e se pensa?

Bom, não sei, estes assuntos de linguagem são meio novos para mim, o que é mais estimulante ainda. Talvez minhas expectativas sejam excessivas para um curso experimental, talvez. Mas, por que não? Teve gente, como a Cilene Farias, que quer sair do curso cantando na língua indígena e incrementando os folguedos do Jabuti Bumbá!

É um horizonte, uma esperança, cada um com o seu e a sua, junto com nosso professor e sua assistente, numa biblioteca no meio da floresta...

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Dom Juan

"Experimentei uma sensação extremamente agradável de paz e satisfação; o mundo naquele momento parecia estar à vontade. A tranquilidade era divina e, ao mesmo tempo, enervante. Eu não estava acostumado com aquele tipo de silêncio. Tentei falar, mas ele me ordenou que me calasse. Depois de algum tempo, a tranquilidade do lugar afetou meu estado de espírito. Comecei a pensar em minha vida e minha história pessoal e tive uma sensação conhecida de tristeza e remorso. Falei que eu não mereceia estar ali, que o mundo dele era forte e justo e eu era fraco e que meu espírito tinha sido desviado pelas circunstâncias de minha vida.

Ele riu e ameaçou cobrir minha cabeça com terra, se eu continuasse a falar aquelas coisas. Disse que eu era um homem. E, como todo homem, eu merecia tudo o que fosse destinado ao homem – alegria, dor, tristeza e luta – e que a natureza dos atos da pessoa não tinha importância, enquanto ela agisse como guerreiro.

Baixando a voz até quase um sussurro, ele disse que, se realmente achava que meu espírito estava desviado, eu simplesmente teria que endireitá-lo, purgá-lo, fazê-lo perfeito, pois não havia nenhum outro trabalho em todas as nossas vidas que valesse mais a pena. Não endireitar o espírito era procurar a morte, e isso era o mesmo que não procurar nada, desde que a morte nos alcançará, não importa o que acontecer."

(Viagem a Ixtlan, Carlos Castaneda)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Jantar hibridizado

Pense na seguinte situação, vivida ante-ontem aqui em casa: eu, do Rio de Janeiro, Murilo, de Brasília – ambos vivendo no Acre, eu no leste, ele no oeste. A proposta gastronômica: “sushi heterodoxo”.

Posta a mesa, nos deparamos com os seguintes e híbridos itens:

- algas nori, do Japão, é claro, sem sombra de dúvida;
- gengibre em conserva, comprados numa loja japonesa (no Rio de Janeiro!);
- raíz forte, num tubo parecido com o de pasta de dente, importado do Japão e encontrado numa prateleira do supermercado Araújo, aquele ali da avenida Isaura Parente, aqui em Rio Branco;
- shoyo, de uma marca brasileira;
- manga, diretamente do Araújo, mas original da Índia;
- abacaxi, adquirido no mercadão da cidade;
- pepino, não o dito “japonês”, mas bem parecido, orgânico, adquirido no mercado de produtores aqui perto de casa;
- gergelim torrado, da Jasmine, marca de produtos integrais;
- arroz empapado, cozido com água (mineral, marca Verágua), vinagre (de arroz) e açucar (cristal), mas não o moti, e sim o integral, também da Jasmine;
- de talheres, “pauzinhos” de madeira, japoneses, e um garfo – tem hora que é o jeito!;
- pra beber? Um vinho argentino, tinto, bem razoável.

Deixa a taboca rachá

José Carlos dos Reis Meirelles

A expressão muito usada na Amazônia deve ter se originado, desconfio eu, de duas ou três situações. Uma é que no verão quando o tempo é seco e o sol de meio dia esquenta os canos de taboca na mata, vez por outra uma racha com um barulho parecido com um tiro chocho. Outra é que a gente usa cano de taboca verde pra cozinhar na mata. Cozinha peixe, carne, qualquer coisa. Coloque tudo dentro do cano, entupa a boca com folha de sororoca, bem entupida e coloque em pé ao lado do fogo. Vá virando de 15 em 15 minutos. Quando ela rachar, o que tiver dentro ta cozido e mole, acredite. Lembre-se de não colocar água, nem na carne, nem no peixe. Cozinha com a água deles mesmo. Até arroz dá pra fazer assim! E por fim, no tempo de tocar fogo em roçado onde tem taboca. Aí é um tiroteio louco, provocado pelo aumento de pressão no interior dos canos sem rachaduras que espocam como rojões.

A expressão é usada pra tudo que é situação.

Tô com uma ressaca danada, tão brigando ali na esquina, o barco vai alagar, o pé de pau ao lado da casa caiu em cima dela, a casa tá pegando fogo, o diabo do burro derribou a carga e danou-se de varadouro a fora, o Binidito ta namorando a mulé do Chico da Dina, a peste da canoa rachou na hora de abrir, a alagação aterrou todo o roçado de macaxeira, o forno tava quente demais e a farinha queimou, as galinha entrô no cercado da horta.

Esta noite o gato levou o galo piroco, dei uma topada numa raiz que arrancou a unha do dedo mindinho, num é que o Bitónho robô a fia do Zé Prego, o home tá valente que só surucucu choca, a onça comeu meu capadinho china, num é que as peste das capivara quase acaba com o milho do tacanal, a formiga de roça pelou as frutera, os menino arriaru tudu de sezão, diacho daquele tatu rabo chato gordo assado me deu uma caganera de chicote, dei um lance com a tarrafa novinha e cobri onze piranha caju, botaru quebrante nos meu capote novo e morreu tudinho.

Rastejei uma anta onti das 7 da manha inté as duas da tarde e a 16 bateu catolé, a paca corto a linha da armadilha, deu barata paulista na palha da casa, goro os óvu tudinho da galinha arrupiada, os pato brabo acertaru no fejão manteguinha, o produto interrrrno bruto vai ter uma rrrredução de dois pontos percentuais, bala perdida mata criança de três anos, ministra pede demissão por mau uso de cartão corporativo, integrantes de quadrilha que fraudava previdência conseguem hábeas corpus e aguardarão o processo em liberdade, juram que não vão fugir.

A crise do mercado imobiliário americano derruba as bolsas no mundo, morre a cachorrinha de estimação da socialite Zilda Prado Lins, Edson Lobão assume o Ministério de Minas e Energia, quando nada o primeiro nome lembra o inventor da lâmpada elétrica, tem a ver, índios tupiniquim interditam a linha do bondinho do pão de açúcar, Presidente Lula diz que desmatamento na Amazônia não é culpa do agronegócio e o governador Blairo Maggi diz que a culpa é das ONGS e dos índios, sem-terra invadem a casa do presidente Sarney na praia do Calhau em São Luis, índios Guajajara trocam 200 quilos de maconha por diamante de 10 quilates com os Cinta Larga, presidente Lula acerca de seu recorde de viagens para o exterior: Cobra que não anda não engole sapo, oposição: a que anda muito pega pau, o pajé tomou cipó demais e rezou a mordida de cobra do Kaí com reza pra curuba, coitado, morreu, Atxú, cadê minhas penas de papo de tucano? Menino jogou na brasa do moquém.

Tá na casa do sem jeito? Então deixa a taboca rachá.